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As atividades de trabalho doméstico, cuidado de crianças e idosos, trabalho nas hortas e quintais produtivos, entre outros, sustentam a reprodução da sociedade, como também formam as bases para as demais atividades produtivas

O título deste artigo é inspirado no texto "Pobreza, substantivo feminino", publicado em abril de 2020, pelo Observatório das Desigualdades, da Fundação João Pinheiro em parceria com o Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon Minas). A publicação traz um conjunto de dados que caracterizam o fenômeno da femininização da pobreza e a manutenção da divisão sexual do trabalho no Brasil. Dá ênfase às atividades de cuidado e reprodução social, desempenhadas majoritariamente por mulheres, na dinâmica de desigualdades socioeconômicas e políticas brasileiras.

Neste março-mulher temos visto muitos encontros online e algumas manifestações presenciais em comemoração ao 8M, Dia Internacional da Mulher. Algumas delas com o propósito de debater a relação entre mulheres e economia – tema que não deveria chamar a atenção, afinal não vemos debates sobre homens e economia. Cito aqui duas iniciativas de destaque. As mulheres do "Desajuste, economia fora da curva", rede de jovens economistas criada em 2020, têm feito publicações periódicas ao longo do mês em suas mídias sociais (instagram e twitter). Com propósito semelhante, o Corecon Minas promove lives semanais durante março.

Esses e outros exemplos mostram que as desigualdades de gênero, efetivas e teóricas, têm sido objeto de interesse cada vez mais frequente no campo econômico. Tanto é assim que os cursos de Economia já não mais ignoram as produções acadêmicas femininas, assim como têm buscado incorporar temas da economia feminista nos currículos universitários.

A realidade de hoje é bastante distinta daquela vivenciada por mim, quando, há 13 anos, ingressei no curso de Ciências Econômicas da UFMG. Nossa turma, formada por 30 homens e 10 mulheres, foi muito pouco exposta a esses debates. Tivemos somente uma professora de macroeconomia e menções a questões de gênero eram restritas às disciplinas do campo conhecido como Economia Social.

Felizmente a realidade mudou. Há mais mulheres professoras e estudantes e mais destaque é conferido aos temas de gênero. Mais mulheres circulam entre as referências bibliográficas das ementas das disciplinas, com artigos e livros sobre a questão de gênero e contribuições mais gerais para o campo econômico. Isso se deve em grande medida à atuação dos grupos de pesquisa e de extensão, mobilizados sobretudo pelas alunas.

Um dos temas recorrentes em todos esses fóruns é, como já mencionado, a economia do cuidado. Grosso modo, ela corresponde ao conjunto de atividades de trabalho doméstico, cuidado de crianças e idosos, bem como trabalho nas hortas e quintais produtivos, entre outros. Tais afazeres não somente sustentam a reprodução da sociedade, como formam as bases para todas as demais atividades produtivas. Historicamente, no Brasil e no mundo, tais atividades são desempenhadas por mulheres. Dados de 2019 do IBGE mostram, por exemplo, que as mulheres ocupadas realizam em média 23,8 horas semanais de trabalho doméstico, ao passo que homens ocupados despendem em média 12 horas nesses mesmos trabalhos. No caso das pessoas desocupadas, a relação é de 18,5 horas e 10,3 horas respectivamente. A pesquisa mostra ainda que homens em coabitação nas condições de responsáveis ou cônjuges realizam menos afazeres do que as mulheres nessas mesmas condições – aspecto já vivenciado cotidianamente pela maioria de nós mulheres, agora relatado na Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad).

São muitas as implicações dessa realidade. Uma vida de duplas e triplas jornadas significa menos tempo para participar da esfera pública, fato que explica em grande parte a menor presença das mulheres nas diretorias de associações e cooperativas urbanas e rurais, em postos de liderança comunitária e corporativa e também em cargos eletivos do Legislativo e do Executivo.

A lógica da invisibilização faz com que as próprias mulheres não enxerguem suas tarefas como trabalho. Por isso a experiência da Caderneta Agroecológica, desenvolvida pelo Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata mineira (CTA-ZM), é tão exitosa. A metodologia orienta as mulheres rurais a anotar em uma caderneta todas as atividades realizadas na propriedade, bem como as trocas e vendas de alimento e artesanato e o consumo de alimentos por elas produzidos no âmbito familiar. Onde quer que tenha sido aplicada, a Caderneta Agroecológica tem produzido bons resultados, registrando o trabalho e a contribuição efetiva das mulheres para a soberania alimentar e a geração de renda de suas famílias e comunidades.

Ainda sobre as mulheres rurais, um estudo da FAO/ONU de 2011 mostra que, "se as mulheres tivessem o mesmo acesso aos recursos produtivos que os homens, seria possível aumentar a produtividade das terras entre 20% e 30%. Isso poderia aumentar o resultado agrícola nos países desenvolvidos entre 2,5% e 4% (...) e reduzir o número de pessoas em situação de fome no mundo entre 12% e 17%."

A mesma lógica da invisibilização presente nas famílias – cujo formato monoparental chefiadas por mulheres já correspondia a 45% das famílias brasileiras em 2018 – se estende ao sistema de contas nacionais. Em razão disso, e observando experiências internacionais, a deputada federal Luizianne Lins (PT/CE) propôs o Projeto de Lei 638/2019, que "dispõe sobre a inclusão da economia do cuidado no sistema de contas nacionais, usado para aferição do desenvolvimento econômico e social do país para a definição e implementação de políticas públicas". O PL menciona especificamente trabalhos como i) organização, distribuição e supervisão de tarefas domésticas; ii) preparação de alimentos; iii) limpeza e manutenção de habitação e bens; iv) limpeza e manutenção de vestuário; v) cuidado, formação e educação das crianças (inclusive translado ao colégio e ajuda no desenvolvimento das tarefas escolares); vi) cuidado de anciões e enfermos; vii) realização de compras, pagamentos e trâmites relacionados à casa; viii) reparos no interior da casa; ix) serviços para a comunidade e ajudas não remuneradas a outros lares de parentes, amigos e vizinhos. A justificativa do projeto cita estudos que apontam que o cuidado chega a movimentar em torno de 12% do PIB brasileiro.

Embora o foco deste texto tenha sido o cuidado, pelas razões explicitadas, sabemos que a contribuição das mulheres para a economia alcança todos os setores e ramos produtivos. Esta dinâmica é, geralmente, sempre mediada pela interseccionalidade, ou seja, pela relação entre mulheres, raça e classe, como nos mostram Angela Davis, Lélia Gonzales e tantas outras feministas negras. Neste março de 2021 fomos presenteadas com a reedição de A Classe Operária Tem Dois Sexos, livro de Elisabeth Lobo publicado originalmente em 1991, reeditado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Expressão Popular.

Não resta dúvida, economia é substantivo feminino.

 

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)