Ainda sob as emoções do encerramento do primeiro Fórum Social Mundial, observando a expressão das pessoas presentes, me perguntava se seria possível construir uma análise consistente que pudesse abarcar todas as dimensões do acontecido. De lá para cá, tenho tido a oportunidade de recolher informações, ler artigos, discutir em eventos e acompanhar muitos aspectos e abordagens que parece vão se multiplicando nas suas interpretações e desdobramentos. Minha sensação inicial se confirmava, tamanhos são os aspectos que podem ser tomados como elementos de análise. Assim, o que aqui procuro realizar é uma contribuição a este conjunto de opiniões interpretativas.
Inicialmente há que se notar que o enorme interesse pelo evento e sua impressionante repercussão por si só já demonstram a importância do FSM. Sua missão simbólica de ser um "contraponto ao Fórum Econômico Mundial" foi atingida no primeiro ano e de forma espetacular.
Que fatores explicariam o sucesso do evento no plano nacional e internacional? O primeiro é o da boa idéia, da oportunidade. O Fórum soube capitalizar uma insatisfação latente e ao mesmo tempo crescentemente explícita sobre como o mundo vem se organizando, e, particularmente, como a economia capitalista vem se reproduzindo.
Seu sentido concreto ficou demarcado como sendo um espaço produzido pela sociedade civil que, além de ser um espaço de denúncia e protesto, foi também um local de propostas para a construção de um outro modelo de globalização e de organização das sociedades.
Como disse Anibal Quijano, sociólogo peruano: "o importante deste Fórum é que reinicia em nível mundial e em alto nível não só uma resistência, mas o começo de uma formulação de iniciativas eficazes que vão estender-se internacionalmente como uma nova possibilidade. Toda a diversidade e heterogeneidade que observei aqui mostram que há uma imensa riqueza de práticas sociais novas, o que demonstra que há uma mudança muito significativa na atitude da população". "É um encontro da militância com intelectuais", comentou Atílio Borón, cientista político argentino.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato do FSM haver se organizado sob uma frase de ordem afirmativa e geral, "um outro mundo é possível", combinada com uma ampla base diversa de atores sociais do campo democrático da sociedade civil (ONGs, sindicatos, movimentos sociais, culturais e populares, setores empresariais, igrejas, estudantes, outros). Esta combinação permitiu construir uma aliança que foi se renovando, negociada politicamente passo a passo.
Seria ingenuidade olhar esta aliança como sendo sem conflitos de interesses. No entanto, o que permitiu produzir unidade foi um conjunto de valores e princípios comuns que orientou a construção do Fórum e serviu de base para a negociação política. Assim, temas potencialmente conflituosos, como o sentido propositivo ou mobilizador do fórum, a relação entre sociedade civil e poder público, partidos políticos e organizações sociais, seu sentido nacional e internacional, foram debatidos e equacionados por um intenso exercício de debate político entre as entidades organizadoras. Esse exercício de diálogo não buscou descaracterizar as diferenças entre os atores sociais envolvidos; ao contrário, foram justamente estas diferenças e a presença dos seus interesses específicos que deram ao FSM o caráter inovador e de sucesso frente aos inúmeros outros eventos de contestação ao atual modelo de globalização e a suas políticas neoliberais.
Há aí também um outro sinal: a criação de um espaço de produção e veiculação de idéias e debates, a partir de temas e propostas organizados por demanda das entidades que participaram do encontro, ao mesmo tempo que ocorreu uma resistência à tentativa de controle e direção por parte de grupos particulares e partidos. Não houve um documento na entrada e nem na saída; não houve mesas na abertura nem no encerramento. Os documentos inicial e final foram substituídos pelo conjunto de documentos produzidos ao longo dos cinco dias de trabalho, garantindo, por um lado, uma ampla aliança propositiva, e de outro a idéia de que a construção de uma alternativa ao modelo atual de globalização não se dará pela via de um novo "pensamento único", mas por um conjunto diverso de propostas e negociações a partir dos diferentes setores e interesses da sociedade. O comitê organizador do fórum se colocou no papel de criar as condições para a expressão e o encontro destas forças sociais.
Essa forma aberta e diversificada de produzir o fórum, marcando a sua natureza democrática e plural, não deslegitima nem impede que se busquem esforços de consensos sistematizados em um documento de princípios ou sobre pontos comuns de luta com os quais todos, ou pelo menos a grande maioria, estariam identificados. Muito menos desqualifica o importante debate a respeito de como as diversas forças sociais presentes se transformam em poder político frente às forças hegemônicas atuais.
A forma combinada de painéis e testemunhos – organizados a partir de convites do comitê organizador para intelectuais e personalidades – com oficinas de trabalho – sugeridas pelos participantes – permitiu que houvesse uma combinação de elementos de análise da realidade atual, com propostas alternativas, testemunhos de práticas sociais e manifestações.
A pluralidade de idéias, a diversidade dos atores e o amplo leque de temas tornaram-se um desafio para quem agora busca compreender e sistematizar o que ocorreu. Este é um aspecto importante a ser considerado nos eventos futuros. Outro aspecto é o de propiciar o encontro e a interlocução entre as diversas redes e temas de modo a permitir que não apenas os diretamente interessados se apropriem do produto do seu grupo, mas que também sirva de influência em outros grupos de interesse. Outro problema que se coloca
é o de como transformar este espaço criativo e multifacetado de idéias e práticas em mecanismos de influência e diálogo com o poder público, construindo e contemplando critérios de prioridades não discriminatórios e não excludentes.
A lógica de inscrever delegados e delegadas que representavam organizações e movimentos permitiu que o fórum tivesse uma maior capacidade de multiplicação e impacto dos seus resultados a partir do compromisso de cada um. Ao mesmo tempo, esta lógica demarcou um outro ponto de vista avaliativo. O FSM, além de ser um local de manifestações e de debates de idéias e práticas, produziu um espaço poderoso de articulações entre os diversos grupos e pessoas, ampliando o poder das redes de alianças e de compromissos de futuro. Certamente no período entre os vários fóruns inúmeras atividades e manifestações serão potencializadas como conseqüência destes encontros. No FSM os "corredores" fizeram parte estratégica do esforço mobilizador por um mundo melhor.
Do ponto de vista das organizações não-governamentais – as ONGs –, o Fórum Social Mundial representou um espaço fundamental de visibilidade e fortalecimento de um modelo de atuação, aquele identificado com a defesa de direitos e a busca por um desenvolvimento sustentável. Representou ainda uma reafirmação do compromisso que as ONGs têm de aliança e fortalecimento dos atores da sociedade civil, os movimentos sociais, os sindicatos, as igrejas e outros. Frente ao crescente movimento de empurrar as ONGs para a lógica do individualismo e do voluntariado acrítico como motores da ação social, elas reafirmaram-se como atores na construção e na defesa dos direitos coletivos de cidadania, negando-se ao papel de servir aos interesses das políticas neoliberais, de fazer das ONGs braço assistencial das esvaziadas políticas sociais.
O FSM tornou-se uma realidade sem retorno. Seu futuro está condicionado à manutenção do protagonismo e a ampla aliança entre os diversos atores da sociedade civil. Ainda depende de um equacionamento claro de interlocução entre esses atores, os partidos políticos e o poder público, elementos fundamentais na transformação da força política da sociedade civil em poder hegemônico.
Organizar um novo FSM em Porto Alegre em 2002 não será uma responsabilidade pequena. Mas o maior desafio talvez esteja em como fazer do fórum mais um fator de mobilização mundial na luta contra este modelo de globalização. Como transformar este esforço predominantemente brasileiro e gaúcho em um esforço da sociedade civil global por um mundo novo? Muitas são as redes e organizações que querem se integrar como protagonistas na constituição de um amplo movimento político de luta por uma hegemonia global de outra ordem. A solução acordada de globalizar o fórum de modo a fazê-lo simultaneamente em várias partes do mundo, mais internacionalizado, é um desafio com implicações políticas e organizativas de grandes proporções.
Sérgio Haddad é presidente da Associação Brasileira de ONGs (Abong), uma das entidades do comitê organizador do FSM.