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Há em andamento um projeto chamado partido do Poder Militar, no qual a nata da oficialidade buscou no atual presidente o personagem ideal para levar à frente o seu programa

Conjuntura intricada, essa nossa.

Ouvi entrevista de Marcelo Pimentel, coronel do Exército, na reserva, após 7 de Setembro, com todas suas inconstitucionalidades, infelizmente, sem maiores consequências até agora, e não sei se haverá quaisquer.

A longa entrevista, dada ao blogue de Eduardo Moreira, é rica em ensinamentos. Discute os aspectos mais recentes da movimentação do Exército brasileiro. Não volta ao passado histórico das Forças Armadas, cujo envolvimento com a ideologia norte-americana, cuja política de obediência às diretrizes norte-americanas, são proverbiais, e se acentuaram de modo especial no curso e na sequência da Segunda Guerra Mundial.

O objetivo da entrevista era tratar da conjuntura, desse momento, olhando especificamente para os militares. E, nesse sentido, ensina muito. Não vou dissecá-la. Não cabe. Quero ater-me a uma posição do militar. Não há propriamente um projeto de poder de Bolsonaro. Há em andamento um projeto chamado partido do Poder Militar, no qual a nata da oficialidade buscou no atual presidente o personagem ideal para levar à frente o seu programa. Esse é o eixo da entrevista.

Estamos diante de um problema relativamente conhecido, mas nem sempre enfrentado. Ou encarado com manobras de flanco, sem ir a fundo. O espectro militar, essa antiga Espada de Dâmocles, desafia o país tem mais de século. Desde o final do século 19. Nesse momento, o Brasil vive momento decisivo. Creio que estão reunidas as condições para derrotar o atual esquema de poder, tirar pelas eleições o atual presidente do cargo. Com vitória de Lula, único em condições de garantir essa vitória.

Sabemos da capacidade de negociação de Lula. Eleito presidente, por óbvio vai conversar com os militares. Sem ilusões, mas voltado à boa convivência, ao fortalecimento do papel institucional das Forças Armadas. E pode dar passos nessa direção.

Iludir-se, penso, não vai. Os generais, brigadeiros, almirantes não gostam dele, e sabem por quê. Lula, embora pense no longo curso, a ultrapassar o tempo dele no poder, quer garantir a presença das Forças Armadas na defesa dissuasória do país, de garantir a integridade das nossas fronteiras, inclusive da fronteira amazônica.

Às Forças Armadas, nada de se meter em política. É da Constituição. Inteiramente desrespeitada desde o Golpe de 2016.

Mal ou bem, com a Carta de 1988, pensou-se a Defesa comandada por um civil, e assim aconteceu. Desde 2016, tudo mudou. E tais Forças Armadas ocuparam, como diz o coronel Pimentel, coração, tronco e membros do aparato estatal, controlando inteiramente o capitão.

Apesar das aparências em contrário, apesar das frequentes explosões do capitão, a aparentar descontrole, tudo está sempre destinado, no entanto, a divertir o distinto público, e deixar tudo como antes no quartel de Abrantes.

Dominação de quartéis. A mobilização do 7 de Setembro, expressão disso.

Esse é um problema de longo curso – insista-se.

Não podemos nos enganar.

Passou mais de um século sem solução consistente.

Será preciso uma revolução cultural de profundidade, a invadir inclusive os quartéis, cujo ensino terá de sofrer modificações, permitindo aos soldados e oficiais conhecerem a nossa história, inclusive a das instituições armadas pelas quais batalham.

Não podem rezar pela cartilha de West Point, ou ao menos não rezar apenas por ela.

As Forças Armadas, ao tentarem intervir na história, foram enfrentadas algumas vezes.

Faço recorte mais recente.

Em 1954, contou tanto a mobilização popular quando a coragem do marechal Lott em seguida para garantir a posse de Juscelino.

Em 1961, para a posse de Goulart, a ousadia de Brizola, a mobilização da Brigada Gaúcha e, por fim, a adesão do III Exército.

Em 1964, a direita, sob o comando dos EUA, preparou bem o bote, deu o golpe com tranquilidade, e amargamos 21 anos de ditadura.

Lula vai governar, e saberá fazê-lo. Não desconhece, no entanto, a existência desse espectro.

Não acontecendo um processo de mudanças culturais profundas na sociedade brasileira e nos quartéis, o espectro sempre sobrevoará a Nação.

Tem sido assim.

E o Partido Militar, acompanhando o coronel Pimentel, gostou de experimentar o comando direto – e a tal partido pouco importam os absurdos cometidos por esse ou aquele oficial, caricato seja esse ou aquele general. O general Pazuello talvez seja o exemplo mais, vamos lá, obsceno, tão caricato, e cuja política de saúde, obedecendo o presidente, foi evidentemente genocida.

E o pior: esse processo político de luta pela hegemonia não pode ser gerido pela pressa. Apressado come cru.  

Acompanhando Gramsci, guerra de posição.

Não de movimento.

Ocupar o terreno passo a passo. Às vezes, terrenos ásperos.

A recomendar muita capacidade de negociação. Às vezes, análises apressadas querem atribuir o atual quadro apenas às ações políticas do atual presidente.

Besteira.

Ele cresceu na esteira do pensamento conservador da sociedade brasileira, a permitir o florescimento da extrema-direita desde o Golpe de 2016.

Detém mais de 30% nas pesquisas, não por qualquer milagre. É sustentado por uma ideologia de parcela significativa do povo. Não devemos nos enganar sob pena de subestimarmos a enorme tarefa pela frente.

Lula é um pacificador. Não é, no entanto, produtor de milagres.

A cultura terá, penso, um papel essencial no governo dele. Como a educação. Conjugadas, podem ser instrumentos essenciais da luta a ser empreendida desde o primeiro momento do governo de Lula, no sentido de ir mobilizando corações e mentes em favor de uma sociedade democrática, civilizada, com instituições sólidas, inclusive com Forças Armadas democráticas.

Não, não acho tarefa para um quadriênio. Será para um tempo maior.

Acredito ser possível ir passo a passo pensando um novo currículo para nossas Forças Armadas, em que a verdade histórica seja cimento essencial. Por que não?

Nada virá como raio num dia de céu azul. De uma hora pra outra.

O movimento da sociedade, ligado às ações novo governo, poderão envolver positivamente as Forças Armadas, levando-as lentamente a uma nova concepção, aproximando-as da Constituição.

Lembro dos esforços de Lula nessa direção, em governos anteriores. Lembro de um Waldir Pires, com visão aberta, ampla, sobre a Defesa. De um Genoíno, tentando ajudar na construção de uma concepção ampla das Forças Armadas.

Retrocedemos, desde 2016. Agora, ao chegar novamente ao governo, esperança baseada nos fatos, na força de Lula, vamos ter de encarar de frente o problema. Sem confrontos inúteis, de modo sereno e corajoso. Chamar os militares responsáveis ao cumprimento dos deveres, circunscritos à Constituição, e pensar, com eles, caminhos para desenvolver pensamentos diversos no interior das Forças Armadas.

A história do passo a passo, caminhar. Cada passo, importante.

Lula sabe: tem muitos outros desafios. E sabe também: esse desafio, o das Forças Armadas, terá de ser encarado logo nos primeiros dias, e durante todo o mandato.

A sabedoria dele, torçamos, construirá uma travessia sem turbulências.

Armas deverão sempre estar sob controle civil. Essa a construção. Lição vinda dos países considerados civilizados e democráticos.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros