EM DEBATE

De 25 a 31 de janeiro de 2001, realizou-se em Porto Alegre o primeiro Fórum Social Mundial, congregando representantes de partidos, movimentos sociais e ONGs de 120 países. Mais de 15 mil participantes. Lá estava a esquerda mundial, em seu sentido mais amplo. Lá estavam negros, feministas, sindicalistas, homossexuais, sem-terra, ecologistas, indígenas. Lá estavam políticos, intelectuais, ativistas, estudantes, representantes de igrejas. Lá estavam os que dizem não ao neoliberalismo e ao pensamento único. Com suas divergências, sectarismos e particularismos. Mas também com seu não-conformismo, com seus princípios comuns e sua vontade de mudar, expressa na consigna do Fórum.

Antes de Porto Alegre, a última grande reunião da esquerda em nível internacional tinha sido realizada em 1967, em Havana: a Conferência Tricontinental reuniu partidos e movimentos políticos socialistas, sob condução do PC Cubano.

Mais de 30 anos se passaram para que um evento de maior envergadura pudesse se realizar. As características são outras. Não há mais monolitismo de pensamento nem tática única de luta para todo o mundo. Os movimentos sociais e as organizações ganharam autonomia e se transformaram em atores importantes. Um novo internacionalismo começa a surgir e ganha impulso

com o encontro de Porto Alegre.

Para discutir o significado desse movimento, Teoria e Debate convidou o deputado Aloizio Mercadante (secretário de Relações Internacionais do PT), os sociólogos Emir Sader e Michael Löwy e o educador Sérgio Haddad (presidente da Associação Brasileira de ONGs - Abong).

Um êxito espetacular

Sementes do Futuro

Entre Porto Alegre e Porto Alegre

Marco histórico

Um êxito espetacular

Ainda sob as emoções do encerramento do primeiro Fórum Social Mundial, observando a expressão das pessoas presentes, me perguntava se seria possível construir uma análise consistente que pudesse abarcar todas as dimensões do acontecido. De lá para cá, tenho tido a oportunidade de recolher informações, ler artigos, discutir em eventos e acompanhar muitos aspectos e abordagens que parece vão se multiplicando nas suas interpretações e desdobramentos. Minha sensação inicial se confirmava, tamanhos são os aspectos que podem ser tomados como elementos de análise. Assim, o que aqui procuro realizar é uma contribuição a este conjunto de opiniões interpretativas.

Inicialmente há que se notar que o enorme interesse pelo evento e sua impressionante repercussão por si só já demonstram a importância do FSM. Sua missão simbólica de ser um "contraponto ao Fórum Econômico Mundial" foi atingida no primeiro ano e de forma espetacular.

Que fatores explicariam o sucesso do evento no plano nacional e internacional? O primeiro é o da boa idéia, da oportunidade. O Fórum soube capitalizar uma insatisfação latente e ao mesmo tempo crescentemente explícita sobre como o mundo vem se organizando, e, particularmente, como a economia capitalista vem se reproduzindo.

Seu sentido concreto ficou demarcado como sendo um espaço produzido pela sociedade civil que, além de ser um espaço de denúncia e protesto, foi também um local de propostas para a construção de um outro modelo de globalização e de organização das sociedades.

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Como disse Anibal Quijano, sociólogo peruano: "o importante deste Fórum é que reinicia em nível mundial e em alto nível não só uma resistência, mas o começo de uma formulação de iniciativas eficazes que vão estender-se internacionalmente como uma nova possibilidade. Toda a diversidade e heterogeneidade que observei aqui mostram que há uma imensa riqueza de práticas sociais novas, o que demonstra que há uma mudança muito significativa na atitude da população". "É um encontro da militância com intelectuais", comentou Atílio Borón, cientista político argentino.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato do FSM haver se organizado sob uma frase de ordem afirmativa e geral, "um outro mundo é possível", combinada com uma ampla base diversa de atores sociais do campo democrático da sociedade civil (ONGs, sindicatos, movimentos sociais, culturais e populares, setores empresariais, igrejas, estudantes, outros). Esta combinação permitiu construir uma aliança que foi se renovando, negociada politicamente passo a passo.

