É difícil descrever em poucas páginas uma proposta estratégica de modo globalizador e com detalhes muitas vezes fundamentais para uma melhor compreensão dos seus diversos aspectos. Procuraremos, assim, abordar apenas alguns pontos da questão.
O conceito de estratégia do Acúmulo de Forças Prolongado (AFP) tem sido identificado com um processo pacífico, que precede uma ruptura revolucionária, mais ou menos rápida em relação ao período anterior de um acúmulo. Diferente, por exemplo, da Guerra Popular Prolongada (GPP), que prevê a luta armada por um longo espaço de tempo. Diferente também de uma estratégia reformista. Neste caso, os avanços políticos, organizativos e institucionais não seriam "acúmulo de forças", mas a própria transformação social.
A insurreição não é incompatível com a GPP ou com o AFP. A insurreição não é uma estratégia em si. Ela pode fazer parte de uma estratégia de GPP ou AFP, como o momento decisivo de derrubada de um poder e constituição de outro. Portanto, o conceito de Estratégia Insurrecional não define muita coisa.
A denominação de uma estratégia não determina, por si só, todas as características e formas de luta utilizadas ou excluídas. Por exemplo, na GPP, em determinado momento, o mais importante pode não ser fazer a guerra propriamente dita, mas a tarefa de prepará-la. E, estando ela em andamento, é possível combiná-la com inúmeras ações legais, de massa, institucionais, pacíficas, econômicas, culturais, parciais, regionais etc., que permitam enfraquecer o inimigo e fortalecer as forças revolucionárias.
Da mesma forma no AFP. Se este se dá hoje principalmente através de lutas amplas, de massa, legais, da ocupação de espaços institucionais, do exercício de parcelas do poder estatal, isto não implica que será assim até que ocupemos todo o Estado burguês, ou sejamos hegemônicos nele e na sociedade o suficiente para impedir qualquer tentativa de golpe violento da burguesia.
Que legalidade?
Hoje não há razão para nos limitarmos a formas e instrumentos legais, reconhecidos pelo Estado e legislação burgueses. Inclusive porque, em muitos casos, é até polêmico saber o que é legal ou não. É legal fazer greves em setores essenciais? É legal ocupar um terreno urbano ou rural? Sempre? Nunca? É legal ir à praça pública com foices, enxadas e picaretas nas mãos? É legal reprimir esta manifestação?
É legal atirar em legítima defesa da vida. Mas e em legítima defesa da posse da terra? E usar violência para defender a moradia e os filhos? É legal a ocupação da fábrica? E a demissão de dirigentes sindicais que têm estabilidade, é legal? Institucional ou engorda? Engorda quem? Quem passa fome?
Sempre encontraremos alguém que diga sim e que diga não. E se não é legal?... É legítimo, justo, correto politicamente? Sempre? Quando? Na realidade, o AFP é um conjunto de ações múltiplas, diversificadas, às vezes até aparentemente contraditórias. Aliás, o que temos feito (a militância do PT e dos movimentos sociais mais combativos) é isto. Desde a luta contra a ditadura. Participamos de sindicatos e entidades estudantis atrelados ao Estado, em determinado momento votamos no antigo MDB; fizemos autocrítica do militarismo. Mas também realizamos greves ilegais, implodimos a estrutura sindical e construímos a CUT ilegalmente. Fundamos o PT na hora certa, com estatuto legal e tudo o mais. Porém, não esquecemos de definir uma estrutura interna mais democrática, não prevista na lei. Ocupamos terras, empresas e prédios públicos ou privados, negamos o Colégio Eleitoral, dissemos não à nova Constituição e à maioria dos candidatos do 2º turno de 1990.
Assim, a chamada "Guerra de Posições" no AFP não pode ser confundida, em nenhum momento, com uma luta meramente institucional e muito menos com "guerra de cargos" no parlamento, nas administrações, nos sindicatos etc. ("Vamos ocupando trincheiras - cargos - e um dia chegaremos lá."). Não é verdade, portanto, dizer que "o PT escolheu a via institucional" e pronto. Não é esta a nossa história. A guerra de posições, a luta que temos travado pela hegemonia é muito mais ampla e complexa que isto. Não podemos castrá-la tornando-a meramente legalista e institucional.
E nosso acúmulo de forças não está começando agora. O povo tem avançado na luta econômica, social e política. Estão aí a CUT e o PT, grandes mobilizações e greves nacionais, a multiplicação das entidades de massa. E, não esqueçamos, "quase" elegemos um operário socialista para a Presidência da República. O fato de alguns companheiros só recentemente, depois do acúmulo mais prolongado de erros, ter assumido a estratégia do acúmulo prolongado não lhes dá o direito de pensar que só agora as coisas começam...
Que ocidente é este?
Porém não basta ser combativo e atuar em todas as frentes. A conquista do poder político passa por enormes avanços no sentido de nos tornarmos força hegemônica, mas a consolidação da hegemonia política passa pela conquista do poder e o seu exercício, crescentemente a serviço, apoiado e com a participação direta das massas populares. Com a burguesia detendo os recursos econômicos, um poder estatal de tradição e atualidade autoritárias, os meios eletrônicos de comunicação de massa, como podemos pensar em ser hegemônicos na sociedade? E no Estado? Digo hegemonia de nosso projeto alternativo de sociedade, o socialismo. Não seria aconselhável pensar na possibilidade, pelo menos em nosso país, de uma força revolucionária chegar ao governo já com hegemonia consolidada, ou seja, o apoio consciente e consistente da maioria da população ao seu projeto global. É comum dizer-se que os bolcheviques eram uma força minoritária que se aproveitou de um momento de crise para, com o apoio de uma população trabalhadora cansada do czarismo e sem confiança na burguesia, dar um "golpe" e tomar o poder. Exageros à parte, perguntamos: e no Brasil, caso tivéssemos ganho as eleições em 89, poderíamos dizer que já éramos força hegemônica na sociedade? Ou seria mais coerente dizer que "aproveitamos a insatisfação do povo com tudo e demos um golpe eleitoral?"
Na realidade, quase ganhamos as eleições porque a burguesia brasileira e seus aliados não exercem uma hegemonia política estável na sociedade. Só isto explica que um partido frágil como o nosso ainda é, com um funcionamento precário de organismos, sem definição estratégica, sem meios próprios de imprensa e comunicação de massa regulares, pudesse dar o salto eleitoral que deu em tão pouco tempo. Quase ganhamos as eleições, porque não é possível dominar por "consenso", de forma "pacífica" e permanente quando o povo não tem salários dignos, não tem onde morar, o que comer, escola, transporte, terra. Onde falta até o "pão e circo" e dezenas de pessoas são assassinadas diariamente no que se acostumou chamar delicadamente de "violência urbana". Onde milhões de crianças estão abandonadas, carentes e se transformam em assaltantes de bancos aos onze anos de idade. Onde mais de mil crianças morrem diariamente de subnutrição, antes de completar um ano de idade. Onde o aborto é proibido e ilegal - além de ser pecado mortal - e quatro milhões de abortos são feitos por ano, dos quais 400 mil têm conseqüências fatais. Onde marginais - integrados ao sistema - mandam em muitos bairros populares e centros urbanos. Onde não se respeita sinal de trânsito. Onde não se respeita nenhuma instituição, a não ser a polícia. Mas neste caso não é respeito, é medo. Onde políticos, governantes e a maioria da oposição não são respeitados. Onde se vota mais "contra" do que "a favor" - quando se vota em alguém. Porque os "de cima" só dão exemplos de corrupção, mordomias, exploração, promessas e mentiras.
Todo mundo sabe disso. Mas é sempre bom lembrar: estamos falando de estratégia rara construir o socialismo no ... Brasil! Pois enfim descobriram que estamos num país "ocidental". Descoberta, diga-se de passagem, feita há quinhentos anos, quando Colombo saiu da Espanha em busca do caminho marítimo para as índias e descobriu que entre a Europa e seu destino havia algo mais do que o mar, tubarões e monstros mitológicos: havia as "índias... Ocidentais". Talvez por isso muitos nos chamem de "Belíndia", mistura de Bélgica com índia.
Certamente, por sermos este Ocidente "meio oriental", ou, quem sabe, um Ocidente "em cima do muro", é que as classes dominantes brasileiras construíram tantos muros, tantos obstáculos ao avanço das conquistas democráticas por parte das camadas populares. E, se conseguirmos ultrapassar estes muros, lá estará, no banco de reservas, uma grande muralha.
A burguesia faz isto, porque não confia nas suas instituições. Não confia, pois sabe que elas ainda não são capazes de "dominar por consenso" e que são incapazes porque não têm condições de exercer a hegemonia política legal e pacífica de modo estável em nosso país, enquanto as condições gerais de vida do povo forem características de um capitalismo monopolista dependente como o nosso. Por isto a fraqueza de nossas "instituições democráticas".
