Nos últimos dez anos, construímos um partido socialista e de massas e uma central sindical independente (com todas as debilidades que apresentam) e definimos uma proposta socialista de governo democrático e popular. Mesmo sem considerar a possibilidade de que Lula vença as próximas eleições presidenciais, esses fatos já indicam vitórias importantes e significativas. Temos acertado em geral e, em particular, na política definida no 5º Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores. O acúmulo de forças, porém, tem sido mais rápido do que temos conseguido apreender.
O PT ganhou algumas das mais importantes prefeituras do estado de São Paulo, inclusive a da capital, num quadro de crise do modelo de desenvolvimento do país. Um momento de crise política, econômica e social profunda, às vésperas da primeira eleição presidencial das três últimas décadas. Eleição na qual a burguesia, apesar de classe hegemônica, se vê diante da possibilidade de uma derrota, sem ter constituído uma unidade política quanto aos destinos da transição e sem ter um projeto econômico que a aglutine. Estamos diante de uma situação inteiramente nova, de grandes responsabilidades que deverão interferir imensamente nas nossas administrações municipais.
Devido à exigüidade de espaço, este artigo se propõe como um roteiro para debates, uma vez que muitas questões colocadas na ordem do dia carecerão maior aprofundamento e outras não serão sequer abordadas.
Vivemos momentos particularmente importantes no Brasil, e o desempenho de nossas administrações municipais será fundamental para o futuro desenrolar da luta de classes. Muito dependerá de nós.
Não nos renderemos à concepção liberal, muito difundida, de que "uma coisa é fazer oposição, outra é governar" como se o papel dos petistas fosse o de fazer um "bom" governo e "botar a casa em ordem". Cabe perguntar: bom governo para quem? Não somos vidraças, temos um projeto socialista para toda a sociedade, estamos num ano eminentemente político, envolvidos nesta disputa da qual nossos governos municipais deverão participar efetivamente. Também não nos submeteremos à concepção esquerdista de que seria possível implantar o socialismo em uma determinada cidade e que considera o exercício do governo municipal apenas uma forma de mostrar às massas os limites do Estado burguês. Não seremos, no entanto, cegos às potencialidades que uma prefeitura apresenta, num período em que a hegemonia ainda está nas mãos da burguesia.
O poder local
Consideramos impróprio o uso do termo poder local no caso brasileiro: a estruturação municipal dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mesmo nas grandes cidades, foi profundamente subordinada ao poder da União (e, em parte, ao do Estado). A capacidade de decisão efetiva sobre grandes questões que se manifestam no nível local, quando não anulada, é bastante reduzida. As prefeituras não podem decidir sobre vários problemas do dia-a-dia urbano, tanto pela falência a que foram levadas de 1964 para cá, quanto pela extrema centralização do poder em Brasília. Esses limites institucionais e políticos, historicamente dados, abrem campo para a corrupção e para a completa irresponsabilidade das administrações, na maioria das cidades. Mesmo com as alterações contidas na nova Constituição, esse contexto não sofreu uma mudança de qualidade.
A questão colocada é: qual o espaço do município na disputa de poder entre as classes?
No PT, o tema vem sendo debatido por vários companheiros. Alguns defendem uma visão fragmentária do poder, ao avaliarem que, no plano municipal, há uma divisão de poderes (de tipo clássico) e que as classes dominantes locais não representam a grande burguesia. Diluem, assim, a avaliação de conjunto sobre a cidade e a luta de classes no espaço urbano.
Aos companheiros que vulgarizam a máxima "munícipe mora no Município e não no Estado", o alerta de M. Castells (transcrevendo H. Lefèbvre): "O desenvolvimento do capitalismo industrial, ao contrário de uma visão ingênua muito difundida, não provocou o reforço da cidade e sim o seu quase desaparecimento enquanto sistema institucional e social relativamente autônomo, organizado em torno de objetivos específicos. Com efeito, a constituição da mercadoria como engrenagem de base do sistema econômico, a divisão técnica e social do trabalho, a diversificação de interesses econômicos e sociais sobre o espaço mais vasto, a homogeneização do sistema institucional ocasionam a irrupção da conjunção de uma forma, a cidade, e da esfera do domínio social de uma classe específica, a burguesia".
No Brasil, a constituição de um poder local passa necessariamente pelo fortalecimento dos movimentos populares e democráticos, na conquista do que chamamos de cidadania e, mais que isso, de parcelas leais de poder - através da criação e ampliação de estruturas de poder popular (como conselhos), vinculados à vida da cidade, e/ou do desenvolvimento, de modo bastante ampliado, dos principais movimentos e entidades populares já existentes (sindicatos, movimentos de sem-terra, associações de moradores etc.).
Governo e poder
Os petistas sabem com clareza que conquistar um governo municipal não significa conquistar o poder, no nível local ou no nível federal. Significa, sim, conquistar um importante instrumento, a prefeitura, com poderes e funções estabelecidos legal e institucionalmente e subordinado à correlação geral de forças da sociedade.
Essas estruturas institucionais, concebidas historicamente para garantir, em nível local, os interesses das classes dominantes, não são as melhores formas para os trabalhadores administrarem as cidades. São, porém, uma trincheira, um espaço do Estado burguês que, uma vez ocupado por nós, deverá cumprir um conjunto de funções até então alheias a sua "vontade". Ao ocuparmos esses espaços, enfrentaremos portanto a tradição e a burocracia, os limites impostos pela correlação de forças e pelas leis burguesas, a oposição organizada ou não da burguesia (através de seus partidos, meios de comunicação de massas e outras formas de organização). Enfrentaremos ainda o Poder Judiciário, a Câmara Municipal e também forças de oposição não-institucionalizadas.
Esse quadro torna nossa luta, a um só tempo, sofisticada, brava, cotidiana e implacável. Os governos municipais petistas terão um papel estratégico muito importante: no exercício da administração, selaremos boa parte de nossas alianças de classe. Isso porque a chamada questão urbana opõe os grandes grupos monopolistas aos operários e demais assalariados, aos pequenos proprietários, às massas populares e às camadas médias. Paradoxalmente, é também no ambiente citadino que boa parte das contradições internas desses setores se materializam: pequenos e médios empresários, bem como parte das camadas médias são proprietários e têm interesses na privatização e na distribuição do espaço urbano que se diferenciam dos interesses dos assalariados, em geral locatários, e das massas faveladas, sem terra e sem teto. A compreensão dessas contradições é fundamental para o desempenho das administrações petistas.
Nosso governo se voltará para toda a cidade, para todos os habitantes, mas sob a ótica de quem quer construir o socialismo no país. Os governos petistas não serão governos democráticos quaisquer. Inverter as prioridades sociais, enfrentar os problemas vividos pelas amplas massas de moradores, abrir o governo à participação direta da população, criar canais de consulta popular implicam necessariamente privilegiar a maioria da população e enfrentar, combater e submeter o grande empresariado monopolista, na medida da correlação de forças. Implica, inclusive, enfrentar, combater e submeter o médio empresariado cujas atividades se contraponham à política democrática e popular, como é o caso da maioria dos empresários de transporte coletivo e dos setores que especulam com aluguéis e com o solo urbano.
Partido e administração
Os petistas concordam também que a administração não é um aparelho partidário. A prefeitura é a instância municipal do estado, decide e encaminha as questões a ela pertinentes. O partido organiza uma parcela avançada de trabalhadores e busca representar os interesses gerais das classes oprimidas, dirigindo os movimentos sociais e a luta pelo socialismo, articulando as lutas sindicais e populares com a construção partidária e com a estratégia de tomada do poder.
Cabe ao partido incentivar e dirigir as massas populares na sua auto-organização e na ocupação dos espaços, tanto nas administrações petistas como em administrações às quais façamos oposição. Cabe ao partido, portanto, desenvolver a luta nos bairros, nas fábricas e escolas, visando alterar a correlação de forças e os espaços institucionais constituídos. Por isso, o PT estabelecerá sempre uma relação tensa com a institucionalidade vigente, até mesmo, em alguns casos, com as administrações de governos petistas.
O partido deverá estabelecer diretrizes gerais periódicas para os governos petistas, considerando que os companheiros ocupantes de cargos nas administrações ou mandatos executivos estão submetidos à democracia partidária, gozando de seus direitos e seus deveres. Deverá igualmente dar sustentação política e apoio às decisões do governo, especialmente àquelas que quebrem o status quo. Além da tolerância do partido e dos companheiros com mandatos executivos, será preciso estabelecermos formas viáveis de acompanhamento das administrações. Além disso, as instâncias partidárias deverão realizar um acompanhamento de todas as principais ações, bem como incluir nos planos de luta medidas que visem quebrar a força da direita, abrindo espaços para a tomada de posições mais avançadas por parte dos governos. Por exemplo, um plano ativo de discussão e lutas concretas sobre a questão do solo urbano, incluindo invasões de terrenos reservados à especulação, que viabilize e facilite à administração petista desapropriar essas áreas. Não cabe pedir paciência aos sem-terra mas, sim, apresentar-lhes propostas concretas.
Objetivos de um governo petista
Há limites institucionais da administração municipal e limites da correlação de forças, mas é necessário extrapolá-los com realizações que acrescentem algo novo à vida das massas.
Nosso governo deve ter dois objetivos básicos, combinados entre si: elevar a qualidade de vida e contribuir para o aumento da organização e da consciência da maioria da população. Assim, o governo democrático e popular petista deverá, a um só tempo, viabilizar as seguintes metas:
- Abrir canais institucionais de consulta permanente junto à população, para sua participação direta ou indireta, por representação das entidades, da Câmara ou de outras formas que venham a se constituir.
- Incentivar a organização popular autônoma, para fazer valer seus interesses, pressionar e exigir realizações por parte do governo.
- Estabelecer uma política criativa de comunicação direta com as massas, por meio de jornais próprios, murais, rádio, carros de som, teatro popular etc.
- Incorporar a participação popular nas principais atividades do governo, criando, por exemplo, brigadas contra o analfabetismo, brigadas de saúde, fiscalização da coleta do lixo, do sistema de transportes etc.
- Implementar uma política de informação e transparência, para que a população trabalhadora compreenda tanto os limites da máquina da prefeitura como os do próprio estado burguês.
- Estabelecer uma política de recursos humanos que dignifique o funcionalismo público e, ao mesmo tempo, convenção ideologicamente a defender os interesses populares na administração, a cumprir o programa de governo. Para tanto, será necessária uma profunda reforma administrativa, um plano adequado de cargos e salários e uma decidida política de formação de pessoal.
- Uma política de melhoria das condições de vida e habitação nas cidades, priorizando a dotação de recursos para responder aos essenciais problemas da população pobre: saúde, educação, transporte, habitação, lazer, preservação do meio ambiente etc.
Por fim, nossos governos deverão cumprir um objetivo importante na disputa ideológica com a burguesia: mostrar ao povo que governar não é um atributo das classes dominantes e que a auto-organização popular, independente, é a base para a manutenção das conquistas sociais.
As administrações petistas em 1989
A maioria das prefeituras que conquistamos encontra-se num profundo caos financeiro e administrativo. O equacionamento desse caos não é "técnico", neutro, mas eminentemente político. Não podemos arrochar salários, desrespeitar os direitos adquiridos pelos servidores, penalizar a população, muito menos paralisar a máquina administrativa sob o argumento do livro-caixa. Contaremos com a mobilização da população se soubermos conduzir o processo. Algumas batalhas a vencer:
- A batalha da comunicação - cada prefeitura, inicialmente, deverá elaborar um informativo a ser amplamente distribuído à população (com o apoio indispensável dos militantes do partido). Ainda neste ano deveremos traçar e pôr em prática uma política de comunicação de massas.
- A batalha administrativa - dois aspectos precisam ser enfrentados: a reforma administrativa e o tratamento da dívida. A reforma deverá agilizar e democratizar a máquina administrativa; antes, porém, deve-se demitir os corruptos, sabotadores e funcionários fantasmas. Para tratar adequadamente a dívida, será necessária uma auditoria que permita inclusive uma política de renegociação e acerto de forma de pagamento, para que nossa ação administrativa não se paralise.
- A batalha das reformas - elaborar e pôr em execução planos de saúde, educação, transporte, habitação etc., que comecem a viabilizar nosso programa de governo, com a indispensável participação dos munícipes.
- A garantia da participação popular será importante formalizar a consulta à população e sua participação direta, com a abertura de canais institucionais e o incentivo a formas de organização autônomas.
- A descentralização administrativa iniciar a transferência de poder e recursos às diversas regiões das cidades.
- O enfrentamento dos governos federal e estadual - agilizar o quanto antes a articulação dos prefeitos progressistas para enfrentar os governos do estado e da União.
- Iniciar, por meio da participação do partido e da população, um movimento de pressão sobre as câmaras, no sentido de derrotar as leis e freios contrários a um governo democrático e popular.
- Para a denúncia político-administrativa deveremos fazer um dossiê sobre o último prefeito e denunciar amplamente todos os desmandos encontrados.
Todas essas batalhas, deverão ser iniciadas imediatamente e levadas a cabo neste ano. Nossos governos municipais, em sua maioria, ainda se encontram sem iniciativa política. Perdemos algumas oportunidades, entre as quais o Plano Verão, ao qual os governos petistas deveriam ter respondido de forma crítica e articulada.
Não fizemos uma denúncia mais consistente dos prefeitos e administrações anteriores. Não basta dizer que a prefeitura está um caos: é preciso qualificar e quantificar esse caos, desmascarando os governos burgueses e sua mística de competência.
Este ano de 1989 vem marcado politicamente pela profunda crise do governo Sarney e da transição, pela elaboração das legislações complementar e ordinária, das constituições estaduais, pela eleição presidencial. Nossos governos, em sintonia com o povo, deverão colocar o peso das prefeituras na oposição aos governos federal e estadual.
Os prefeitos petistas das grandes cidades, principalmente, deverão portar-se como estadistas, posicionando-se sobre a dívida externa e interna, sobre a situação política do país e sobre todos os temas em debate no cenário nacional. A principal tarefa do PT e de todos os militantes, inclusive dos prefeitos, é a eleição de Lula. Nenhum ato dos companheiros deverá desconsiderar esse objetivo.
Fevereiro de 1989
Cândido Vacarezza é membro da Executiva do Diretório Regional/SP e secretário de Assuntos Institucionais do PT/SP