Seria ingenuidade olhar esta aliança como sendo sem conflitos de interesses. No entanto, o que permitiu produzir unidade foi um conjunto de valores e princípios comuns que orientou a construção do Fórum e serviu de base para a negociação política. Assim, temas potencialmente conflituosos, como o sentido propositivo ou mobilizador do fórum, a relação entre sociedade civil e poder público, partidos políticos e organizações sociais, seu sentido nacional e internacional, foram debatidos e equacionados por um intenso exercício de debate político entre as entidades organizadoras. Esse exercício de diálogo não buscou descaracterizar as diferenças entre os atores sociais envolvidos; ao contrário, foram justamente estas diferenças e a presença dos seus interesses específicos que deram ao FSM o caráter inovador e de sucesso frente aos inúmeros outros eventos de contestação ao atual modelo de globalização e a suas políticas neoliberais.

Há aí também um outro sinal: a criação de um espaço de produção e veiculação de idéias e debates, a partir de temas e propostas organizados por demanda das entidades que participaram do encontro, ao mesmo tempo que ocorreu uma resistência à tentativa de controle e direção por parte de grupos particulares e partidos. Não houve um documento na entrada e nem na saída; não houve mesas na abertura nem no encerramento. Os documentos inicial e final foram substituídos pelo conjunto de documentos produzidos ao longo dos cinco dias de trabalho, garantindo, por um lado, uma ampla aliança propositiva, e de outro a idéia de que a construção de uma alternativa ao modelo atual de globalização não se dará pela via de um novo "pensamento único", mas por um conjunto diverso de propostas e negociações a partir dos diferentes setores e interesses da sociedade. O comitê organizador do fórum se colocou no papel de criar as condições para a expressão e o encontro destas forças sociais.

Essa forma aberta e diversificada de produzir o fórum, marcando a sua natureza democrática e plural, não deslegitima nem impede que se busquem esforços de consensos sistematizados em um documento de princípios ou sobre pontos comuns de luta com os quais todos, ou pelo menos a grande maioria, estariam identificados. Muito menos desqualifica o importante debate a respeito de como as diversas forças sociais presentes se transformam em poder político frente às forças hegemônicas atuais.

A forma combinada de painéis e testemunhos – organizados a partir de convites do comitê organizador para intelectuais e personalidades – com oficinas de trabalho – sugeridas pelos participantes – permitiu que houvesse uma combinação de elementos de análise da realidade atual, com propostas alternativas, testemunhos de práticas sociais e manifestações.

A pluralidade de idéias, a diversidade dos atores e o amplo leque de temas tornaram-se um desafio para quem agora busca compreender e sistematizar o que ocorreu. Este é um aspecto importante a ser considerado nos eventos futuros. Outro aspecto é o de propiciar o encontro e a interlocução entre as diversas redes e temas de modo a permitir que não apenas os diretamente interessados se apropriem do produto do seu grupo, mas que também sirva de influência em outros grupos de interesse. Outro problema que se coloca

é o de como transformar este espaço criativo e multifacetado de idéias e práticas em mecanismos de influência e diálogo com o poder público, construindo e contemplando critérios de prioridades não discriminatórios e não excludentes.

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A lógica de inscrever delegados e delegadas que representavam organizações e movimentos permitiu que o fórum tivesse uma maior capacidade de multiplicação e impacto dos seus resultados a partir do compromisso de cada um. Ao mesmo tempo, esta lógica demarcou um outro ponto de vista avaliativo. O FSM, além de ser um local de manifestações e de debates de idéias e práticas, produziu um espaço poderoso de articulações entre os diversos grupos e pessoas, ampliando o poder das redes de alianças e de compromissos de futuro. Certamente no período entre os vários fóruns inúmeras atividades e manifestações serão potencializadas como conseqüência destes encontros. No FSM os "corredores" fizeram parte estratégica do esforço mobilizador por um mundo melhor.

Do ponto de vista das organizações não-governamentais – as ONGs –, o Fórum Social Mundial representou um espaço fundamental de visibilidade e fortalecimento de um modelo de atuação, aquele identificado com a defesa de direitos e a busca por um desenvolvimento sustentável. Representou ainda uma reafirmação do compromisso que as ONGs têm de aliança e fortalecimento dos atores da sociedade civil, os movimentos sociais, os sindicatos, as igrejas e outros. Frente ao crescente movimento de empurrar as ONGs para a lógica do individualismo e do voluntariado acrítico como motores da ação social, elas reafirmaram-se como atores na construção e na defesa dos direitos coletivos de cidadania, negando-se ao papel de servir aos interesses das políticas neoliberais, de fazer das ONGs braço assistencial das esvaziadas políticas sociais.

O FSM tornou-se uma realidade sem retorno. Seu futuro está condicionado à manutenção do protagonismo e a ampla aliança entre os diversos atores da sociedade civil. Ainda depende de um equacionamento claro de interlocução entre esses atores, os partidos políticos e o poder público, elementos fundamentais na transformação da força política da sociedade civil em poder hegemônico.

Organizar um novo FSM em Porto Alegre em 2002 não será uma responsabilidade pequena. Mas o maior desafio talvez esteja em como fazer do fórum mais um fator de mobilização mundial na luta contra este modelo de globalização. Como transformar este esforço predominantemente brasileiro e gaúcho em um esforço da sociedade civil global por um mundo novo? Muitas são as redes e organizações que querem se integrar como protagonistas na constituição de um amplo movimento político de luta por uma hegemonia global de outra ordem. A solução acordada de globalizar o fórum de modo a fazê-lo simultaneamente em várias partes do mundo, mais internacionalizado, é um desafio com implicações políticas e organizativas de grandes proporções.

Sérgio Haddad é presidente da Associação Brasileira de ONGs (Abong), uma das entidades do comitê organizador do FSM.

Sementes do Futuro

O que vivemos atualmente não é uma crise econômica ou financeira: é uma crise de civilização. A civilização atual, capitalista/industrial, globalizada e neoliberal, tem produzido resultados cada vez mais catastróficos: agravação monstruosa das desigualdades sociais, aprofundamento do abismo entre o Norte e o Sul, intensificação do "horror econômico" do desemprego, acumulação incontrolável da dívida externa do Terceiro Mundo, crescimento em escala geométrica da destruição do meio ambiente. Para os representantes das oligarquias financeiras e políticas dominantes, reunidos em janeiro de 2001 em Davos, na Suíça, estes problemas não existem, ou podem ser facilmente resolvidos pela aplicação das receitas neoliberais: privatizações, "ajustes estruturais", desregulamentação, liberalização dos mercados, "flexibilização" da mão-de-obra, redução dos impostos sobre o capital, corte nos gastos sociais. Ou seja: que tudo continue como agora, numa guerra de todos contra todos que permite aos mais fortes triunfar.

Frente a este estado de coisas, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre representou o projeto de uma nova civilização, a tentativa – ainda incipiente – de desenhar um novo paradigma social, baseado numa escala de valores radicalmente oposta à do sistema existente: em vez da idolatria do mercado e da ditadura do capital financeiro, a satisfação das necessidades sociais, a democracia participativa e o respeito ao meio ambiente; em vez da competição feroz segundo regras social-darwinistas ("a sobrevivência do mais apto"), a solidariedade, a cooperação, a ajuda mútua; em vez de Liberalismo, Eqüidade, Caridade, a velha utopia revolucionária: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

É claro que a formulação deste paradigma alternativo de civilização apenas está começando. Porto Alegre é somente uma etapa inicial no processo histórico de construção de alternativas radicais e de formação de um novo internacionalismo. Um processo que resultará da interação e da convergência, na reflexão e na ação dos próximos anos, das forças que estavam presentes no Fórum: sindicatos e partidos de esquerda, movimentos de mulheres e associações ecológicas, grupos indígenas e intelectuais, movimentos camponeses e de juventude, antiliberais e/ou anticapitalistas dos países do Norte e do Sul.

O Fórum de Porto Alegre em janeiro de 2001 foi um evento sem precedente – embora preparado por toda um série de iniciativas, como a Conferência Intergalática pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, dos zapatistas (Chiapas, 1996), ou as manifestações de Seattle (1999), Praga e Nice (2000). Nunca houve uma assembléia tão ampla, tão representativa, tão significativa das forças que buscam uma alternativa à globalização neoliberal. O sucesso da reunião, em termos de número de participantes, de diversidade social, política e geográfica – 120 países! – dos delegados, e de impacto social, político e midiático, superou as expectativas mais otimistas. Quem teve a chance de participar do Fórum não pôde deixar de ser contagiado por seu ambiente de entusiasmo, pela atmosfera elétrica das plenárias, pela seriedade e intensidade dos debates, pelo clima de solidariedade entre os participantes. A derrota da ofensiva governamental contra o FSM – a ridícula e fracassada tentativa de FHC e seus ministros de expulsar José Bové do Brasil – contribuiu para este estado de espírito.

