Nacional

A cultura tem muito a contribuir para a sociedade na disputa. Ela forja comportamentos, modos de vida, valores, pensamentos, afetos, sentimentos

Antonio Gramsci escreveu que, por mais que tivesse informações e dados sobre o que acontecia na vida italiana, algo incomum em seus muitos anos de cárcere, não conseguia elaborar uma análise da conjuntura. De acordo com Gramsci dados e informações não bastavam para analisar as conjunturas, pois a ausência de convivência não permitia conceber o clima, o sentimento e o ânimo das pessoas envolvidas na disputa político-cultural. Para Gramsci, tais fatores eram vitais para a compreensão fina da conjuntura.

Não tendo participado da IV Conferência, posso recorrer às perspicazes observações do admirável intelectual e político italiano para assinalar as limitações dessas breves anotações acerca da conferência. Elas não se nutrem de experiências vivenciadas, só possíveis aqueles que compartilharam a conferência.

Assim arrisco prosseguir. Independente dos seus conteúdos e formatos, as conferências sempre são um grande encontro para articular, envolver e energizar todos seus participantes. Depois de anos sem viver conferências, barradas pelas gestões golpistas, e com a cultura sob ataques das forças autoritárias, o campo cultural sofreu profundamente a ausência de conferências e encontros. Os autoritários e conservadores têm pavor de reuniões, debates e diálogos que revitalizam a sociedade e a cultura.

A IV Conferência pode renovar a vida político-cultural, alicerce para imaginar, não só as potencialidades, mas o impossível. O retorno da conferência emerge como marco. Os tempos sombrios das gestões Temer e Bolsonaro estão sendo superados. Mas a esplendorosa eleição de Lula não derrotou, por completo, as forças autoritárias e golpistas. Ameaças, censuras, perseguições violências físicas e simbólicas precisam continuar a ser superadas. O exemplo recente de censura e perseguição ao potente livro de Jeferson Tenório, O avesso da pele, demonstra a necessidade de agir. Para isso é preciso muita luta, ações, debates, energia e muitas conferências. Elas são acontecimentos vitais no processo de lutas e de superações.

Assim, cabe reafirmar a relevância da volta da conferência para demarcar o novo momento e para reanimar o movimento do campo do cultural, depois das vitórias das leis Aldir Blanc I e II e da lei Paulo Gustavo. Todas elas conquistas improváveis no ambiente tão anticultural da gestão Messias Bolsonaro. A manutenção das conferências é algo imprescindível para a consolidação dessas e de outras conquistas.

As conferências são instantes privilegiados de encontro político-ideológico e de aprofundamento da democracia participativa no país. É primordial apontar as conexões umbilicais entre as conferências e a democracia participativa. Nada casual que as gestões golpistas tenham barrado as conferências e atacado conselhos, colegiados e todos os canais de participação democrática existentes na sociedade brasileira. A democracia participativa é um longo processo em construção, com todos seus avanços e retrocessos.

Além de ser encontro e democracia, a IV Conferência Nacional de Cultura estimulou o debate e a construção de propostas, oriundas de reivindicações do campo cultural de todo país. A estruturação democrática e federativa, envolvendo entes municipais, estaduais, distritais e nacionais, possibilitou o esboço de um amplo panorama de demandas dos agentes e das comunidades culturais brasileiros. Assim como revelou o estágio político-ideológico alcançado por tais formulações.

Os conteúdos provenientes do rico processo das conferências municipais, territoriais, estaduais, setoriais, livres e nacional, sintetizados em suas 84 propostas aprovadas e trinta propostas priorizadas, votadas na IV Conferência, são relevantes contribuições para entender o Brasil e sua cultura. Elas exprimem, de modo vigoroso, situação, movimentos, manifestações e reivindicações genuínas do complexo campo de cultura brasileiro. As propostas são expressões democráticas da criatividade e da vitalidade da área cultural, mas também das dificuldades e dos dilemas vivenciados pelo campo cultural.

Nas trinta propostas priorizadas pela conferência (re)aparecem, com vigor, temas básicos para o desenvolvimento da cultura no Brasil, a exemplo do Sistema Nacional de Cultura (SNC), Plano Nacional de Cultura (PNC), pontos de cultura, formação em cultura, recursos para cultura etc. É reafirmada/consolidada a preocupação com as culturas dos explorados, oprimidos e discriminados, tais como: mulheres, negros, indígenas, ciganos, comunidades LGBTQIA+, pessoas com deficiência, idosos, jovens, crianças etc. Temáticas ganham força como, por exemplo, o fator amazônico. Novos temas emergem, como as culturas fronteiriças e a internacionalização da cultura brasileira. Impossível se referir a todos os aspectos contemplados na conferência.

Parabéns a todos os participantes, aos agentes culturais, ao Ministério da Cultura e ao governo Lula pela concretização da IV Conferência Nacional de Cultura.

