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Das quatro MPs editadas, três têm o propósito de retirar direitos ou prejudicar os mais vulneráveis. Trataremos das perversidades e dos contrabandos da reforma da Previdência

Que o governo Bolsonaro estaria a serviço do capital, até pela equipe e a agenda liberal assumidas, e que utilizaria os poderes e o orçamento do Estado contra seus supostos “inimigos”, todos sabiam. Porém ninguém imaginava que haveria tanta insensatez e tamanha perseguição aos direitos e às instituições de defesa dos assalariados e dos beneficiários da seguridade social.

Para ilustrar, basta dizer que das quatro medidas provisórias que editou, três (870, 871 e 873), além da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019, têm o propósito de retirar direitos ou prejudicar os mais vulneráveis. A PEC trata da reforma da Previdência e as MPs cuidam, respectivamente: 1) da reestrutura dos ministérios, com a extinção do Ministério do Trabalho; 2) do cerceamento ao acesso a benefícios previdenciários, especialmente auxílio-doença, auxílio-reclusão e aposentadoria rural; e 3) da asfixia financeira dos sindicatos de trabalhadores e servidores, proibindo, inclusive, o desconto em folha da mensalidade associativa.

Nesta coluna vamos tratar das perversidades e dos contrabandos da reforma da Previdência, representados: 1) pela adoção do regime de capitalização em substituição ao regime de repartição; 2) pelas mudanças na concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), no âmbito da assistência social; 3) pelos contrabandos trabalhistas da reforma; 4) pela mudança no cálculo da pensão; e 5) pela exigência de contribuição para aposentadoria do trabalhador rural.

A primeira perversidade é a privatização da Previdência pública, que joga os segurados à sua própria sorte. A PEC prevê a instituição de novo regime de Previdência, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício – sem garantia de contrapartida patronal – com “livre escolha” pelo trabalhador da entidade e da modalidade de gestão das reservas, assegurada a portabilidade.

A própria ideia de “adesão” já é uma armadilha. Tal como ocorreu em 1967, quando foi extinta a estabilidade no emprego e criado o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o novo sistema foi criado por Roberto Campos e pelos militares como “opcional” para o trabalhador. O que se viu, porém, é que somente conseguia emprego quem exercesse, no ato da admissão, a “opção” pelo novo regime. O mesmo ocorrerá com esse novo sistema, que deverá representar redução ou desoneração de encargos previdenciários para os empregadores. Assim, quem não optar “facultativamente” pelo novo regime não terá emprego.

Num sistema desses, que é inspirado no modelo chileno de previdência, as chances de a Previdência Social pública e de caráter solidário e até mesmo os fundos de pensão existentes sobreviverem são muito baixas, porque irão disputar diretamente com o sistema financeiro internacional, leia-se bancos e seguradoras privadas, que terão muito melhores condições de concorrência e poderão usar seu poder de mercado para implodir as previdências dos regimes próprios, geral e complementar das entidades de previdência fechada.

A segunda maldade tem por objetivo ampliar as exigências e dificultar o acesso aos benefícios da assistência social devidos a idosos e pessoas com deficiência. O valor de um salário mínimo só será garantido à pessoa com deficiência que for submetida previamente a rigorosa avaliação, e que comprove estar em condições de miserabilidade, e ao idoso com 70 anos ou mais, também em condições de miserabilidade, vedada, em ambos os casos, sua acumulação com qualquer outro benefício de natureza assistencial ou previdenciário, inclusive pensão por morte.

Para impedir o acesso ao benefício, considera-se em condições de miserabilidade a pessoa com deficiência ou idosa cuja renda mensal integral per capita do grupo familiar seja inferior a um quarto de salário mínimo, e o patrimônio familiar não seja superior a valor a ser fixado em lei. Enquanto não vier a lei, consideram-se: 1) condição de miserabilidade, além da renda mensal per capita inferior a um quarto de salário mínimo, a existência de patrimônio familiar não superior a R$ 98 mil; e 2) família, desde que more sob o mesmo teto, aquela composta por: cônjuge; pai e mãe; irmãos solteiros; filhos e enteados solteiros; ou menores tutelados.

