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O jornal enfrenta a contradição de dar a notícia de 33 milhões de pessoas passando fome e simultaneamente publicar editorial contra a PEC destinada a enfrentar essa tragédia

Disse mais de uma vez, no decorrer do governo que se encerrou, do papel de toda a mídia: apoio à política econômica de Paulo Guedes, posto Ipiranga do presidente.

Havia, é inegável, uma parte dela a se opor ao negacionismo absurdo, criminoso do ex-presidente da República, a ocasionar milhares de mortes, crime ainda impune não obstante fartamente denunciado. E isso era de ser saudado, e era.

Mas não enganava ninguém.

Como é parte indissociável do projeto neoliberal em andamento, como apoiou o golpe de 2016 e a eleição do presidente que acaba de ir embora, a grande mídia empresarial brasileira sempre apoiou as políticas econômicas neoliberais.

Pra fazer justiça, não lhe tirar méritos, ela o faz já tem bom tempo, e o período Fernando Henrique Cardoso é o exemplo mais nítido dessa política da grande mídia, quando houve um casamento perfeito entre os interesses do Príncipe, os da grande mídia e os do capital.

Não cabe inocência: como ela integra de modo compacto os grandes monopólios, como é parte do processo de acumulação capitalista no País, como se dedica à venda da mercadoria-notícia, como não consegue enxergar a especificidade dessa mercadoria, embarca de modo despudorado na defesa dos interesses neoliberais, sem lhe importar as consequências sociais decorrentes daqueles interesses.

Alguém pode me alertar: ainda seja sob o capitalismo, há grandes empresas, em tantos países onde vige o capitalismo, capazes de fazer um jornalismo bem mais próximo de parâmetros honestos, não tão apegados à lógica exclusiva do capital ou ao menos não tão vinculados exclusivamente a ela.

É alerta correto, verdadeiro.

Eu diria: aqueles veículos de além-mar trabalham melhor a mercadoria-notícia. Olham para a singularidade da atividade escolhida. Preservam alguns interesses fundamentais do capital, sempre os há, e tocam o negócio de modo a produzir mercadoria capaz de interessar ao público e aos interesses do país, até certo ponto, sempre.

O caso brasileiro é singular. Aqui, Gramsci está cheio de razão: a grande mídia brasileira é um partido político. Guarda impressionante unidade na defesa dos privilégios da classe dominante. Poucos países do mundo podem se orgulhar de ter uma mídia tão partidarizada, e aqui na linha do partido único, muito embora ela guarde o costume de criticar países cujo modelo seja o do partido único.

Devo corrigir-me – não deveria dizer “podem se orgulhar de ter uma mídia tão partidarizada”.

Deveria dizer “envergonhar-se”. Mas tenho certeza, convicção da autossuficiência dela, do orgulho mesmo de ser defensora de privilégios centenários. Tanto, tanto, a ponto de a qualquer movimento da política no sentido de atender aos mais pobres ela, de pronto, se encontra de armas na mão.

Não, ela não tem vergonha. Nenhuma.

Se for o caso de defender tenha o povo de continuar a passar fome, ela o faz sem qualquer constrangimento. Não cora.

A Folha de S. Paulo enfrenta a contradição de dar a notícia de 33 milhões de pessoas passando fome e simultaneamente publicar editorial contra a PEC destinada a enfrentar essa tragédia. Não se constrange de chamá-la “PEC da Gastança”.

A defender, com tal linha editorial, a política rentista do grande capital, dela própria e dos demais – os especuladores financeiros brasileiros e internacionais.

Chega em editorial recente, publicado em primeira página, a agourar o fracasso do governo Lula exatamente por pretender combater a fome.

Um escárnio.

Se o povo tem fome, que morra.

Importante, essencial: a garantia do pagamento dos juros dos rentistas.

Estes nunca podem ser colocados em risco.

E diga-se: ela é levada, pelo fanatismo neoliberal dela, ao exagero, a fantasias descabidas, a anúncios apocalípticos despropositados.

Porque, a bem da verdade, a PEC destinada a garantir o combate à fome e o desenvolvimento de outras políticas sociais, está longe de representar qualquer abalo à política econômica, sequer ao chamado teto de gastos.

Não, ela não fez qualquer escândalo quando do estouro do teto por parte do posto Ipiranga.

Com ele, podia.

Alguns desses órgãos de comunicação, mais raivosos, faca nos dentes. A Folha, entre estes.

Recomendo leitura mais recente pra não ficar na lembrança tão oportuna de Gramsci.

Brilhante Beatriz Kushnir, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988.

Ali o leitor encontra um retrato em preto e branco do jornal, incluída a conivência com a ditadura – cães de guarda dos militares.

Não foi só ela, é verdade.

O Estadão pode ser lembrado, sempre coerente no conservadorismo.

E isso para falar apenas de jornais.

No último mês, a Folha investiu contra jornalistas de opinião, demitindo-os. Opinião de esquerda.

Como Marilene Felinto, como Gregório Duvivier.

Teve a arrogância, a petulância, e eu diria a crueldade de demitir Jânio de Freitas, notável exemplo de jornalista comprometido com a luta pela liberdade, sempre, ele já na casa dos 90 anos de idade.

Um tapa na cara do jornalismo brasileiro, daquele envolvido com a busca incansável da verdade.

Demitiu uma legenda do jornalismo.

Tudo junto e misturado: o combate aberto ao governo Lula antes mesmo dele assumir, a irresponsabilidade de classificar a PEC contra a fome de “PEC da Gastança”, e a “limpeza de área” ao demitir vozes incômodas, porque de espírito livre, avessas a dizer amém ao rentismo e dispostas a defender interesses dos mais pobres, em nome do bom jornalismo, da verdade.

Não disse novidades, sei disso.

Mas sempre acho o óbvio, ou o quase-óbvio, importante.

Para ninguém esquecer da natureza de nossa mídia empresarial.

Para com ela não se iludir.

Inclusive o governo Lula, que acaba de tomar posse.

Para felicidade do país e do mundo. E para tristeza e decepção da Folha, cujo amargor ela deixa evidente com as últimas atitudes.

Ela tem lado: o do capital.

Lula e o governo, outro: o do povo, especialmente o lado dos mais pobres, e primeiro o lado dos 33 milhões a experimentar a tragédia da fome.

Não, Lula não vai nem pode nem tem ilusões de acabar com o capitalismo. Mas quer, e é o mínimo sob o capitalismo, repartir o pão. Um preceito cristão, não?

O Cristo construído pela história e pela cultura agiu assim, não?

Finalizo, insistindo: nós não temos o direito de ter ilusões com essa mídia. Conviver com ela, sem dúvida, porque um governo visceralmente democrático. Iludir-se, jamais.

Temos a possibilidade, nosso governo tem, de saudar uma mídia independente, tantos blogues comprometidos com a verdade, cuja trajetória devemos recordar e fortalecer, revistas eletrônicas e em papel independentes.

Há jornalismo.

Raramente, na mídia empresarial.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros