Cultura

No Cinema Novo há heróis míticos e no filme Central do Brasil há pessoas comuns

Duplamente premiado em Berlim (melhor filme e melhor atriz), o filme de Walter Salles exibe as qualidades que o transformaram numa unanimidade nacional. O roteiro é bom, a direção excelente, a interpretação de Fernanda Montenegro antológica. Não cabe aqui ficar repisando o que a crítica já repetiu quase que à exaustão. Cabe destacar alguns aspectos geralmente pouco comentados.

Ao contar sua história básica (a escrevedora de cartas Dora - que explora seus clientes, não pondo as cartas no correio, envolve-se com o garoto Josué - que vai procurar o pai no interior do Nordeste e, nesse processo, reencontra sua dignidade), Central do Brasil mergulha no contato direto com a população que freqüenta os trens de subúrbio do Rio de Janeiro e com o povo do interior do Nordeste. E aqui surge a primeira novidade: aquele "povo" do cinema brasileiro (sobretudo do Cinema Novo) que aparecia na tela quase sempre como um potencial revolucionário de transformação, como depositário das nossas esperanças, está ausente desse filme. No cinema dos anos 60, o morro ia descer para a cidade, o sertão ia virar mar e o sofrimento do povo se transformaria num gesto de mudança (Paulo Martins empunhando a metralhadora no final de Terra em transe, Macunaíma bagunçando a Paulicéia, Matraga e seu magnífico gesto de defesa dos fracos e oprimidos quando chega sua hora e vez). Aqui, as coisas se passam de outra forma: o que está à tona é a esperteza sem escrúpulos de Dora, a violência mesquinha e medíocre do policial, o misticismo do povo do Nordeste, seu esforço cotidiano pela sobrevivência. Não há pessoas extraordinárias: líderes, místicos, grandes bandidos. Existem apenas pessoas comuns. Provavelmente a imagem do povo segundo Walter Salles condiz mais com a realidade de hoje e se despe do discurso ideológico que caracterizava o cinema brasileiro dos anos 60 e 70. Sem dúvida, é uma visão coerente com os anos 90: um povo sem esperanças, apanhado no beco aparentemente sem saída do neoliberalismo, que sobrevive como pode - aplicando pequenos golpes, roubando, mergulhando nos vários misticismos e, mesmo, trabalhando arduamente em sua pequena oficina de marcenaria. Talvez tenha sido necessário um cineasta cuja origem social é a burguesia financeira (aquilo que entre nós mais se parece com alguma espécie de aristocracia) para conseguir se livrar da visão distorcida de classe média que sempre nos fez olhar o "povo" como uma entidade redentora e muito pouco histórica. É verdade que mesmo ele acaba por fazer uma distinção: enquanto os habitantes da grande cidade, dos subúrbios do Rio de Janeiro, estão degradados por esta espécie de "Lei de Gerson" cotidiana, o povo do interior do Nordeste exibe uma inocência, uma pureza ainda não comprometida pela contaminação urbana.

Mas isto é reflexo de uma questão mais ampla: no universo criado por Walter Salles, o interior do Nordeste é um espaço onde a vida ainda é possível, enquanto o subúrbio carioca é o inferno. Não é só o comportamento das pessoas que reflete isso: são os espaços definidos pela câmara e a própria linguagem cinematográfica utilizada. No Nordeste os espaços são amplos, a luz é crua e define cores vivas. O espectador recupera imagens: as pequenas cidades de casas muito juntas, a vegetação rasteira e seca, os amplos horizontes. Mas, ao contrário do que acontecia em Vidas secas, esses elementos não compõem uma imagem sufocante e áspera. Pelo contrário: a aridez se revela acolhedora, o suor e o cansaço adquirem sentido, a miséria está à vista, mas não destrói a dignidade das pessoas. Há comportamentos solidários (o caminhoneiro composto magnificamente por Othon Bastos), há a confiança espontânea (os irmãos de Josué, que acolhem Dora sem duvidar de sua história). Há, até mesmo, uma diferença marcante no comportamento dos que ditam cartas: aqui eles são muito mais diretos, transparentes, sem subterfúgios. A câmara de Walter Salles define uma geografia humana, em que até mesmo as grandes lapas de pedra se comportam como um cenário envolvente e belo. Os movimentos de câmara apresentam certa amplitude, saindo do close, revelando o cenário e subindo para descrever a ação.

Tudo é diferente na Central do Brasil e em Cascadura. Os planos são mais fechados, as cores mais sombrias, não há movimentos amplos, não há espaço: as pessoas ocupam todas as áreas do quadro num vai e vem quase histérico. O subúrbio é triste e sufocante, o prédio onde Dora tem seu apartamento é decadente e pobre. A sensação que o filme passa é de aperto, calor abafado, cheiro de azedo, pessoas que se acotovelam e enganam umas às outras. Mais do que a mesquinhez, o que temos aqui é o fim da linha, a falta de perspectiva, o inferno. A sensação de inferno é aprofundada pelo tratamento da imagem: um dos mais tragicamente belos e terríveis planos do filme é o do trem passando, à noite, em frente à janela do apartamento de Dora, soltando faíscas quando sua lança salta na rede elétrica. O trem é feio e ameaçador como um fantasma, a fotografia é de um azulado trágico e o entorno é a desolação noturna do subúrbio. As faíscas conferem ao plano um tom quase surreal - o trem é um transporte que mantém as pessoas ali em vez de levá-las para longe.

Já o ônibus interestadual e, depois, o caminhão são veículos para uma espécie de libertação. Numa cidadezinha perdida nos cafundós do sertão, alguém diz: "Aqui é o fim do mundo". Não é verdade: no filme, ali é o começo de alguma coisa. O fim do mundo é em Cascadura. No Nordeste do filme, ainda é possível respirar. É junto a seu povo e com o apoio de Josué que Dora vai recuperar o significado de sua função de escrevedora de cartas, o respeito próprio e alguma dignidade. Não chega a ser uma esperança no futuro - é apenas uma reconciliação consigo mesma e, porque não, com os outros. Nas condições em que vive o povo definido pelo filme, já é uma enorme conquista. Talvez a única possível nos dias de hoje.

A pergunta é: essa inversão (o Nordeste miserável é onde ainda residem algumas qualidades humanas; a cidade grande - antigamente habitada pelos trabalhadores e por aqueles marginais idealizados que carregavam energias transformadoras - é a morada das almas penadas) representa uma outra ilusão ideológica ou reproduz algo que efetivamente está ocorrendo hoje em dia? Será apenas uma nova forma da velha idéia conservadora de que os verdadeiros valores estão no campo, enquanto a cidade é corruptora? Ou traduz, de alguma forma, a situação atual de um país onde a única força social que trabalha com a esperança, que traz algum potencial de renovação, é o Movimento Sem-Terra? O filme de Walter Salles passa longe da postulação de qualquer questão explicitamente política. Mas reflete os ventos: o talento do cineasta, mesmo que inconscientemente, capta as tendências, os movimentos subterrâneos.

É importante ressaltar o artesanato de Walter Salles: poucos filmes brasileiros contam com a qualidade de direção de Central do Brasil. Além do par central (Fernanda Montenegro e Vinicius de Oliveira), todos os atores estão bem. Não há aquele habitual coadjuvante de nossos filmes que, por destoar tanto dos atores principais, estraga a ilusão de verdade das cenas. A figuração também é muito bem dirigida, inclusive nas cenas de multidão. Como a fotografia é muito boa e o som direto também, o filme passa aquela naturalidade comum nos bons filmes estrangeiros, mas ainda rara na produção nacional.

O filme se comunica exemplarmente com o público porque seu enredo central é bem narrado. A história da busca de Josué, da redenção de Dora e, sobretudo, da relação entre os dois, é comovente sem nunca resvalar para o sentimentalismo fácil. Embora contada com segurança e envolvimento, a história só agarra seu público porque revela, mesmo quando os espectadores não têm consciência disso, a cara de um país que brota por trás e ao lado de seus personagens - e os molda. Dora, tanto no que tem de sobrevivente e de trambiqueira, quanto no que revela de solidariedade e altruísmo no final, é um pouco de todos nós. E seu gesto (deixar Josué com os irmãos e voltar, ainda que transformada, para sua solidão) não é o grande gesto dos personagens extraordinários do Cinema Novo: é apenas um pequeno gesto de redenção pessoal. Talvez aquele gesto do qual todo o público que vê o filme possa ser capaz, algum desses dias. Ou apenas, aquele que todas pessoas gostam de pensar que são capazes de fazer.

Renato Tapajós é videomaker, autor de Em câmara lenta, entre outros livros.