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Madiba é admirado no mundo todo por seu papel na resistência ao regime de segregação racial introduzido na África do Sul no início do século 20

O personagem mais conhecido da luta antiapartheid e ex-presidente da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela, acaba de cumprir seu 95º aniversário, infelizmente em uma cama de hospital, sob tratamento de grave doença pulmonar.

Mandela é admirado no mundo todo por seu papel na resistência ao regime de segregação racial introduzido na África do Sul no início do século 20. O apartheid assegurou por muito tempo a hegemonia política da burguesia branca, minoritária no país, e submeteu a maioria negra a uma expropriação de mais-valia superior à que seria usual em países de economias capitalistas semelhantes. Favoreceu, portanto, o acúmulo e concentração de riqueza nas mãos da minoria branca e garantiu à África do Sul o status de país mais rico e "desenvolvido" do continente às custas de gravíssimas violações dos mais elementares direitos humanos.

A resistência ao apartheid iniciou-se, principalmente, com a fundação do Conselho Nacional Africano (CNA). em 1912. Mais tarde outros agrupamentos, como o Partido Comunista da África do Sul (CPSA) e a Organização do Povo da Azânia (Azapo), também se agregaram a essa luta, embora com táticas diferentes. Nelson Mandela começou a militar no CNA em 1941 e, 23 anos depois, sob a acusação de participação na resistência armada contra o regime foi condenado à prisão perpétua. Cumpriu 27 anos da pena, a maior parte deles em regime de trabalhos forçados em Robben Island, uma ilha inóspita no litoral do sul do país. Foi libertado em 1991, quando a Guerra Fria havia terminado e a burguesia sul-africana também entendeu que teria de negociar um acordo para extinguir o apartheid e implementar uma transição para uma nova hegemonia no país que incluísse a maioria da população.

Madiba, o nome xhosa pelo qual Mandela também é conhecido, foi indicado pelo CNA como seu interlocutor nessas negociações. Em 1994 foi eleito presidente da República, nas primeiras eleições no país em que todos puderam votar, e concluiu seu mandato em 1999, quando foi substituído por seu vice-presidente, Thabo Mbeki. O sistema político na África do Sul é parlamentarista e o partido, ou coalizão de partidos, mais votado terá seu candidato à eleição presidencial aprovado pelo Parlamento. Este normalmente é o presidente do próprio partido, o que torna a disputa por esse cargo o primeiro passo na busca da Presidência do país.

Desde o primeiro processo eleitoral vencido por Mandela formou-se a Aliança Tripartite, entre o CNA, o Partido Comunista da África do Sul (CPSA) e a Cosatu, a principal central sindical do país. A Aliança se mantém até hoje, não sem abalos, porém, sobretudo durante os dois mandatos presidenciais de Mbeki, cuja política econômica teve um forte viés neoliberal e privatizante. Além disso, ele negava o caráter de doença sexualmente transmissível à aids, com o argumento de que se tratava de uma enfermidade decorrente de situações de extrema pobreza. O resultado disso foi negligenciar o combate a essa epidemia que hoje infecta cerca de 18% da população. Mbeki tentou impedir que seu vice-presidente, Jacob Zuma, o sucedesse, mas perdeu o embate ao ser afastado da presidência do CNA, em 2008, e consequentemente da Presidência da República, sendo substituído interinamente pelo presidente do Congresso, Kgalema Motlanthe. Zuma, que também cumpriu alguns anos de prisão durante o apartheid, foi eleito em 2009 e buscou retomar as relações com o CPSA e o movimento sindical.

O principal mérito de Mandela foi conduzir uma transição política de forma razoavelmente pacífica, tendo em vista a explosiva situação social e étnica do país, que poderia facilmente provocar uma guerra civil com resultados imprevisíveis, a não ser os milhares de mortes que seguramente ocorreriam. Além da histórica opressão de negros por brancos, havia diferenças políticas entre as dezenas de nações negras no país. Para ilustrar esse aspecto, basta lembrar que a Constituição pós-apartheid reconheceu a existência de onze idiomas oficiais, afora o inglês e o afrikaans, e foi necessário que o CNA se engajasse em complexas negociações com o presidente do Movimento Inkatha da província de Kwa-Zulu, Mangosutho Buthelezi, para que este participasse pacificamente das eleições em 1994.

No entanto, há avaliações mais à esquerda de que a transição estabeleceu concessões demasiadamente favoráveis à elite branca, dificultando a implementação de mudanças estruturais no país, bem como de ampla justiça social. De fato, a herança recebida do regime do apartheid foi mais do que maldita e, embora a África do Sul se mantenha como o país mais rico do continente e diversas de suas empresas multinacionais estejam investindo em outros países africanos, os dados sociais continuam preocupantes. A taxa de desemprego é superior a 20%, 50% entre os jovens, e 48% da população vive abaixo da linha da pobreza. O coeficiente Gini cresceu entre o início dos anos 1990 e final da década de 2000 de 0,67 para 0,69, demonstrando o aumento da desigualdade no país, apesar das importantes transformações políticas ocorridas nesses 20 anos.

Na política externa, a África do Sul constituiu uma imagem de muito respeito e influência durante esse período. Participou de diversas iniciativas de pacificação de conflitos no continente africano, estabeleceu uma importante coalizão com a Índia e o Brasil, o Fórum de Diálogo Ibas, e desde 2011 passou a integrar também o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Entretanto, a situação é mais complexa no front político interno. O CNA, que é majoritário no Parlamento e governa a maioria das províncias além do governo central, na prática se mantém como uma frente política que durante a resistência ao apartheid reunia opositores da esquerda à direita. Hoje, ao expressar interesses muito distintos, tem dificuldades para aprovar medidas governamentais de impacto para enfrentar as mazelas sociais que afligem o país. Com a retirada do cenário de diversas lideranças políticas históricas, incluindo o próprio Mandela, por razões de saúde ou de idade, ficará cada vez mais difícil manter a unidade interna do CNA e o cenário dos próximos anos poderá provocar um novo quadro de distribuição de forças, possivelmente menos progressista do que o atual.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais