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Autorregulamentação não é regulação

A novidade da 5ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa, realizada em Brasília (4/5), foi a proposta de autorregulamentação feita pelo representante da Abril. Segundo ele, “não há outro jeito. Temos um encontro marcado com a autorregulação”. A proposta recebeu apoio da presidente da Associação Nacional de Jornais e o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão disse que a entidade também estuda o assunto.

A autorregulamentação da imprensa é praticada nas democracias representativas há quase um século. Nos EUA, por exemplo, existe desde a década de 1920. Uma das recomendações da famosa Hutchins Commission, que criou a noção de responsabilidade social da imprensa, em 1947, foi exatamente a autorregulamentação.

E qual é o resultado dessa experiência quase centenária? Na avaliação de uma das maiores estudiosas do tema, Ângela Campbell, do Georgetown University Law Center, a “autorregulamentação raramente cumpre o que promete, embora, em alguns casos, tenha sido bem-sucedida como um suplemento à regulação do governo”.

No Brasil, não temos mais Lei de Imprensa. A legislação que regula a radiodifusão é uma colcha de retalhos, mas o texto de referência básico continua sendo a Lei nº 4.117 de 27/8/1962. A grande maioria das normas constitucionais do capítulo “Da Comunicação Social” não foi regulamentada. Por outro lado, o artigo 224, que cria o Conselho de Comunicação Social, regulamentado, não é cumprido.

A única experiência de autorregulamenção da comunicação existente entre nós, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, criado em 1978, foi considerado pela deputada Aline Correa (PP-SP), relatora de projetos que regulamentam a publicidade para crianças na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados, "em condição de falência".

Na verdade, a autorregulamentação proposta pelos donos da mídia é apenas mais uma estratégia preventiva para continuar evitando e combatendo qualquer forma de regulação.

É preciso ficar claro que autorregulamentação não é nem, muito menos, substitui a regulação do Estado. Autorregulamentação apenas complementa a regulação. É assim que funciona nas democracias representativas ao redor do planeta.

A Constituição de 1988, aliás, é absolutamente clara sobre a necessidade da regulação da mídia por meio de leis específicas. Os parágrafos 3º, 4º e 5º do Artigo 220 da Constituição determinam:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)

§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221 [ver abaixo], bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
Só a lei poderá disciplinar a propriedade cruzada que leva aos oligopólios e monopólios; e a imoralidade do “coronelismo eletrônico”, prática na qual as oligarquias regionais e locais perpetuam seu poder compactuadas com setores do Estado e grupos de mídia dominantes no país.

Autorregulamentação não é regulação.

Venício A. de Lima é autor, com Bernardo Kucinski, de Diálogos da Perplexidade – Reflexões Críticas sobre a Mídia, Editora Fundação Perseu Abramo, 2009