"O objetivo constante é dividir e dispor as várias funções de tal modo que uma possa ter controle sobre a outra".
James Madison
Novembro de 1983: um ousado PT, reunido em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, lança, diante de uma apenas razoável audiência, a conclamação ao povo brasileiro para a luta pelas "Diretas- já". Dezembro de 1987: o 5º Encontro Nacional petista, em Brasília, ancorado em um frágil leque de alianças partidárias, dá a largada para mais uma jornada memorável: "Brasil Urgente. Lula Presidente". Ambas iniciativas, tímidas a princípio, resultaram nas maiores demonstrações de cidadania que este país já teve oportunidade de vivenciar. Nas duas ocasiões, tratava-se de afirmar uma relação de responsabilidade política direta entre o povo e a titularidade da chefia de governo; e que esta responsabilidade fosse forjada tendo a democracia como valor inarredável e o signo das mudanças profundas como compromisso. Apostava-se, politicamente, nas inequívocas potencialidades do presidencialismo democrático.
É de se estranhar, pois, que este "insolente" partido acusado de "fazer o jogo do Maluf", quando objetou a farsa do Colégio Eleitoral, por ser um golpe à soberania popular esteja, agora, revendo suas posições e questionando possibilidades radicalmente democráticas, por ele descortinadas sob a égide do presidencialismo ao longo de apenas uma década de existência.
Por certo, a vitória de Collor na eleição para a Presidência da República e os descaminhos da atual administração levam a que defensores do parlamentarismo ganhem adeptos nas hostes petistas. Os petistas parlamentaristas, ao atribuírem ao presidencialismo a matriz das vicissitudes brasileiras, contribuem para apagar da memória nacional as condições reais (desiguais) em que se deu a disputa pelo cargo presidencial; buscam fazer crer, por indução, que o presidencialismo daria margem a opções irracionais por parte do eleitorado. Assim, o governo Collor não seria um acidente de percurso mas uma decorrência previsível de um processo de escolha da chefia de governo, que propiciaria a manipulação do senso comum e o inconsciente das massas. Mais grave, porém, é o fato de sofismarem quanto à eficiência do parlamentarismo numa época em que se observa uma crise profunda, de amplitude mundial, quanto aos padrões de legitimação e institucionalização. Imputam ao presidencialismo defeitos que também poderiam ser conferidos ao parlamentarismo. No afã de frustrar possíveis déspotas, frustram os líderes democraticamente eleitos pelo povo.
Para que o PT se posicione de forma segura, o debate há de se dar em bases que permitam aferir o grau de legitimidade e eficácia governamental de um e outro regime de governo. Para tanto, é necessário que se esclareçam as diferenças entre o parlamentarismo e o presidencialismo.
No sistema parlamentarista de governo, o Executivo é uma espécie de delegação do Parlamento a que se atribui a função de governar, em consonância com um programa aprovado pela maioria da casa legislativa. Estabelece-se um processo político semelhante a uma pirâmide de três degraus: na base está o titular da soberania, o povo; sobre esta base assenta-se um órgão de representação, o parlamento; e no vértice, sobre esta camada intermediária, instala-se um colégio mais reduzido, uma "comissão de confiança" do Parlamento, o governo (gabinete). A chefia deste governo é atribuída a um primeiro-ministro eleito não diretamente pelo povo, mas por um colégio eleitoral, o Parlamento, após indicação de um árbitro das disputas políticas, o chefe de Estado - um monarca, ou um presidente da República. Assim, no parlamentarismo, as atribuições de chefe de governo e as de chefe de Estado são deferidas a pessoas distintas. A vontade do povo manifesta-se somente na constituição do Parlamento, daí falar-se que o regime parlamentarista é um regime monista. Isto é, de urna única vontade popular.
No sistema presidencialista, o governo representativo baseia-se em uma separação (restrita) de poderes, estabelecendo-se uma independência relativa entre Executivo e Legislativo. O povo, da mesma forma que escolhe o Parlamento, também elege diretamente o chefe de governo, que soma às funções executivas as de chefe de Estado. Desta forma, fixando-se poderes distintos (Executivo e Legislativo), desconcentrando-se as funções estatais e submetendo-se ambos - Parlamento e governo - ao voto popular, reforça-se no presidencialismo o princípio do exercício da soberania pelo sufrágio universal. Tanto o governo quanto a câmara de representação são politicamente responsáveis perante o próprio povo. A legitimidade do governo por este ângulo é maior no presidencialismo, posto que o consenso democrático deriva de uma relação direta entre os cidadãos e o titular da chefia de governo. O regime de governo presidencial é dualista, isto é, de dupla vontade popular, resultando num permanente e positivo tensionamento político. Combina a recorrência periódica ao voto universal e o sistema de freios e contrapesos que só o presidencialismo proporciona com a desconcentração, separação e controle de mão dupla do próprio poder.