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O encontro teve duas dimensões inseparáveis:

1. O protesto contra a globalização capitalista neoliberal. Nada mais falso do que a tentativa de uma certa imprensa de separar atividades "de protesto", "puramente negativas", de uma discussão "construtiva" sobre alternativas. O momento de crítica e revolta anti-sistêmica esteve presente, tanto nos debates como em certos atos altamente simbólicos, como a passeata que inaugurou o evento, ou a "limpeza" de uma plantação de transgênicos da multinacional Monsanto por uma equipe do MST apoiada por José Bové e seus amigos. Nesse sentido, Porto Alegre foi a continuação de Seattle, e seu complemento no terreno da reflexão.

2. A busca de alternativas, tanto em termos de uma nova ética social e ecológica, de um novo paradigma de produção e consumo, baseado no princípio de que "o mundo não é uma mercadoria", quanto em termos de reivindicações concretas e imediatas: por exemplo, taxa Tobin sobre as especulações financeiras, supressão dos "paraísos fiscais", abolição da dívida do Terceiro Mundo, moratória sobre os transgênicos.

É óbvio que havia muitas divergências entre os participantes: não é mesmo esta a condição de um debate autenticamente democrático? Percebia-se a existência de um arco de opiniões indo de um pólo mais moderado – crítico ao neoliberalismo e favorável a uma regulação do capitalismo – até outro mais radical, hostil ao próprio sistema capitalista e buscando uma alternativa de tipo socialista. Não escondo minha simpatia pela segunda posição, de inspiração marxista e/ou libertária. Acredito que devemos ser radicais, isto é, no sentido estrito da palavra, arrancar o mal pela raiz (o modo capitalista de produção). Esta discussão é importante e deve continuar. Ela não tomou em nenhum momento no Fórum uma forma sectária ou intolerante, e não impediu de maneira alguma que a grande maioria dos movimentos sociais presentes chegasse a um acordo fundamental, que se exprimiu num documento comum que contém as grandes linhas de uma proposta alternativa (o mesmo ocorreu com a declaração do Fórum dos Parlamentares). A publicação, discussão e difusão destes documentos em cada país é um primeiro desdobramento importante do FSM. O que contribuiu para a produtividade dos debates e para a formulação de conclusões comuns foi a capacidade de escuta recíproca: feministas e sindicalistas, ecologistas e cristãos, militantes marxistas e animadores de ONGs aprenderam uns com os outros, num processo de enriquecimento mútuo que não eliminou os desacordos mas permitiu a todos uma visão mais ampla do projeto alternativo.

Para o futuro encontro – Porto Alegre 2002 e talvez outras cidades – seria interessante escolher temas específicos, para evitar repetir o FSM de 2001. Por exemplo, "Terra e Liberdade", sobre questões agrárias e ecológicas, autonomias indígenas, problemas de nutrição. Ou "O mundo não é uma mercadoria", sobre a OMC, as patentes médicas, a defesa dos serviços públicos. Seria importante associar ao próximo Fórum setores importantes que estiveram pouco representados em 2001: sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais norte-americanos, asiáticos e africanos. A formação de um Conselho Internacional do FSM permitiria dar visibilidade e coerência ao Fórum e constituiria uma sorte de rede permanente da mobilizaçâo internacional antiliberal.

Conseguimos uma vitória importante em janeiro de 2001, mas não há razão para triunfalismos. Este foi apenas o primeiro passo de um largo caminho. O capitalismo, já dizia Walter Benjamin, nunca vai morrer de morte natural. Não há nenhuma garantia, nenhuma lei da economia ou da história, nenhuma "contradição interna" do sistema que assegure seu declínio e sua substituição por uma sociedade mais humana. O poder econômico e político global continua concentrado nas mãos da oligarquia financeira e do grande capital multinacional. O FMI e o Banco Mundial continuam impondo suas desastrosas políticas neoliberais aos povos do Sul. As conseqüências ecológicas da globalização se agravam com uma rapidez inquietante.