Mas afirmar os pontos positivos da conferência não esgota as anotações. A conferência ganha ainda mais sentido se analisada no âmbito do processo de luta político-cultural vivido pela sociedade brasileira na atualidade. Nele, diversas forças se contrapõem. Dentre elas, duas se destacam: as autoritárias e as democráticas, com todas suas variadas nuances. Os autoritários e conservadores buscam impor (mono)culturas despóticas e fundamentalistas, censura, atitudes nada republicanas e combatem: culturas democrático-emancipatórias; institucionalidades da cultura; federalismo cultural; canais de participação; territorialização da cultura; transversalidade da cultura; diversidade cultural; democratização do financiamento à cultura etc. Os democráticos lutam por políticas públicas e valores, que visam cidadania cultural, direitos culturais, democracia cultural e a umbilical conexão entre cultura e democracia.

Necessário inscrever as anotações breves sobre a conferência no âmbito do processo de disputa político-cultural, que marca a atualidade brasileira e mundial. Mais uma vez é preciso assinalar que as anotações têm por base a leitura das trinta metas aprovadas, sem contemplar toda dinâmica virtuosa de animação, encontro, democracia e diálogo da IV Conferência.

Nessa perspectiva, alguns aspectos merecem atenção. Eles exigem cuidadosa reflexão. Uma leitura das trinta propostas contabiliza parcas referências à democracia, para além do universo da cultura ou mesmo no âmbito da cultura. A palavra democracia pouco comparece nas trinta propostas aprovadas. Algo grave se se considera a disputa político-ideológica central hoje. Ela acontece em torno dos embates entre autoritarismos e democracias. E entre as disputas das diferenciadas concepções possíveis de democracia. Desde aquela restrita/formal, que limita a democracia ao Estado/governo, até a ampliada/substantiva, que imagina a democracia tanto no Estado/governo, quanto em toda sociedade.

Tais questões têm imenso impacto sobre a cultura. Acabamos de comprovar isso, tristemente, no período pós-golpe de 2016 e, em especial, na gestão de 2019-2022, e mesmo agora com a persistência de guerras culturais.

A escassa preocupação com a democracia limita o horizonte das trinta metas, descolando-a, de modo preocupante, da crucial interação com a sociedade. Elas concentram seu olhar preponderantemente no campo da cultura, tomado em um sentido corporativo, como algo autonomizado da sociedade. As propostas comportam questões, sem dúvida, relevantes. Mas diversas delas ficam restritas aos ambientes culturais, perigosamente. Difícil conciliar o conceito amplo de cultura com propostas, que focam seu olhar apenas no campo da cultura, como algo corporativo.

Tal descompasso precisa ser corrigido no processo de desdobramentos da IV Conferência Nacional de Cultura. Os esforços do Ministério da Cultura, dos agentes e das comunidades culturais serão primordiais para superar, democraticamente, as dissonâncias entre a amplitude da noção de cultura e a reduzida abertura social das propostas aprovadas.

Outro ponto chama a atenção. A possibilidade de propostas aglutinadoras, pelas quais propostas aprovadas podiam se fundir, fez com que as propostas aglutinadas, muitas vezes, se tornassem propostas ônibus, que reuniam tópicos muito distintos da cultura, com o objetivo de facilitar sua aprovação pela plenária. Tal dinâmica, se de um lado, estimulou diálogos e negociações, de outro lado, prejudicou o processo de escolha de prioridades, inerente à conferência, com impactos negativos. Por exemplo: a pretensão de articular deliberações da conferência e o novo Plano Nacional de Cultura, que deve ser construído em 2024. As propostas ônibus esquecem prioridades e criam imensa dispersão acerca das proposições. As conexões entre a IV Conferência e o II Plano Nacional de Cultura se tornam nada simples e de alta complexidade. Certamente o Ministério, agentes e comunidades culturais saberão resolver com sabedoria tais dilemas, inclusive superando a enorme dispersão já presente no Plano Nacional de Cultura de 2010.

A IV Conferência Nacional de Cultura, como processo, visando aprimorar seus desdobramentos, reivindica sua reinserção potente na disputa hoje primordial na sociedade brasileira. A cultura tem muito a contribuir para a sociedade na disputa. Ela forja comportamentos, modos de vida, valores, pensamentos, afetos, sentimentos, sensibilidades, concepções de mundo.

Inclusive maneiras de os seres humanos viverem a história e sociedade em perspectiva crítica contra as desigualdades e os privilégios. Ela forja culturas democráticas crucias para o processo de transformação democrática da sociedade brasileira e do mundo, hoje tão ameaçados por autoritarismos e neofascismos.

A IV Conferência em seus desdobramentos deve colocar como prioridade corresponder às necessidades da atualidade nacional e internacional e se voltar para a conexão vital entre cultura, democracia e cultura democrática.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) e professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia (UFBA)