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Desde cedo as possibilidades de desenvolvimento das mulheres são limitadas ou intencionalmente direcionadas para o espaço privado e para um rol mais restrito de atividades

Meninas usam rosa, meninos usam azul. Meninas brincam de boneca, meninos brincam de carrinho. Infelizmente a ministra Damares Alves não é a única que preconiza esse mundo. A divisão de gênero que se impõe sobre brinquedos e brincadeiras é uma realidade que se reproduz ao longo do tempo. Mesmo em meio às aceleradas mudanças socioeconômicas, culturais e tecnológicas, verifica-se a reprodução desse padrão sexista sobre as crianças.

O problema ganha ainda mais relevo quando consideramos que os estereótipos de gênero "aprendidos" na infância contribuem para formar as identidades (de gênero) e influenciam nas escolhas profissionais das mulheres na vida adulta.

Como se sabe, o conceito de gênero diz respeito à construção social do sexo anatômico, isto é, aos processos, normas e mecanismos que formam nossa percepção e condição como mulheres e homens.

O papel dos brinquedos e das brincadeiras na formação das identidades de gênero é chave, pois é por meio do brincar que as crianças tomam conhecimento de práticas sociais tidas como usuais. É por meio dessa linguagem propriamente infantil que interiorizam e reproduzem modelos hegemônicos dos adultos. Uma vez que os brinquedos e as brincadeiras são artefatos culturais, eles reproduzem padrões de comportamentos culturalmente situados e enquadrados.

A "incorporação" de hábitos e de interesses e o "aprendizado" desses comportamentos na infância têm potencial de se reproduzir e, em alguma medida, se reificar, se fortalecer, ao longo da vida. Assim, dificultam processos de mudança e ruptura com os padrões sexistas. As crianças, portanto, são "treinadas" para assumir e reproduzir papéis de gênero bem marcados.

Via de regra, meninos brincam de bola, videogame e Lego, enquanto meninas "aprendem" a cuidar da casa e a ser mãe, "brincando" com minicozinhas e com bonecas, Pollys e Barbies. Essa separação mobiliza aspectos de raciocínio, força, espírito de aventura e lideranças entre os homens, e habilidades ligadas à passividade, à obediência e ao cuidado entre as meninas. A existência de "dois universos" distintos é perceptível, por exemplo, nas próprias lojas que comercializam os brinquedos, organizadas em seções separadas para meninas e meninos.

As crianças ganham brinquedos preconcebidos em relação ao gênero e são ensinadas a como brincar com eles. O controle das brincadeiras envolve, portanto, o cerceamento da liberdade das crianças no uso e na imaginação sobre como acionar e interagir com os objetos e suas representações.

Desde cedo as possibilidades de desenvolvimento das mulheres são limitadas ou intencionalmente direcionadas para o espaço privado e para um rol mais restrito de atividades. Esse fato tem implicações sociais graves. Athene Donald, física inglesa que presidiu a Academia de Ciências Britânica, é uma das cientistas que têm chamado a atenção para o problema, mostrando que um de seus desdobramentos é a menor presença relativa das mulheres na ciência.

Por que isso ocorre? Devido a construção de subjetividades passivas entre as mulheres versus ativas e imaginativas-construturas entre os homens.

Mais recentemente, a crítica desta divisão sexual dos brinquedos tem impulsionado mudanças, ainda que tímidas, no mercado dirigido às crianças. Um dos exemplos é a série de bonecas Barbie-cientistas, lançada em 2021. Ela homenageou seis cientistas com atuação destacada na luta contra o coronavírus, dentre elas a brasileira Jacqueline Goes de Jesus, responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus (em prazo recorde de 48 horas) após sua chegada ao Brasil, em 26 de fevereiro de 2020. As seis bonecas, contudo, não serão comercializadas para o grande público. As Barbies-cientistas integram o programa Play It Forward, da empresa Mattel, que dá destaque ao trabalho de "herói e heroínas" usualmente pouco visibilizados, como foi o caso dos profissionais de saúde na linha de frente do enfrentamento da Covid-19.

O caso das Barbies traz à tona outro elemento chave na constituição dos brinquedos e suas representações: a diversidade.

A pesquisadora brasileira Jacqueline Goes é negra, assim como Chika Stacy Oriuwa, canadense também incluída na mesma série de Barbies. A existência de Barbies e outras bonecas negras é uma novidade. Segundo a Abrinq (Associação Brasileira de Fabricação de Brinquedos), a porcentagem de bonecas negras passou de 0,1% para 12% entre 2016 e 2020. O crescimento atesta a existência de uma demanda real por mais diversidade nos brinquedos e nas representações sociais que alcançam as crianças. Campanhas como a "Cadê Nossa Boneca?" destacam a falta de autoidentificação de crianças negras com modelos brancos-loiros, costumeiramente sustentados como referenciais de beleza. Entre os meninos, lembramos dos carrinhos que ostentam símbolos das polícias, dos bombeiros e de ocupações correlatas.

Cabe notar que a diversidade de perfis em bonecas e outros brinquedos é importante não apenas para a autoidentificação das crianças em termos raciais, de gênero, de peso etc., pois crianças de todos os perfis devem brincar juntas com bonecas e brinquedos de todos os formatos e de todas as cores.

Semelhante ao processo de autoidentificação no âmbito dos brinquedos, a eleição da presidenta Dilma foi um acontecimento relevante também para construir novos imaginários e alargar horizontes e perspectivas entre meninas e mulheres. Esse fato só reforça que nossa luta é por mais Dilmas e outras corações valentes nos espaços de poder e por mais liberdade para as crianças brincarem com o quê e como elas quiserem.

Dicas de leitura

Nascimento, Antônia Camila. Divisão sexual dos brinquedos infantis: uma reprodução da ideologia patriarcal. O social em questão. Ano XVII, n. 32, 2014.

Acácio, Andréa Maria. A desconstrução dos estereótipos de gênero através do brinquedo e do brincar na Educação Infantil. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização). Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Educação. 55 p. Belo Horizonte, 2019.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)