Frente a este quadro sinistro e preocupante, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre aparece como um ponto luminoso no mapa planetário: um ponto de partida na construção de uma Internacional da Resistência contra a tirania do capital global, e na busca de um novo modelo de civilização.

Michael Löwy é diretor de pesquisas no CNRS, e ensina na Ecole des Hautes Études, em Paris.

Entre Porto Alegre e Porto Alegre

Estivemos reunidos em Porto Alegre, milhares de pessoas, com o sentimento de estar construindo o sujeito histórico para a geração de um mundo novo. Chegamos porque queríamos estar, queríamos pertencer, queríamos opinar, queríamos ouvir, queríamos voltar a ter o nosso destino em nossas próprias mãos.

Milhares, que sabíamos ter milhões projetados sobre nós, todos os que, descontentes com o mundo reproduzido à imagem e semelhança do dinheiro e da mercadoria, olham para todos os lados buscando sinais de um novo mundo. Os mesmos olhos esperançados que se dirigem para Chiapas, para o MST, para o orçamento participativo, para todos os sinais de discordância, de resistência e construção de espaços novos que prenunciem um novo futuro.Voltaremos a Porto Alegre daqui a um ano. Seremos muitos mais, seremos mais fortes, seremos melhores. Contanto que saibamos captar o que há de novo no mundo depois do Fórum Social Mundial deste ano, a real correlação existente e definir com clareza quais os caminhos pelos quais poderemos avançar na acumulação de forças. Em suma, saibamos ter consciência da nossa situação.

Que condições estão dadas para que se avance na construção de uma nova força histórica? Quanto avançamos e que caminhos temos que trilhar para dar uma virada decisiva nessa luta?

O FSM representou, em primeiro lugar, uma vitória moral, isto é, ficou claro para todos que se ligaram nos dois eventos – Davos e Porto Alegre –, que era aqui que se discutiam os temas fundamentais da humanidade na entrada do novo século. O amplo leque de assuntos em discussão, a composição contrastante dos dois times que se enfrentaram na teleconferência, o tipo de gente que foi a um e a outro, as propostas feitas, tudo remeteu a dois mundos diferentes: o dos de cima e o dos de baixo, o do dinheiro e o dos direitos, o do lucro e o da necessidade, o da especulação e o do trabalho, para dizê-lo em fórmulas simples.

Foi também uma vitória ideológica, ao deslocar os debates – ou acentuar seu deslocamento – para a ótica do social, em detrimento do economicismo reinante. Davos teve que se vergar às preocupações de ONGs, os temas financeiros tiveram que ser tratados nos bastidores. No debate televisivo, os de Davos buscaram desesperadamente pontes de contato e diálogo com Porto Alegre, sem consegui-lo.

Outra vitória ideológica foi o reconhecimento de que um outro pensamento é possível, presente simplesmente na aceitação do debate, embora a grande imprensa mundial já houvesse consagrado a contraposição de dois mundos pela cobertura quase eqüitativa para os dois eventos.

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No plano teórico e de propostas é preciso ainda recolher todo o material apresentado para que um balanço real seja possível, embora já saibamos, pelo nível de elaboração conhecido, que há amplos pontos de coincidência nos diagnósticos a respeito da situação do planeta: o período atual do capitalismo, a relação de forças existente, as principais linhas de ação para a superação do neoliberalismo, a mercantilização de tudo como obstáculo fundamental para a construção de um outro mundo.

As novas condições de luta pressupõem formulações teóricas e estratégicas que requerirão um esforço específico de elaboração, dadas a novidade nas formas de acumulação de forças e as novas modalidades que a diversidade de conflitos – com formas de organização diferenciadas e complexas relações entre diferentes movimentos, partidos e ONGs – impõe.

Temos assim força moral e social acumulada, assim como um certo capital teórico. No entanto, essa força enfrenta uma debilidade enorme no campo político. Desde Seattle conseguimos mudar o cenário ideológico no mundo, porém isso não fez com que aparecesse – até aqui, pelo menos – nenhum governo novo defendendo posições pelo menos próximas às nossas. Embora deslocados pela nova polarização mundial – que já não corresponde a seus já velhos discursos sobre a "modernidade" e o "atraso" –, os governantes e a tecnocracia econômica dos organismos internacionais, com os seus ventríloquos, puderam seguir adiante com a farra especulativa. Não deixou de circular um só dólar nos circuitos especulativos do mundo. Nenhuma força política significativa assumiu posições diferentes das que tinha em meados da década passada. A frente de luta contra o neoliberalismo não conta com governos, como os que existiam no Terceiro Mundo, sem falar na desaparição de regimes que se proclamavam anticapitalistas. O que não quer dizer que não possam começar a aparecer, embora o Brasil seja ainda um caso isolado de país em que seja possível conquistar um governo sintonizado com o FSM no ano que vem.

Essa nova situação nos coloca a necessidade de encontrar ferramentas teóricas que nos permitam encarar as novas formas de acumulação de forças nas condições atuais de luta. Como passar dessa força moral e social a força política? Como apoiarmo-nos nos governos locais e fazer deles alavancas para conquistar governos nacionais e, ao mesmo tempo, articular alianças internacionais? Como combinar programas locais de auto-organização e resistência com mecanismos que lhes permitam sobreviver e reproduzir-se, em meio a uma dinâmica avassaladora de financeirização e mercantilização que busca ocupar todos os espaços das nossas sociedades?

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O maior desafio que temos pela frente é assim o de forjar força política para que possamos efetivamente começar a transformar o mundo feito à imagem e semelhança do liberalismo econômico.

Contamos com uma série de formulações que nos permitem reassumir a iniciativa política, algo que nos faltou tanto no período anterior e que fez com que ficássemos em grande parte reduzidos a uma atitude de resposta a iniciativas neoliberais, capazes estas de definir os temas e os termos do debate.

Contamos agora com a Frente de Prefeitos, que irá à reunião do G-8, na Itália, com as propostas da Frente de Parlamentares e da Via Campesina, entre tantas outras.

No nosso caso, temos diante de nós as definições sobre a inserção internacional dos países da América Latina, combate que joga suas cartas decisivas este ano, com as reuniões de Buenos Aires – no começo de abril – e do Quebec – no fim de abril –, onde os EUA e seus aliados continentais pretendem assinar os acordos da Alca, cuja entrada em vigência cogita-se até mesmo ser antecipada para 2003. (Provavelmente uma manobra para deslocar a discussão, tirando-a do foco central: assinar ou não os acordos e, talvez, ao final, fazer a "concessão" de deixar para a data original, conquistando o essencial: os acordos.)

Não nos limitaremos ao protesto em Buenos Aires e no Quebec. Trabalhamos para que parlamentares da maior quantidade possível de nações do continente possam apresentar projetos de lei similares nos congressos dos seus países, obrigando seus governos a convocarem um plebiscito antes de assinar qualquer acordo referente à Alca. Ainda que estes não sejam aprovados, como no caso da dívida externa no Brasil, em que conseguimos que mais de 6 milhões de pessoas votassem, faremos plebiscitos convocados por organizações populares. Oxalá no mesmo dia – por exemplo, um 12 de outubro – para que os povos latino-americanos se pronunciem sobre a forma de inserção – soberana ou subordinada – no mundo atual.

Contaremos com uma proposta alternativa de integração, elaborada no seminário "América Latina: integração soberana ou subordinada?", realizado na Uerj, no Rio de Janeiro, no começo de 2001.

Além disso, deveremos desenvolver o maior número de iniciativas políticas que apontem na direção do mundo solidário e justo que desejamos. Iniciativas sobre os transgênicos, sobre a fome na África, contra o Plano Colômbia, entre outras.

O principal é nos sentirmos todos militantes na construção de um mundo novo, usarmos o melhor da nossa capacidade de elaboração teórica, da nossa criatividade política, da nossa sensibilidade social, do nosso calor humano, da nossa capacidade de acreditar que um outro mundo é possível e absolutamente necessário, para fazer de Porto Alegre 2001 um ponto de não retorno, fazer do FSM uma alavanca para a construção da força social, moral, política e cultural que nos faça negar o mundo como mercadoria, para a construção de um mundo à imagem e semelhança do que de melhor a humanidade já produziu. Para dizê-lo numa palavra – de um mundo à imagem e semelhança do Che Guevara.

Emir Sader é sociólogo, professor na UERJ, autor do livro Século XX – Uma biografia não-autorizada, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo

Marco histórico

O Fórum Social Mundial foi um evento da maior relevância política e, certamente, é um marco histórico da resistência ao neoliberalismo e à globalização excludente e um passo importante na construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico e ecologicamente sustentável e socialmente mais justo e solidário.

As expectativas dos organizadores foram largamente ultrapassadas: eram esperados quando muito 2.500 participantes e compareceram 4 mil delegados, de quase mil organizações de mais de 120 países. Vieram mais de quinhentos parlamentares e prefeitos brasileiros e de outros países e alguns governadores de estado. A esses se juntaram aproximadamente 16 mil outras pessoas, que participaram das dezenas de conferências e cerca de 400 oficinas e dos encontros e manifestações que acompanharam o evento.

O Fórum Social Mundial, como primeira experiência, teve naturalmente algumas lacunas. As representações da Ásia e da África foram relativamente pequenas, até porque é sempre difícil o Sul encontrar o Sul. Há também quem avalie que alguns temas estiveram insuficientemente contemplados, como a questão das lutas contra a discriminação racial, sexual ou de gênero.

Por outro lado, é difícil um esforço dessa magnitude concluir sem uma resolução final. Mas é evidente que, no atual estágio, seria artificial tirar uma resolução que contemplasse um leque tão amplo de entidades, partidos e participantes. O que não impediu que tivéssemos uma Carta Parlamentar bastante consistente e uma nota, assinada por centenas de sindicatos, organizações não governamentais e movimentos sociais, reafirmando seu rechaço às políticas neoliberais e seu compromisso com a continuidade do Fórum e com as mobilizações que precederão sua próxima reunião.

O Fórum ensejou convergências políticas relevantes e favoreceu a formação de redes a partir de temas de interesse comum que podem potencializar a representação política dos excluídos. Permitiu também a elaboração de subsídios para a formulação de políticas alternativas ao atual modelo econômico e, principalmente, foi o contraponto, tardio mas absolutamente indispensável, ao Fórum Econômico Mundial, uma fundação dirigida pela elite da "comunidade de negócios", as mil empresas globais mais importantes do mundo, que se reúne anualmente em Davos, na Suíça, para articular, a escala internacional, os interesses do grande capital.

Nessa perspectiva, a reflexão sobre o papel histórico do Fórum Social Mundial, que ao contrário de Davos pretende representar os interesses dos povos, deve ser desenvolvida a partir de uma análise mais aprofundada sobre o processo de globalização.

O processo de globalização financeira, deflagrado a partir do rompimento do acordo de Bretton Woods e das políticas de desregulamentação financeira adotadas pelos Estados Unidos durante a era Reagan, tem sido acompanhado pela construção, ainda inconclusa, dos mecanismos operacionalizadores e instâncias de decisão por meio dos quais se institucionaliza o novo ordenamento da economia mundial de acordo com os interesses geopolíticos e econômicos hegemônicos na atual fase de expansão do capitalismo.

O eixo central desse processo são as políticas neoliberais de ajuste estrutural e "reformas", impostas de maneira generalizada aos países periféricos e ao segundo escalão das economias capitalistas desenvolvidas. Em torno dele se estrutura o movimento de formação das instituições do mercado global, que assumiu diversas formas. Exemplos típicos são a centralização no Tesouro norte-americano e no seu braço operacional, o Fundo Monetário Internacional, da direção e gerenciamento dessas políticas nos países e regiões cuja integração ao movimento de globalização da economia mundial tem um caráter reflexo ou subordinado; a criação e hierarquização da Organização Mundial do Comércio, encarregada de impor e monitorar uma liberalização comercial assimétrica que protege os interesses dos países que integram o núcleo central do sistema capitalista mundial e garante as práticas monopolistas das grandes corporações; a extensão e regulamentação da área de patentes, que preserva o controle destes países e corporações sobre o progresso tecnológico e sua difusão; e a tentativa, até agora relativamente frustrada, de estabelecimento de um acordo multilateral de investimentos de âmbito planetário.

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Complementa este processo de construção dos alicerces institucionais da "nova ordem" econômica e política o surgimento de mecanismos próprios de articulação, a escala global, dos interesses e influências da "comunidade de negócios" – a grande beneficiária da globalização. Este foi, precisamente, o caso do Fórum Econômico Mundial. Estruturado inicialmente em 1971 como uma organização sem fins de lucro, de âmbito europeu, transforma-se numa associação em 1976 e assume sua identidade global em 1987, ampliando progressivamente a cobertura geográfica e a extensão de suas atividades, que passam a envolver, além dos executivos-chefes das empresas, líderes políticos, acadêmicos, jornalistas e artistas.

Foi por meio desse conjunto de instituições representativas dos interesses hegemônicos dentro do processo de globalização que se alimentou a difusão do "pensamento único" – o neoliberalismo não era somente o melhor, mas também o único caminho para o progresso econômico e social – e se impôs a adoção, urbe et orbe, das políticas contracionistas e excludentes que integram seu receituário.

Os resultados dessas políticas são conhecidos: o "novo mundo feliz" da globalização provocou o agravamento das desigualdades entre países, aumentou em toda parte a pobreza, a concentração da renda e da riqueza e levou o desemprego a níveis críticos. Esses fenômenos não são alheios ao deslocamento das funções de regulação da economia do Estado para os mercados financeiros, que teve como contrapartida a subordinação de todas as políticas – de emprego, de crescimento econômico, de desenvolvimento social, de investimentos – ao objetivo de integrar e adequar as economias nacionais à economia global comandada pelos interesses do capital financeiro.

A globalização e as políticas neoliberais por meio das quais são modeladas as economias nacionais não produziram somente efeitos econômicos e sociais daninhos, mas também debilitaram as instituições democráticas. A agenda e as prioridades dos países já não são determinadas pelos governos ou pelos parlamentos nacionais, mas sim pelos operadores privados, principalmente financeiros, que atuam em escala internacional. A preservação e o aperfeiçoamento da democracia requerem a reversão deste processo de esvaziamento institucional e de diluição dos direitos sociais. Supõem a implantação de normas reguladoras e controles sobre o capital financeiro que permitam restabelecer a primazia do político e do cidadão sobre os critérios de rentabilidade do capital e de eficiência privada com que se avaliam, dentro do atual modelo, a utilidade, a eficiência e o próprio direito à vida das pessoas.

No caso da América Latina, esse processo de institucionalização da globalização excludente tem uma terceira vertente, a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A Alca é muito mais que um projeto de integração comercial. Sua proposta de constituição e os trabalhos que já se vêm desenvolvendo para sua implantação envolvem temas como o acesso a mercados, investimentos, serviços, compras do setor público, agricultura e propriedade intelectual. Para a maioria dos países da região, principalmente as economias de maior porte, a Alca, dada a desproporção de tamanho entre elas e a economia norte-americana e o caráter não complementar das estruturas de recursos e produção, significará a frustração das possibilidades de crescimento diversificado da agricultura, da indústria e dos serviços. Em realidade, a Alca é um projeto estratégico de consolidação da hegemonia dos EUA na América Latina, que nos termos em que está colocado representa uma regressão a formas de colonialismo que gerarão uma profunda instabilidade econômica, social e política na região. Não por acaso este foi um dos temas sobre o qual o Fórum evidenciou a necessidade de construção de um movimento de resistência dos países latino-americanos, que já se expressa nas propostas do Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo, em reunião recente realizada no México.

À margem das conclusões sobre essas e outras questões relativas ao diagnóstico do processo de globalização e de suas conseqüências, que são de extrema utilidade para, em cada caso e de acordo às condições concretas de cada país, propor caminhos alternativos ao atual modelo econômico, é importante recordar que a construção de um novo projeto de desenvolvimento que promova o crescimento e a distribuição eqüitativa de seus benefícios, resgate a soberania nacional, universalize os direitos sociais e fortaleça a democracia, é um processo histórico cujos traços definitivos dificilmente poderão ser definidos, da maneira acabada, a priori.

Nesse sentido, a utopia que compartilhamos nos ensina o rumo a seguir e os limites que devemos respeitar para não transformar nossos princípios em meras declarações de intenções sem conteúdo prático. Mas as formas como esse sonho de progresso, solidariedade e desenvolvimento humano se materializará serão produto das lutas concretas e da criatividade de cada um de nossos povos frente aos desafios gigantescos que nos estão sendo colocados pela barbárie neoliberal. O Fórum Social Mundial é, nesta ótica, um espaço privilegiado para o intercâmbio de experiências e articulação de ações que ajudem a enfrentar globalmente esses desafios.

Aloizio Mercadante é deputado federal (PT/SP) e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.

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