No que se refere à eficácia governamental, poder-se-ia argumentar que no presidencialismo a existência de um parlamento em oposição ao governo gera graves conflitos administrativos, sobretudo se o chefe do Executivo, usando de uma prerrogativa que lhe é inerente neste sistema, veta matérias legais aprovadas na casa legislativa. A tese, todavia, não prospera. O ordenamento jurídico-constitucional pode consagrar o instituto da vinculação do voto dado ao postulante da chefia do Executivo ao que for conferido à sua sigla partidária ou coligação (na chapa apresentada ao Parlamento) e combinar esta hipótese à coincidência de mandatos. Sem prejuízo da representação proporcional de minorias, este mecanismo possibilitaria a configuração de sólida base de apoio parlamentar e o fortalecimento das agremiações partidárias. Ademais, deveríamos indagar, se não tem contribuído para a exaltação do modelo norte-americano de sistema de governo o fato de nos EUA, tradicionalmente, se eleger o presidente da República de um partido e constituir-se um legislativo oposicionista. Como disse numa decisão da Suprema Corte em 1986 seu então presidente, Warren Burquer, as instituições do governo foram deliberadamente dispostas para criar um sistema que produzisse "conflitos, confusão e discordância".
Argumenta-se que o parlamentarismo seria mais maleável em face da vinculação do governo ao humor predominante no Legislativo, o que lhe conferiria maior estabilidade política. No entanto, o presidencialismo comporta modulação análoga, porém mais democrática. Não falamos aqui do impeachment do chefe de governo presidencial, na eventualidade de prática de crime de responsabilidade, mas do recall, ou seja, a destituição, por petição popular da própria representação parlamentar ou executiva (revogabilidade dos mandatos). A alegada flexibilidade do parlamentarismo é ainda questionável na medida em que se observa um progressivo constrangimento, em distintos ordenamentos constitucionais, das oportunidades de proposição de moções de censura aos governos instalados (dilatação dos interstícios para apresentação de proposições de desconfiança). A par disso, a instabilidade política é uma questão que se coloca para o parlamentarismo, quando o chefe de Estado (presidente ou monarca) se vê diante da necessidade de optar discricionariamente entre a dissolução do governo ou a dissolução do parlamento, em razão da aprovação de um voto de desconfiança ou de simples rejeição de uma matéria de interesse do gabinete.
Também não procedem as críticas de que o presidencialismo conduziria ao governo imperial ou caudilhesco. Ressaltamos aqui que o fenômeno da concentração de poderes é verificado em maior medida no parlamentarismo. Com efeito, podemos afirmar que, hoje, os parlamentos inglês, alemão, italiano, espanhol, entre outros regimes parlamentaristas, encontram-se subjugados à dinâmica imposta por seus respectivos governos e não o contrário. É o que se observa no exame de pautas de votação compostas quase que exclusivamente de matérias consideradas relevantes pelo governo, reconhecendo-se aos executivos a faculdade de editar providências cautelares de caráter legislativo (government by decree na Inglaterra; ordonnances na França; provvedimenti con forza di legge na Itália; decretos leyes na Espanha etc). O mesmo não acontece nos EUA (presidencialista), onde o presidente da República não possui a iniciativa no processo legislativo, não detém a prerrogativa de editar medidas extraordinárias com força de lei, não tem controle sobre a elaboração do orçamento e sequer pode formar seu secretariado (ministério) sem o agreement de um órgão legislativo como o Senado Federal. Por essas e outras razões é que se vê não no presidente dos EUA, mas no primeiro-ministro da Grã-Bretanha uma figura política imperial.
De mais a mais, se é dado que no presidencialismo as funções de chefia de Estado e chefia de governo se confundem numa única pessoa, o que tem suscitado equivocadamente o rótulo de "autocracia", correta é a constatação de que isso impede a emergência de conflitos institucionais que, no parlamentarismo, emanam da interseção de atribuições destes dois agentes políticos. As dificuldades aumentam, ainda mais, em sistemas híbridos semi parlamentaristas (França, por exemplo) ou semi presidencialistas (Portugal, por exemplo).
No semipresidencialismo e no semi parlamentarismo, conquanto haja separação entre as funções do chefe de Estado e do chefe do governo, aquele (o presidente da República, no caso) é eleito diretamente pelo povo em oposição ao parlamentarismo clássico. É bom lembrar que os petistas parlamentaristas têm, sem exceção, defendido a eleição direta do presidente da República, descartando a implantação do sistema parlamentarista original. Registramos, no entanto, que não tem sido esclarecido por adeptos desta idéia no interior do partido se o chefe de Estado teria a prerrogativa de vetar as proposições de lei votadas pelo Parlamento, donde o sistema pretendido seria um semi presidencialismo, tal como existe na República portuguesa, ou se apenas ser-lhe-ia cometida a faculdade de propor ao Parlamento a reapreciação de proposições legais já votadas, no que o regime escolhido seria um semi parlamentarismo ao estilo francês.
Se os que advogam estes sistemas mistos vêem na eleição direta do presidente da República um antídoto contra os conchavos fisiológicos do jogo parlamentar, resta evidente que os momentos de crise alimentam conflitos de competência entre o chefe de governo (primeiro-ministro) e o chefe de Estado (presidente). A renúncia do presidente de Portugal, Mário Soares, à condição de filiado ao Partido Socialista Português ante a perda de sua maioria parlamentar na Assembléia Nacional; as pressões para que o presidente da França, François Mitterrand, reduza o tempo de seu segundo mandato; a inusitada proposta de Lech Walesa, presidente da Polônia, de escolher a si próprio como "primeiro-ministro", após sua recente derrota eleitoral demonstram, per si, a falta de operacionalidade atual de mecanismos híbridos de governo.
Ponto sensível que os petistas parlamentaristas evitam abordar: se no parlamentarismo o chefe de Estado é o comandante supremo das Forças Armadas, caberia ao chefe de governo indicar os ministros militares? Estes cairiam juntamente com o restante do gabinete, em caso de aprovação de voto de desconfiança? Poderiam ser submetidos à moção de censura isoladamente?
Os adeptos do parlamentarismo não têm avaliado devidamente as condições reais em que este regime seria implantado num país onde vige uma legislação eleitoral que distorce a representação popular; onde impera um clientelismo em detrimento de alinhamentos programático-ideológicos, dando-se primazia a composições governamentais a partir de um centro politicamente difuso e cambiante; onde inexiste uma administração estratificada, com altos funcionários politicamente neutros, moralmente isentos, capazes de garantir a continuidade administrativa durante os períodos de dissolução e formação de governos; onde se adota a forma federativa de Estado e não se fala em estender o parlamentarismo aos estados-membros e aos municípios; onde não estão previstas eleições para o Congresso Nacional, em caso de vitória do parlamentarismo no plebiscito de 1993, para a necessária tarefa de adaptação do texto constitucional.
A solução a nosso ver estaria em um presidencialismo renovado, em que a democracia, assumida como de natureza conflitiva, se cristalizasse através de duas vias: as eleições legislativas e a eleição presidencial; em que, enfim, o sistema de controle e equilíbrio (check and balance) entre os poderes pudesse funcionar efetivamente. Este presidencialismo o Brasil ainda não conheceu. Acreditamos que vale a pena experimentá-lo.
Antes de atribuirmos os males estruturais e de ocasião ao "caudilho de plantão", deveríamos exigir que o Congresso Nacional exercesse prerrogativas já previstas na Constituição, que possibilitam barrar arroubos autoritários de quem quer que venha a ocupar o Palácio do Planalto. Queremos dizer com isto que está na hora de cobrarmos a responsabilidade de um parlamento negligente no exame de admissibilidade de medidas provisórias inconstitucionais; que evita sustar atos normativos do Executivo que exorbitam do seu poder regulamentar; que tende a aprovar, incontinenti, as contas públicas viciadas; que não zela pela preservação de sua competência legislativa face à atribuição normativa de outros poderes; que não agiliza a elaboração da legislação infraconstitucional, necessária para que a Constituição tenha plena eficácia; que faz do Orçamento da União um balcão de negócios e barganhas eleitoreiras; que obstrui inquéritos parlamentares de investigação de atos irregulares do governo; que, por omissão, não consegue derrubar vetos presidenciais em matérias importantes, como a política salarial e os planos de benefícios previdenciários. Eis aí o Congresso Nacional que poderia, no parlamentarismo, eleger, em nome do povo, o governo do Brasil!
Por último: aos que sustentam, ligeiramente, que o presidencialismo deixou como legado à cultura política nacional o Estado Novo de Vargas e a ditadura militar, recordamos que o parlamentarismo ofereceu ao mundo os desvarios e horrores dos governos de dois primeiros-ministros tristemente famosos: Benito Mussolini e Adolf Hitler.
Sandra Starling é deputada federal do PT/MG.