Este é o motivo de as Forças Armadas tutelarem o Estado, inclusive legalmente, através da própria Constituição do país, que, praticamente, institucionaliza a possibilidade de um golpe militar legal. Forças Armadas com tradição de intervenção violenta na vida nacional e único instrumento permanente de dominação política em nosso país que elabora estratégias de longo prazo, disputa hegemonia, tem disciplina e hierarquias respeitadas, preserva interesses próprios, está espalhado por todo o território nacional, investe em tecnologias de ponta e age como verdadeiro partido das classes dominantes. O capitalismo em geral desenvolveu o exército (industrial) de reserva. Já o nosso capitalismo foi adiante e criou o seu partido de reserva: o Exército. Forças Armadas dirigidas por generais conservadores e em cujo corpo de oficiais foi inculcado um profundo pensamento anti-socialista e onde houve, principalmente a partir de 64, uma verdadeira "limpeza" dos setores de esquerda, democráticos e nacionalistas. Sem falar de outros instrumentos paramilitares; da utilização ilegal (abuso do poder e arbitrariedade) de órgãos policiais civis ou policiais militares; esquadrões da morte e quadrilhas de repressão e crimes contra o movimento e lideranças populares.
Democracia: potencialidades e limites
Todo este quadro mostra as grandes potencialidades da luta democrática e por reformas no Estado e na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, mostra os limites de seus avanços dentro da institucionalidade e sem uma ruptura global com ela.
Qualquer estratégia que não leve isto em conta será suicida, pois não utilizaremos taticamente formas de luta, espaços de intervenção e formas de organização coerentes com o tipo de acúmulo necessário. A continuar supervalorizando-se os espaços institucionais e aumentando o descompasso entre o acúmulo eleitoral e a base política e social revolucionária organizada capaz de dar sustentação à conquista efetiva de poder, a transição ao socialismo, em vez de derrubar muros, apenas provocará a sua queda sobre nossas cabeças. Seria aventura. E de aventureiros o céu está cheio. Aliás, há algo no céu além dos aviões de carreira, algo no mar além de baleias em extinção e perigos na terra além de motoristas bêbados: céu de brigadeiro, mar de almirante, terra de generais. Que a paz esteja conosco!
Um partido revolucionário não pode esquecer isto. Não se trata de seguir modelos, ortodoxias, repetir jargões ou aplicar cópias de experiências estranhas à nossa realidade. Nem antigas, nem modernas, nem neo-arcaicas. Mesmo porque já copiamos demais o que se fez lá fora e não conseguimos fazer aqui. Quanto mais no que diz respeito ao que não deu certo nem lá fora. Trata-se de ver, com humildade e realismo, que: se a estratégia é um caminho geral para o socialismos ser construído; se sua elaboração é coletiva e em permanente relação prática e teórica com as massas; se isto só pode frutificar se for feito de forma organizada, então esta elaboração coletiva-teórico-prática-organizada só pode ser feita de modo coerente e globalizador por um partido dirigente. Um partido que tenha a memória de sua história e dos setores populares que busca representar, e que sistematize a história da luta dos trabalhadores no plano internacional. Um partido capaz de traçar táticas, coordenar forças e definir prioridades. Um partido capaz de, a partir das condições objetivas e subjetivas existentes, potencializar a luta do proletariado e outras classes e camadas populares. Não a tática imediatista do "é dando que se recebe" de massas, tipo pacto ou entendimento nacional. Não o sindicalismo de negócios de esquerda, o parlamentarismo de resultados e administrações de resultados.
Como já dissemos, não se trata de negar a importância dos espaços institucionais em geral e estatais em particular. Devemos saber quando radicalizar, quando negociar e como combinar as coisas. A disputa de hegemonia pressupõe que mostremos ao povo a nossa capacidade de melhorarmos sua vida quando temos nas mãos meios para fazê-lo - conquistar melhores salários e condições de trabalho através do sindicato, melhorar as condições de vida nas cidades que administramos, tendo atuação séria, honesta e votando no interesse dos trabalhadores no parlamento. Quanto mais conseguirmos, melhor. Seremos mais respeitados como bons, honestos e competentes, aumentando, assim, nossa influência na sociedade. Mas se fizermos isto sem o correspondente avanço da consciência e organização popular, este avança pode ser apenas eleitoral, podendo nos levar a vitórias neste campo muito acima das condições de enfrentarmos prováveis "desobediências cívico-militares" das classes dominantes.
Precisamos, portanto, de um partido e de um movimento proletário, camponês, popular e democrático que se prepare para o momento decisivo, de ruptura global, quando uma alteração radical da correlação de forças políticas passar pela transformação de uma maioria ou "hegemonia temporária" em hegemonia consistente, o que, em todo caso, pressupõe força militar. E não podemos empurrar esta questão indefinidamente com a barriga, ou melhor, com idéias metafísicas ou torcendo para que tudo, enfim, "acabe bem". Ou deixar para resolver na última hora, pois a solução aparecerá "quando se colocar o problema". Não teremos tempo. E o problema já está diagnosticado. Eles já têm a solução deles. Não esqueçamos, trabalham com estratégias e previsões de longo prazo.
Se quisermos, podemos ser ingênuos, mas não temos mais este direito. A burguesia brasileira não é burra. Não é à toa que consideram a sua democracia como de poucos, "dos mesmos", tática e não universal. Não é por acaso que ao lado de seus partidos fisiológicos-eleitorais para os tempos de dominação ditos pacíficos, mantêm o seu partido para a época da "ditadura": as Forças Armadas, com o permanente papel de pensar estrategicamente a função de guardiãs "da lei e da ordem", mesmo nos tempos de "democracia". Só esperamos que, depois, não apareçam os "profetas do acontecido" para dizer que "nós avaliamos que esta era uma hipótese que não poderia ser descartada", enquanto outros não terão mais tempo de ouvir o recado dos astrólogos: "Ei, Lampião, dá no pé, desapareça, pois eles vão à feira exibir sua cabeça."
Força predisposta
Como diria o velho Gramsci: "O elemento decisivo de cada situação é a força permanente organizada e antecipadamente predisposta, que se pode fazer avançar quando se manifestar uma situação favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e esteja carregada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em cuidar sistemática e pacientemente da formação, do desenvolvimento, da unidade compacta e consciente de si mesma, desta força."
A crença de que o nosso caminho fundamental é a reforma do Estado pela "via institucional", começando por idílicas reformas constitucionais em 93 - quando serão discutidas modificações que dificultam a disputa política dos trabalhadores e facilitam a dominação "pacífica" das classes dominantes, como o voto distrital e misto (frio) e o parlamentarismo, que deformam ainda mais a representatividade do voto universal - é "Plunct, Plact, Zum: não vai a lugar nenhum!"
Mas estratégias baseadas em rupturinhas ou no discurso centrado no pacifismo juramentado, que acredita na possibilidade de a burguesia passar a respeitar as instituições democráticas, parecem coisa de avestruz: fecham os olhos para a realidade ou cobrem o rosto com as mãos e ficam olhando pelas frestas dos dedos.
Uma estratégia não precisa definir os detalhes do processo nem pode adivinhar o que vai acontecer. Mas trabalha com previsões e procura dirigir esforços para questões essenciais e para o enfrentamento de situações mais prováveis. É verdade que prever significa apenas ver bem o presente e o passado em movimento. Isto é, identificar com exatidão os elementos fundamentais e permanentes do processo. Mas é absurdo pensar em uma previsão puramente "objetiva".
Quem prevê, na realidade tem um "programa" que quer ver triunfar, e a previsão é exatamente um elemento de tal triunfo. Isto não significa que a previsão deva ser sempre arbitrária e gratuita ou puramente tendenciosa. Ao contrário, pode-se dizer que só na medida em que o aspecto objetivo da previsão está ligado a um programa esse aspecto adquire objetividade: 1) Porque só a paixão aguça o intelecto e colabora para a intuição mais clara. 2) Porque sendo a realidade o resultado de uma aplicação de vontade humana à sociedade das coisas (do maquinista à máquina), prescindir de todo elemento voluntário, ou calcular apenas a intervenção de vontades outras como elemento objetivo do jogo geral, mutila a própria realidade. "Só quem deseja fortemente identifica os elementos necessários à realização da sua vontade" (Gramsci).
Não há caminhos "mais fáceis" para construir o socialismo no Brasil. Há, apenas, caminhos mais prováveis. A realidade está aí. Não há porque temer. Ela pode nos morder, é verdade. Mas nós também podemos transformá-la.
Jorge Almeida é membro da Comissão Executiva Nacional do PT e do Conselho Editorial de Teoria & Debate.