Os consideráveis avanços obtidos recentemente pelo Brasil, nos campos econômico e social, têm posto em evidência um aspecto contraditório de nossa sociedade. A partir da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, vimos o governo federal abandonar a cartilha neoliberal de FHC e o Estado voltar a assumir um papel decisivo no incentivo à atividade econômica do país.
Pela primeira vez em nossa história, foi criado um programa sistemático de transferência de renda, que, aliado a uma política de valorização permanente do salário mínimo e de incremento do emprego e da renda para os trabalhadores, culminou na expansão do mercado consumidor brasileiro. Bens e serviços (casa própria, automóveis, viagens de avião) que antes eram privilégios dos setores mais abastados da sociedade passaram a fazer parte do cotidiano das famílias proletárias.
A partir das administrações petistas, verificou-se também a ampliação das vagas nas universidades públicas e particulares, bem como a adoção de políticas de ação afirmativa para favorecer o ingresso de negros, indígenas e estudantes pobres, oriundos das escolas públicas, nas instituições superiores.
Observa-se, dessa forma, o empoderamento de grupos sociais que, historicamente, sempre estiveram alijados da vida pública. Mas seria ingenuidade supor que, em um país de forte tradição coronelista, a inclusão de mulheres, negros, nordestinos e jovens da periferia na vida econômica e social do país aconteceria sem "traumas".
O pensamento conservador não é um fenômeno recente no Brasil. A forma como ele se manifesta hoje em dia, porém, é nova e deriva do movimento dialético engendrado pelas mudanças estruturais ocorridas no país. A atual escalada reacionária nada mais é do que a materialização dos conflitos que emergem na sociedade a partir da ascensão de determinados grupos em detrimento de outros.
Nem sempre é fácil identificar esse embate, uma vez que ainda se manifesta de maneira difusa e mesmo conjuntural, em meio a episódios que ganham forte repercussão (ainda que pontual) na mídia. É o caso, por exemplo, da (pseudo)polêmica surgida em torno da questão da maioridade penal, na esteira de dois homicídios ocorridos em abril de 2013 que contaram com a autoria de adolescentes.
A forte comoção provocada por um desses fatos serviu como deixa para que o governador de São Paulo, um dos principais expoentes da oposição ao governo federal, passasse a defender mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de modo a baixar a maioridade penal no país.
O curioso nisso tudo é que São Paulo atravessa, há tempos, uma crise sem precedentes na segurança pública. Dados do governo paulista mostram um crescimento assombroso no número de homicídios no estado, na ordem de quase 20% ao ano. Só entre janeiro e maio de 2013, foram mais de 1.500 assassinatos. Ora, qual a participação dos adolescentes nesse total de mortes?
Uma análise sobre o universo da Fundação Casa ajuda a elucidar essa dúvida. Atualmente, o órgão abriga pouco mais de 9 mil adolescentes, dos quais apenas 0,9% está lá por latrocínio. Claramente, os adolescentes infratores estão longe de representar o grande problema da segurança pública paulista.
Se o governador sabe que a redução da maioridade penal não vai ter nenhuma influência prática na queda da criminalidade, por que resolveu abraçar essa bandeira? Talvez porque, temendo enfrentar um debate racional a partir de dados objetivos (em que, na certa, levaria desvantagem), ele prefira abraçar a estratégia conservadora, baseada no medo do "outro" (ou seja, aqueles que antes estavam apartados da vida econômica e social do país) e na abordagem passional da realidade.
A tentativa de redução da maioridade penal integra um movimento maior, que busca circunscrever determinados grupos sociais e reverter os avanços ocorridos no Brasil. Busca-se interditar e criminalizar a juventude – não qualquer juventude, mas aquela que habita os grotões do país e sofre no dia a dia os efeitos perversos de um sistema ainda demasiadamente marcado pela desigualdade.
Nesse sentido, é interessante notar que o principal argumento usado pelos defensores da redução da maioridade consiste em atacar o ECA e dizer que ele prevê apenas "direitos" (vistos como privilégios) e nenhum dever para os "menores". Mais que isso, pela ótica reacionária o estatuto traria em suas linhas o incentivo à impunidade para "pequenos criminosos".
Qualquer pessoa racional que se dispusesse a levar adiante um debate sério sobre a maioridade penal seria forçada a admitir que a causa da violência entre as crianças e adolescentes não está no ECA. Na verdade, se o problema existe é justamente porque o poder público não aplica o estatuto. Para tanto, basta lembrar que cerca de 60% dos adolescentes infratores do país abandonaram a escola por volta dos 14 anos de idade e 90% não concluíram o ensino fundamental.
O Brasil encontra-se diante de uma encruzilhada, em que setores reacionários do país – aliados a uma oposição sem rumo, sem líderes e sem um projeto político claro – articulam uma poderosa investida contra direitos conquistados a duras penas pelos setores mais frágeis da sociedade. As forças populares do país precisam estar atentas e preparadas para fazer um embate sério, capaz de desmascarar o discurso distorcido dos profetas do medo.
Beth Sahão é psicóloga formada pela Universidade Estadual de Londrina, mestra em Sociologia pela Unesp de Araraquara e deputada estadual pelo PT-SP