Colunas | Mundo

Os chamados acordos de “livre comércio” nada têm de “livres” e são compostos por uma série de regras que sempre tendem a contemplar, primeiramente, os interesses dos países mais poderosos

Neste artigo, as críticas ao acordo recentemente negociado entre a União Europeia (UE) e o Mercosul não representam uma posição ideológica e de princípio contrária ao chamado “livre comércio”, pois o comércio internacional é necessário para que um país possa vender o que produz e comprar o que necessita, em ambos os casos, para se desenvolver. No entanto, as posições que tecemos a seguir devem-se às preocupações com nosso desenvolvimento nacional e regional e que, apesar dos descalabros que nos governam no momento, ainda seja possível evitar o mal maior.

Em primeiro lugar, os chamados acordos de “livre comércio” nada têm de “livres” e são compostos por uma série de regras que sempre tendem a contemplar, primeiramente, os interesses dos países mais poderosos, por uma simples razão: eles não precisam ceder muito para fazer acordos, pois já têm acesso aos mercados com quem negociam por intermédio de suas empresas multinacionais. Dessa forma, somente os assinam quando conseguem ampliar esse acesso com pouca ou nenhuma reciprocidade efetiva. Como cantava Raul Seixas: “Nós não vamos pagar nada! É tudo free!"1

Assim foi a tentativa dos EUA de estender o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que nada trouxe de bom para o México, para o restante da América Latina e Caribe por meio da Alca, e somente desistiu quando em 2003 os países do Mercosul fizeram a contraproposta de mudar o formato das negociações. Foi a proposta de negociar por “três trilhos” (bilaterais de acesso a mercado de produtos industriais e agrícolas, plurilaterais dos temas não comerciais que eventualmente fossem de interesse das partes e multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC de acordo com a agenda desta). Agora saiu um acordo entre UE e Mercosul praticamente com o mesmo conteúdo da Alca de quinze anos atrás.

O segundo problema, ainda conceitual, é que um acordo comercial deve ser equilibrado e contribuir para o desenvolvimento mútuo para que todos ganhem. Porém, isso não ocorre quando a assimetria entre as partes é evidente e não há compensações para a parte mais frágil. Os países que hoje são desenvolvidos utilizaram a rodo o poder de seus estados e medidas protecionistas para favorecer suas empresas e alcançar seu estágio atual. Porém, agora defendem a retórica neoliberal que os acordos devem ser aplicados para qualquer país da mesma forma e que isso fortalece os mercados, a eficiência e a produtividade. Credo compartilhado pelo ministro Paulo Guedes e outros do mesmo naipe. É o que o economista Ha Joon Chang intitulou em sua obra-prima Chutando a Escada. Isto é, depois que os países centrais alcançaram o topo, “chutaram” a escada para os demais não subirem2.

A comparação do PIB de 15,3 trilhões de euros da União Europeia, pouco superior ao PIB estadunidense e oito vezes superior ao do Mercosul, bem como sua atual pauta de 15,6% do comércio mundial, igualmente oito vezes superior à nossa participação, deixa evidente a assimetria existente entre os dois blocos e que será perpetuada por esse acordo. Inclusive porque 80% do que a UE exporta hoje para o Mercosul são bens industriais, enquanto nós respondemos com um percentual igual de nossas exportações para a Europa com commodities.

Entretanto, a retórica livre cambista teve eco na contraparte burocrática dos negociadores do Mercosul, em sua maioria adeptos do neoliberalismo e ligados ao setor financeiro e empresarial da região, além de o acordo ser discutido sem qualquer transparência e incidência social, nem mesmo dos empresários cujos setores produtivos poderão ser atropelados pela concorrência assimétrica gerada pelo acordo e sem as devidas salvaguardas.

Assim chegamos ao terceiro problema, que é o conteúdo do que foi negociado. Este se divide de modo geral entre quatro partes: o comércio de bens não agrícolas (produtos industriais e minerais), serviços e bens agrícolas; disciplinas e aspectos técnicos do comércio como regras de origem, aduanas e facilitação de comércio, solução de controvérsias, diálogo e remédios, medidas sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas ao comércio, competição e subsídios; medidas econômicas que nada têm a ver com comércio, como as compras governamentais, propriedade intelectual e origens geográficas, competição/investimentos, empresas estatais e pequenas e médias empresas e, finalmente, salvaguardas como as regras de desenvolvimento sustentável, transparência e o “princípio de precaução”.

Como se pode ver, foi uma negociação “OMC Plus”, incluindo os temas que constavam inicialmente da Rodada Doha, aprovada em 2001 e até hoje inconclusa, apesar da simplificação de sua agenda depois que um grupo de, aproximadamente, vinte países em desenvolvimento se uniram para buscar acesso aos protegidos mercados agrícolas dos países centrais, liderados pelo Brasil e Índia. Conseguiram em 2004 reduzi-la para quatro temas, a saber: produtos não agrícolas (Nama), serviços, produtos agrícolas e regras de facilitação de comércio.

Na parte comercial, a indústria do Mercosul não terá condições de competir com a indústria europeia, e a entrada plena em vigor do acordo no prazo negociado de quinze anos será o último prego no caixão da desindustrialização que enfrentamos e nos tornaremos meros exportadores de commodities. Se as cadeias globais de produção assim o decidirem, poderemos ainda ser plataforma de exportação de bugigangas montadas aqui em função da abundante mão de obra barata. No setor de serviços, além de não ser claro quais serão as áreas que a UE irá abrir, as principais empresas de construção do Brasil foram reduzidas a pó pela “operação lava jato” e levarão muito tempo para se recuperarem, se é que irão. Na área agrícola, os subsídios do Pacto Agrícola Comum (PAC) europeu não serão tocados, e o que o Mercosul conseguiu foram algumas quotas de exportação, e no caso da carne, menos do que havia sido aventado alguns anos atrás. Além disso, não é possível comparar a natureza do comércio de bens industriais com o de bens agrícolas para alcançar um acordo equilibrado, pois enquanto o primeiro possui demanda e preços estáveis ou sob controle das empresas, o segundo varia de acordo com questões climáticas, especulações, entre outros fatores, e quanto mais se vender, os preços tendem a se reduzir de acordo com o aumento da oferta. Assim, o único que pode se considerar beneficiado pela negociação é o agronegócio, que, entretanto, gera poucos empregos e valor agregado.

Os temas econômicos não comerciais, principalmente as compras governamentais, propriedade intelectual e investimentos eliminarão três fatores indutores de desenvolvimento nacional, regional e até municipal ao abri-los para regras e concorrência de empresas europeias. A inclusão da condição de que as empresas estatais terão de se comportar como empresas privadas na economia e sem prerrogativas especiais, um item novo na negociação, chamou a atenção do professor Giorgio Romano Schutte. Em artigo publicado recentemente sobre o acordo, Schutte questionou que dessa forma o sonho de Paulo Guedes de privatizar tudo receberá mais um impulso, pois se haverá restrições à atuação das empresas do Estado, por que mantê-las como tal a não ser para prestar serviços públicos?3

O quarto tema refere-se às salvaguardas solicitadas pela UE nas áreas ambiental e trabalhista. Obviamente menos preocupada com o bem-estar dos sul-americanos e mais em garantir a boa qualidade dos alimentos que chegarão às mesas dos consumidores europeus, bem como manejar dois instrumentos que poderão barrar ou limitar as exportações do Mercosul, pois, principalmente o princípio de precaução, como o nome indica, visa prevenir a importação de bens produzidos por meio da violação de regras ambientais e normas fundamentais de trabalho onde primeiro se acusa e só depois se comprova.

Devido à falta de transparência das negociações e muitos pontos ainda não definidos no conjunto da obra que necessitará ser transformado em tratado jurídico, a necessidade de aprovação pelos poderes legislativos da UE e dos países do Mercosul, no caso do Brasil, pelo Senado, e várias manifestações de descontentamentos de importantes países europeus como, a França, sobre o conteúdo do acordo, principalmente na área agrícola, não é ainda possível afirmar que ele será aprovado sem mudanças. No entanto, se o for, caberá ao movimento social e sindical exigir maiores definições sobre seus pontos estratégicos e o princípio da precaução para usá-lo para defender os direitos dos trabalhadores e da sociedade de nossa região. Temas como quem monitorará o respeito às leis por aqui, quem financiará esse trabalho e como suas avaliações serão tratadas, estarão na ordem do dia.

Esperemos que não se chegue a isso e que um acordo prejudicial como esse não avance. Porém, é espantosa a apatia da sociedade brasileira diante do que estão fazendo com nossa economia e nossos direitos. Durante as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), houve centenas de análises, debates e manifestações, em grande parte críticas ao conteúdo em negociação. Tanto é que o processo foi interrompido quando o governo mudou para melhor. Parece que as pessoas esqueceram que o capital é internacional e que no caso das negociações com a UE, o que diferencia seus negociadores em comparação com as grosserias do sub do sub do sub estadunidense que disse que poderíamos negociar com os pinguins da Antártica é tão somente seu cavalheirismo, mas não os interesses que defendem.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais