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Estima-se que até o ano passado, no mundo, 45,2 milhões de pessoas deixaram sua casa devido a desastres naturais, conflitos e violação de direitos humanos
 

No dia 3 de outubro, um barco com cerca de quinhentas pessoas em fuga dos conflitos do Oriente Médio e Norte da África afundou próximo à ilha italiana de Lampedusa, matando 340 delas. Uma semana depois ocorreu o mesmo com outro barco menor, que carregava 250 refugiados, dos quais quase quarenta também morreram. Esses fatos sensibilizaram a opinião pública mundial e até alguns governantes europeus, que pelo menos declararam a necessidade de adotar medidas para evitar novas tragédias como essas. Mas a situação é alarmante faz tempo. Nos últimos doze anos já pereceram 6.450 pessoas ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo entre o norte da África e o sul da Itália, distância de aproximadamente 110 quilômetros, fugidos de ameaças diversas e em busca de uma vida decente.

O problema não é novo. No final dos anos 1970 cerca de 1 milhão de pessoas tentaram fugir pelo mar dos conflitos na Indochina – Vietnã, Laos e Camboja –, tornando-se conhecidos como Boat People. No entanto, calcula-se que entre 200 mil e 400 mil pereceram, ao longo de pelo menos 2 mil quilômetros de distância de um possível refúgio, vítimas de tempestades, doenças, fome e até de ataque de piratas.

A história também revela que o destino dos sobreviventes raramente oferece solução para os problemas que os motivaram a deixar seu país rumo a lugares incertos no estrangeiro, como demonstra o ocorrido tanto com os refugiados da Indochina quanto com os da Palestina, da Somália e os que atualmente buscam abrigo no sul da Europa.

Os Boat People sobreviventes foram internados em campos de refugiados na Tailândia, nas Filipinas e em Hong Kong, onde eram hostilizados pelas autoridades locais e impossibilitados de se integrar a uma vida normal. Na época, o impacto desse drama na opinião pública levou alguns países ocidentais, como Estados Unidos, Canadá e Austrália, a receber uma minoria deles, desde que cumprissem certos requisitos, o que beneficiou somente os que tinham melhores condições econômicas e educacionais.

O êxodo dos palestinos começou ainda antes da guerra pela independência de Israel, quando os israelenses começaram a "limpar o terreno" para construir seu Estado. Ao fim do conflito, 700 mil palestinos haviam fugido para países vizinhos. Tornaram-se os refugiados mais antigos do período contemporâneo. Em cerca de sessenta anos, aproximadamente 4 milhões de deles, incluindo as novas gerações, passaram a viver em campos no Líbano, Síria, Jordânia, Cisjordânia e Faixa de Gaza.

Os primeiros refugiados somalis partiram de seu país em 1991, quando um golpe militar derrubou o regime de Mohamed Siad Barre, deixando a Somália praticamente sem governo central a partir de então. Trinta anos depois, somam cerca de 1 milhão de pessoas abrigadas em campos no exterior, principalmente no Quênia e no Iêmen.

O relatório de 2013 do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) estima que até o ano passado havia no mundo 45,2 milhões de pessoas que deixaram sua casa devido a desastres naturais, conflitos e violação de direitos humanos. Destas, 28,8 milhões deslocaram-se dentro do próprio país, 15,4 milhões buscaram refúgio no exterior e cerca de 900 mil pediram formalmente asilo ao governo de outro país. Segundo a organização, o número pessoas que se expatriaram por motivos políticos nos últimos anos superou de longe os que saíram do próprio país por questões econômicas e os conflitos armados do novo século já produziram 7,6 milhões de novos refugiados. A Acnur atualmente oferece algum amparo a quase 36 milhões de necessitados, mas consegue repatriar voluntariamente apenas 500 mil por ano para os lugares onde o fim dos conflitos o permite. Ou seja, os números demonstram que o problema é um poço sem fundo e o agravamento da dimensão política da atual crise mundial, principalmente em seus aspectos xenófobo e belicista, não oferece saídas no curto prazo.

Ao contrário. Os conflitos atuais que provocaram o maior número de deslocamentos, como os 2,5 milhões de afegãos, os 750 mil iraquianos, os 500 mil sírios, entre outros, têm o "dedo" das grandes potências – EUA, Inglaterra, França, entre outros. Ironicamente, porém, 80% dos fugitivos das guerras buscam abrigo em países em desenvolvimento, geralmente pobres como os de onde vêm. Mais da metade, aliás, está instalada em campos de refugiados em países cuja renda per capita é inferior a US$ 5 mil anuais. Paquistão, Irã e Quênia estão entre os que mais acomodam expatriados. Atualmente, existem mais de cem campos espalhados pelo mundo, a maioria na África, no Oriente Médio e no Paquistão. O maior deles é o de Dadaab, no Quênia, que foi construído em 1991 para abrigar 90 mil pessoas e hoje aloja de alguma maneira 380 mil pessoas, majoritariamente somalis.

Ou seja, os países imperialistas provocam ou acirram guerras e conflitos, mas são as nações pobres que arcam com o efeito colateral do deslocamento populacional. Além de não pagarem a conta dos estragos provocados, pois o orçamento de organizações como a Acnur não dá conta do problema, os mais ricos endureceram as leis contra a imigração nos últimos anos. Alguns criaram situações escabrosas para os que conseguem chegar até suas fronteiras, como a Itália, a partir da Lei Bossi/Fini, que prevê a detenção e deportação dos refugiados e a condenação à prisão em caso de reincidência. Sem falar dos campos de detenção que ali existem, assim como nas espanholas Ilhas Canárias, onde são mantidos até sua deportação aos países de origem. Israel foi o destino de aproximadamente 60 mil sudaneses e eritreus que atravessaram o deserto do Sinai, apenas para ser jogados em campos semelhantes ou então na prisão de Saharonim, no meio do deserto do Negev, com 8 mil vagas, inicialmente projetadas para prisioneiros palestinos e hoje ocupadas por 1.800 africanos.

Por fim, além de correrem riscos na fuga e não serem bem aceitos nos países de destino, os refugiados são explorados por criminosos que oferecem seus préstimos nessas viagens, frequentemente sob condições precárias, como demonstram os recentes acontecimentos em Lampedusa. Os contrabandistas cobram cerca de € 1.000 por pessoa para fazer a travessia do Mediterrâneo em barcos abarrotados e sem as mínimas condições de segurança, mas em outras regiões o custo pode ser maior. Não sem razão o tráfico de pessoas é hoje a terceira atividade ilícita internacional em termos de geração de lucros. Só perde para o tráfico de drogas e de armas.

Apesar desse quadro insólito, ainda existem alguns oásis para os desvalidos. Mesmo com os retrocessos quanto ao tema do refúgio na Europa, a Alemanha, por exemplo, hospedou perto de meio milhão de refugiados ao longo de alguns anos. O Brasil felizmente vai na contramão da tendência xenófoba. Foi o primeiro país da América Latina a acatar a recomendação da organização de conceder residência permanente a quase 2 mil angolanos e liberianos que já não tinham mais interesse em retornar ao seu país depois de quase vinte anos no exílio. Hoje vivem 4.715 refugiados oficiais no Brasil, quase metade deles assistida pela Acnur. São demonstrações de que o tema é de responsabilidade da comunidade internacional e, se cada um fizer a sua parte, além de os conflitos armados serem interrompidos, dá para resolver.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais