Especial

Depois desse café, o primeiro em liberdade, depois desse diálogo, segue para o Ministério do Interior. No Ministério do Interior, recebe o documento de identidade, fornecido pela ONU, destinado a refugiados e apátridas.

Theodomiro levantou muito cedo.

Pensou na coincidência das datas.

Fosse numerólogo, ia estudar as razões.

Dia 17 de dezembro.

Exatamente passados quatro meses da fuga da Penitenciária “Lemos Brito”, em Salvador.

Levantara-se quase no mesmo horário, antes das cinco.

Agosto, também um dia 17.

Daquele mesmo ano, 1979, tão importante na vida dele.

Ainda rememorou.

Pensa na exuberância, riqueza da memória.

Chegada a Salvador, estudo no Maristas, o ingresso no PCBR, o assalto ao Banco da Liberdade.

O cerco no Dique do Tororó o olhar para Paulo Pontes no jipe o revólver na mão esquerda quase cega os tiros um corpo caído no asfalto outro sangrando as coronhadas o sangue dele correndo a chegada à Polícia Federal aquele monte de polícia torturas sem cessar o desmaio depois Barbalho tudo aquilo sofrimento inenarrável a morte próxima lhe pareceu em algum momento.

Medo da morte era sentimento de pouca presença e de escassa serventia que nem tempo a memória reservava pra isso.

Talvez tenham acontecido momentos de preferir a morte a tanta dor, a tanto sofrimento, tanto terror.

E depois a vida no Barbalho ele e Paulo Pontes barbeados sairiam para o exterior sequestro do embaixador suíço tudo preparado não aconteceu ditadura reagiu duramente soube encrespar os dois restaram presos e assim seguirão até o ano de 1979.

Claro: lembra-se da condenação à morte. Outra vez, ela, próxima.

Mas tinha convicção ditadura não teria condição de executá-lo por conta da imensa repercussão em torno do nome dele jovem jovem melhor deixá-lo encarcerado muitos anos nada de sofrer aquele desgaste.

Anistia próxima e fuga

E aproximou-se a anistia.

Ele sabia: por conta da legislação da ditadura, ficaria sozinho na “Lemos Brito”.

E sabia também: os riscos de ser morto por algum sicário a mando da ditadura eram altos.

Aí conversa vai conversa vem com o PCBR chegam a acordo sobre fuga muita relutância dele queria sair logo do País o BR queria criar fato político melhor ir para uma embaixada ele acaba aceitando mesmo tendo convicção a saída do Brasil iria demorar.

Foge.

Ele queria mesmo era sair da cadeia e por qualquer caminho deixar o Brasil, o mais rápido pudesse.

O PCBR pensava diferente.

Queria impacto político, e melhor fosse numa embaixada.

Andou cacauais e sertões e rios afora.

E sozinho naquela manhã de 17 de dezembro, ainda no quarto, disse de si para si:

- Eu não disse?

Desabafo tardio, desnecessário para qualquer efeito, menos para ele próprio, precisava murmurar, fazer aquela pergunta, quase pirracenta, mesmo não pudesse ser agora ouvido pelos companheiros do BR.

Outra prisão, como disse.

Ali ficou o mês de outubro inteirinho.

Todo o mês de novembro.

E uma parte de dezembro.

Ao todo desde o dia da fuga, exatos quatro meses, entre sertões, cacauais, estradas e embaixada.

Muito para quem está fugindo.

Levantar muito cedo naquele dia, natural.

Quem dormiria muito com aquela expectativa de viagem?

Com o sonho de ganhar a liberdade, alimentado durante todos aqueles anos de prisão?

Primeiro, Rio de Janeiro. Depois, Cidade do México. Ainda olhou para o quarto. Quase com nostalgia.

Apesar de tudo, fora uma estadia serena.

Bem acolhido, depois das horas iniciais, quando o núncio havia refugado, querendo negar o asilo.

Arruma os poucos pertences, apronta-se, e segue para o aeroporto de Brasília.

Vestiu trajes à mão, entre os poucos acumulados.

Calça marrom clara, paletó branco, camisa estampada, gravata vinho.

Ainda recordou a tentativa de matá-lo: a bomba no Caderno do CEAS.

Ironia da história, riu: a CIA desarmou a bomba.

Sobreviveu.

Sai da embaixada escoltado por quatro agentes da Polícia Federal.

Acompanhado por dom Renato Rafaelo Martino e por Rafael Mijares, primeiro-secretário da embaixada do México no Brasil.

As passagens são compradas no balcão.

Era o cuidado para tentar manter a operação em sigilo.

Antes de embarcar, um caloroso abraço em dom Martino, a selar profunda amizade construída durante os 48 dias de permanência na nunciatura.

Tão sólida a amizade a ponto de, mais tarde, ser surpreendido com uma visita de dom Martino no exílio parisiense.

Desembarca no Galeão.

Chega num avião da Vasp, às 8 horas e 40 minutos.

Um forte aparato de segurança o aguardava.

Chamou a atenção da imprensa.

A pretensão de embarcá-lo sigilosamente, frustrada.

Uma nuvem de jornalistas.

Queriam porque queriam ouvi-lo.

Theodomiro estava desautorizado a isso.

E não tinha razão de criar problema numa situação como aquela, decisiva para a liberdade dele.

Não deu uma palavra.

É conduzido até a aeronave da Avianca por Rafael Mijares, o secretário da embaixada do México.

Um alívio profundo quando, de cima, viu o Rio de Janeiro.

Enquanto observava a cidade, ainda teve tempo de pensar: o Rio de Janeiro continuava lindo. Gil tinha razão.

Desembarque no México

Cidade do México.

Desce devagar as escadas do avião: desfrutar passo a passo a liberdade.

A rigor, a rigor depois de dez anos, ou quase isso, era a primeira vez a sentir-se verdadeiramente em liberdade.

Ao pé da escada, um zeloso funcionário do Ministério do Interior o recebe.

É levado para o Hotel Francis, à avenida Paseo de La Reforma, batizada em homenagem às importantes alterações políticas do país, na virada da década de 1850.

Um novo momento na vida. Inteiramente novo.

Não parava de pensar nisso: no valor da liberdade.

Theodomiro nunca foi muito efusivo.

Ao contrário, contido.

Aquele sentimento, o prezar a liberdade de modo especial, tão intenso, guardava para si.

É informado: as despesas de alimentação e estadia, todas pagas pelo governo mexicano.

Ao chegar ao hotel, o funcionário do Ministério do Interior, habituado com aquelas situações, aconselha-o:

_ Durma o quanto quiser!

Mas acrescentou devesse estar atento: dia seguinte, iria ao Ministério do Interior assinar os documentos de asilo.

E Theodomiro iria perder isso?

Dormiu bem e bastante.

Dia seguinte, 18 de dezembro de 1979.

Ele refletia sobre o significado daquele ano.

Primeiro, houve a perspectiva da anistia.

Era real.

Mas depois deparou com o fato de a legislação da ditadura impedir fosse beneficiado.

Pensou e articulou a fuga.

Aconteceu.

Mal podia acreditar estivesse no México, na terra de Zapata e Pancho Vila, dois heróis daquele país.

Estava.  Levanta-se, desce para o café.

O “Bom Burguês”

Dá de cara no hall do hotel com o “Bom Burguês”.

Nome dele: Jorge Medeiros Vale.

Um singular personagem da luta revolucionária no Brasil.

No início, simpatias pelo PCB. Nunca se filiou.

Ingressa no Banco do Brasil em 1952, aos 20 anos, nascido em 1932.

O golpe de 1964 deixou-o indignado e perplexo.

Em 1965, pensa em se candidatar à presidência do Sindicato dos Bancários.

Desiste.

Os caminhos, todos fechados.

O tempo passando, ele assuntando.

Conhece militantes da luta armada, de diversas organizações. Muito jovens e ingênuos, loucura, avaliou.

Mas tem contato com outros, bem mais experientes.

Sabia deles, desde o PCB.

Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, dirigentes da luta armada.

Todos egressos do velho Partidão, com o qual haviam rompido.

Os dois primeiros, dirigentes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

Os dois últimos, da Ação Libertadora Nacional (ALN).

Com estes, sim.

Se eles estavam à frente, a luta tinha futuro.

Passa então a confiar na luta armada.

E sem se ligar a nenhuma das organizações, começa a desviar dinheiro do Banco do Brasil para financiar a luta revolucionária, numa sofisticada operação.

Chega a desviar dois milhões de dólares para abastecer as organizações.

A família, manda para o exterior.

Receio da violência da repressão, pronta sempre a torturar mulheres, filhos, quaisquer familiares para obter informações.

Cai em 1969.

Violentamente torturado.

Repressão queria o dinheiro, ao menos aquele mandado para a mulher, no exterior. Consegue botar a mão na grana, e segundo ele, boa parte foi para o bolso de integrantes dos órgãos de segurança.

Passa seis anos na prisão, na Ilha das Flores.

Ao sair, em 1975, outro processo, outra condenação.

A ditadura não lhe dava trégua.

Resolve se asilar na embaixada do México, onde passa um bom tempo até sair do Brasil.

Theodomiro, quando o PCBR lhe falou em asilar-se antes de seguir para o exterior, disse dos receios de ficar muito tempo encerrado nos muros de uma embaixada, e citou o exemplo do “Bom Burguês” para contrapor-se a ideia, afinal acatada por ele.

Conversou muito com ele.

Conhece melhor a história dele.

Apesar de bem mais velho, o diálogo fluiu facilmente.

Entrevista e o sonho de Paris

Depois desse café, o primeiro em liberdade, depois desse diálogo, segue para o Ministério do Interior.

Acompanhado pelo “Bom Burguês” e por alguns outros companheiros.

Atitudes solidárias jamais esquecidas.

No Ministério do Interior, recebe o documento de identidade, fornecido pela ONU, destinado a refugiados e apátridas.

No dia 20 de dezembro, dá uma entrevista à televisão mexicana.

Não deixa por menos.

Fala das condições políticas do Brasil.

Da ditadura.

Das limitações do projeto de anistia.

De alguma forma, razão da fuga dele.

Da presença no México.

Vai adiante: fala da não convocação da Assembleia Constituinte.

Apontava caminhos para a luta.

Necessidade da organização do povo.

Da mobilização popular.

Esta, único caminho para derrotar a ditadura.

Havia um segundo passo, agora, a ser pensado: articular a ida para Paris.

Na capital francesa, encontraria a mulher, Maria Conceição Gontijo de Lacerda, e o segundo filho.

Referências

ALMEIDA, Valeska de Souza. O “Bom Burguês” : A trajetória de Jorge Medeiros Valle sob a ditadura brasileira”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Daniel Aarão Reis Filho. Niterói, 2015.

JOSÉ, Emiliano. Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento : segunda parte / Emiliano José. – São Paulo : Editora Casa Amarela, 2004, 151 p.

JOSÉ, Emiliano. O cão morde a noite / Emiliano José : EDUFBA, 2020, 426 p.