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A forma mais eficaz de assegurar receitas mais perenes para a Previdência Pública e evitar reformas que prejudiquem os segurados e os beneficiários, dentre outras medidas, passa pela ampliação da base de custeio com a mudança de fonte de financiamento

O debate sobre a judicialização da desoneração da folha proporciona uma excelente oportunidade para o governo transformar desafios em oportunidades, isto é, aproveitar o momento para ampliar a base de custeio mediante a mudança da fonte de financiamento da parte patronal da Previdência Social, passando da folha de pagamento para a receita ou o faturamento das empresas. Essa medida soluciona um dos problemas estruturais da Previdência Social.

Antes de prosseguir, é fundamental dois esclarecimentos.

O primeiro é que a Previdência Pública universal é essencial para a paz social no país e precisa ser preservada e ampliada, pois ela responde pelas aposentadorias (por idade, por tempo de contribuição e por invalidez), pelas pensões por morte, pelos auxílios-doença e reclusão, pelo salário maternidade e pela reabilitação profissional em caso de acidente e doença.

O segundo é que a sugestão deste texto não visa reduzir a participação total dos empregadores no financiamento da Previdência (contribuição patronal), mas sim ampliar a base de custeio e modificar a fonte de financiamento da Previdência para o faturamento ou receita, na parte que cabe às empresas no custeio da Previdência Social pública, buscando equacionar os problemas relacionados ao capital morto (em máquinas, equipamentos e IA - Inteligência Artificial), ao aumento de produtividade do trabalho e às novas formas de contratação. Os trabalhadores permaneceriam contribuindo com base na folha salarial, com um percentual de sua remuneração, e sua aposentadoria continuaria sendo calculada com base nos salários de contribuição ao longo da vida profissional.

Feitos os esclarecimentos, é preciso registrar que a simples desoneração da folha só faria sentido se viesse acompanhada de cinco condições essenciais:

1) preservação dos benefícios previdenciários, com garantia de repasse automático do valor correspondente à eventual perda de receita, como já ocorre atualmente (em 2025, o governo estima que essa compensação seria da ordem de R$ 11 bilhões, se mantida a desoneração);

2) implementação de mecanismos para evitar volatilidade nas receitas previdenciárias, especialmente em períodos de crise;

3) redução gradual da alíquota sobre a folha, porém sem eliminar essa fonte, como forma de permitir a fiscalização das obrigações fiscais das empresas;

4) aumento da competitividade nacional; e,

5) estímulo à formalização do mercado de trabalho. Porém, isto nunca aconteceu: nem no governo Dilma nem na prorrogação feita pelo Congresso Nacional no terceiro governo Lula.

Atualmente, é indiscutível que o financiamento da parte patronal da Previdência Social via folha de pagamento está rapidamente se esgotando, especialmente com a revolução tecnológica e as novas formas de trabalho sem vínculo formal1. Portanto, urge ampliar as fontes de custeio e mudar a fonte de financiamento antes que o sistema entre em colapso ou as empresas se recusem a migrar devido à alíquota a ser fixada sobre o faturamento ou receita.

Com as formas precárias de trabalho, como a "uberização" e a pejotização, acompanhadas pela automação e digitalização que substituem a mão de obra humana pelo trabalho das máquinas, além do envelhecimento da força de trabalho ativa e aumento da pressão sobre as contas da Previdência Social, as receitas previdenciárias provenientes da folha de pagamento já estão conduzindo à insuficiência de financiamento da Previdência dentro do sistema de Seguridade Social. Isso resulta no crescente uso de recursos fiscais para cobrir o "déficit". Agora, considere o que acontecerá com a ampliação e aceleração do emprego da inteligência artificial. É evidente que, mantido esse modelo de financiamento, o sistema previdenciário se tornará insustentável a curto prazo, levando à ruína da Previdência Social Pública

No cenário atual, com receita previdenciária insuficiente para pagar todos os benefícios do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), o governo inevitavelmente será compelido a implementar novas reformas com viés fiscal, as quais acabariam penalizando duplamente os aposentados e pensionistas e os trabalhadores ou os filiados à Previdência Social pública.

No caso dos aposentados e pensionistas, o governo seria inicialmente pressionado a desvincular o salário mínimo do piso de benefícios da Previdência Social, especialmente enquanto durasse a política de aumento real do mínimo, e, posteriormente, a suprimir o reajuste automático dos benefícios, promovendo arrocho nas aposentadorias e pensões. Essa possibilidade impactaria, ainda, os benefícios da assistência social, o seguro-desemprego, o abono salarial e outras políticas de renda que têm como referência o salário mínimo.

No caso dos trabalhadores ou filiados ao regime geral de Previdência, os prejuízos adviriam, de um lado, do aumento da alíquota e do tempo de contribuição, e, de outro, da redução de seus futuros benefícios. Ou seja, seriam punidos com o adiamento no acesso ao benefício e com a redução no seu valor.

Além disso, a continuidade do atual sistema prejudica os setores intensivos em mão de obra, os quais enfrentam uma alíquota de pelo menos 20% sobre o total da folha, enquanto beneficia setores que empregam pouco, mas possuem alto faturamento, como as big techs, o agronegócio e o sistema financeiro, além de outros segmentos com automação elevada ou pouca dependência de mão de obra direta. Esse sistema não é sustentável para o futuro da Previdência Social pública.

Com a ampliação da base de custeio mediante a mudança da fonte de financiamento da parte patronal da Previdência, da folha para o faturamento ou a receita, desde que realizada com uma alíquota compatível com o que é devido pelos contribuintes patronais ao sistema previdenciário, a arrecadação previdenciária permaneceria constante, mesmo diante da automação da produção, do uso de inteligência artificial, da pejotização das relações de trabalho ou de demissões de funcionários, pois não dependeria de vínculos formais de emprego. Seria a solução mais sustentável frente ao envelhecimento da população e às alterações nos modus de produção e prestação de serviços.

Além disso, com essa mudança, o governo superaria a controvérsia atual sobre a desoneração da folha, que tem sido problemático na relação do Poder Executivo com parte do empresariado e com o Congresso Nacional, e evitaria a necessidade de reformas frequentes para manter o pagamento dos benefícios previdenciários sempre que houvesse diminuição do vínculo formal do empregado, independentemente de sua motivação.

Portanto, a forma mais eficaz de assegurar receitas mais perenes para a Previdência Pública e evitar reformas que prejudiquem os segurados e os beneficiários do Regime Geral de Previdência a curto prazo, dentre outras medidas, passa pela ampliação da base de custeio com a mudança de fonte de financiamento, já que as empresas continuarão faturando e tendo receitas. A tendência é que, por força das novas formas de trabalho, assim como do uso intensivo de tecnologia, os empreendimentos dependam cada vez menos de mão de obra humana. Esse tema é urgente e a mudança já deveria ter sido feito na Emenda Constitucional da reforma tributária.

1 Na Índia, com uma força de trabalho de quase 1 bilhão de pessoas, apenas 100 milhões possuem emprego formal.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – Conselhão.