Na regra de transição, até que seja regulamentada a assistência ao idoso, é assegurado à pessoa em condições de miserabilidade, a partir dos 60 anos de idade, um valor inicial de R$ 400 mensais, com elevação conforme a idade, até chegar a um salário mínimo aos 70 anos de idade, vedada a acumulação com qualquer outro benefício assistencial ou previdenciário. Essas idades serão ajustadas sempre que houver aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira após 65 anos.

A terceira perversidade diz respeito à inclusão de dois contrabandos de natureza trabalhista na reforma da Previdência. O primeiro contrabando restringe, de forma drástica, o acesso do trabalhador ao abono do PIS-Pasep. O abono, que era devido a quem teve renda de até dois salários mínimos no ano anterior, será pago apenas a quem teve renda de um salário mínimo no ano anterior e será proporcional ao número de meses trabalhados, e somente será pago, mesmo proporcionalmente, se o trabalhador tiver exercido atividade remunerada, no mínimo por 30 dias no ano-base, e estiver cadastrado há pelo menos cinco anos no programa PIS-Pasep. Isso significa que nenhum trabalhador dos estados que adotaram o piso regional, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, que sempre é superior ao salário mínimo, terá acesso ao abono.

O segundo contrabando, em favor do setor patronal, tem o propósito de isentar o empregador de depositar mensalmente o FGTS, enquanto perdurar a relação de emprego, e dispensá-lo do pagamento da indenização de 40% sobre o saldo do FGTS, em caso de dispensa, do empregado aposentado que manteve o vínculo empregatício.

A quarta perversidade está relacionada com a forma de cálculo da pensão, que deixa de ser integral e cai praticamente para a metade, além de não poder ser paga cumulativamente com outro benefício. A pensão por morte, de acordo com a reforma, equivalerá a uma cota familiar de 50% e mais 10% para cada dependente, até o valor de 100% da média, observado os seguintes critérios: 1) na hipótese de óbito do aposentado, as cotas serão calculadas sobre a totalidade dos proventos do servidor falecido; 2) na hipótese de óbito do servidor em atividade, as cotas serão calculadas sobre o valor dos proventos aos quais o servidor teria direito se fosse aposentador por incapacidade permanente na data do óbito, exceto em caso de morte em serviço, quando corresponderão a 100% da referida média; e 3) as cotas por dependente cessarão com a perda dessa qualidade e não serrão reversíveis aos demais dependentes, preservado o valor de 100% quando o número de dependentes remanescentes for igual ou superior a cinco.

A quinta maldade é a exigência, além de idade mínima, de 20 anos de efetiva contribuição para que o trabalhador rural tenha acesso à aposentadoria. Nenhum trabalhador rural, em regime de economia familiar, terá condições de comprovar 20 anos de contribuição e ficará privado do direito à aposentadoria. Até que entre em vigor a nova lei sobre a forma de contribuição do trabalhador rural, o valor mínimo anual de contribuição do grupo familiar será de R$ 600,00, e na hipótese de não haver comercialização da produção rural durante o ano civil, ou de comercialização da produção insuficiente para atingir o valor mínimo, o segurado deverá realizar o recolhimento da contribuição pelo valor mínimo ou a complementação necessária até o dia 30 de junho do exercício seguinte, sob pena de o período não ser considerado para efeito de aposentadoria.

Como se pode depreender das primeiras medidas governamentais, bem como da ideia de propor a desvinculação e retirar o caráter obrigatório das despesas previstas no orçamento da União, como saúde, educação, pessoal, previdência, assistência e outras, está em curso uma verdadeira operação desmonte, representada, de um lado, pelo desmantelamento do aparelho de Estado e venda do patrimônio público, e, de outro, pela redução ou eliminação de direitos, que incluei também acabar com as instituições, públicas e privadas, encarregadas da defesa dos interesses dos mais vulneráveis. É preciso denunciar e resistir ao desmonte!

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap