Colunas | Opinião

O PCB lutava pela ampliação da democracia, acreditava numa conjuntura de mais liberdade, e por isso constitui uma rede sólida, ampla, de jornais por todo o país

Primeiras horas da noite de 22 de maio de 1947.

Jornalistas, empenhados no fechamento. Redação, na Ladeira de São Bento, próxima à Praça Castro Alves, vizinha do secular Mosteiro de São Bento, Salvador, Bahia.

Fumaça, muita fumaça – naqueles tempos, pessoal fumava demais. Horas barulhentas, animadas, momentos de decisão sobre as matérias a ocupar a primeira página, qual a manchete, quais os títulos das páginas internas, revisão dos textos, um corre-corre, trabalho intenso.

De repente, um estrondo. Machadadas na porta.

Oficiais e soldados do Exército irrompem na redação, arrebentando tudo. Os militares arrombaram a porta da gerência, invadiram oficina. Nada sobrava. Não houve tempo para qualquer reação. Danificaram as máquinas impressoras e a linotipo, os móveis, tudo. Um terremoto, próprio daqueles tempos de intensificação da Guerra Fria sob Dutra. Destruição completa.

Jornal O Momento, do Partido Comunista Brasileiro, PCB. Lançado em 1945, primeiro jornal comunista na nova fase política iniciada naquele ano. João Falcão, veterano militante apesar de jovem, diretor. Fora o principal articulador da revista Seiva, publicação surgida em 1938, a congregar comunistas e liberais-democratas, experiência encerrada em 1952, tendo publicado 23 números. Tinha experiência.

João Batista de Lima e Silva, secretário de redação. Mário Alves, redator-chefe. Os dois, também muito jovens, tinham já alguma experiência e protagonizarão papéis fortes na história do PCB.

Primeira edição circula no dia 9 de abril de 1945. Surge como semanário, origem ligada à luta contra o Estado Novo e pela redemocratização do país. Em 1946, passa a diário. Resistirá por 12 anos. Foram 55 números como semanário, 2700 como jornal diário – não foi pouca coisa, não.

Reuniu jornalistas e intelectuais de grande prestígio. Já nos referimos a João Falcão, a João Batista de Lima e Silva, a Mário Alves. Há, ainda, Alberto Passos Guimarães, Almir Matos, Aristeu Nogueira, José Gorender, Jacob Gorender, Ariovaldo Matos, Luís Henrique Dias Tavares, Maurício Naiberg, entre tantos.

Alguns, continuarão como jornalistas. Outros tantos, dirigentes do PCB e mais tarde de outras organizações revolucionárias. E, ainda, homens da literatura, e ao menos um notório historiador, caso de Luís Henrique Dias Tavares, cujo ingresso no jornal se deu no segundo número. Teóricos a marcar história, entre os quais Jacob Gorender e Alberto Passos Guimarães.

O PCB lutava pela ampliação da democracia, acreditava numa conjuntura de mais liberdade, e por isso vai constituir uma rede sólida, ampla, de jornais por todo o país.

Logo depois do surgimento de O Momento, pouco mais de um mês, em 1945, surge a Tribuna Popular, no Rio de Janeiro.

Em outubro, o jornal Hoje, em São Paulo.

Em novembro, a Folha do Povo, de Pernambuco.

Em março de 1946, ressurge A Classe Operária, órgão do Comitê Central do partido.

E foram nascendo a Tribuna Gaúcha, em Porto Alegre, Folha Capixaba, no Espírito Santo, O Democrata, no Ceará, e a Voz do Povo, em Alagoas, entre outros.

O partido sabia: a chamada imprensa burguesa não lhe daria espaço, muita vezes o combateria.

O Momento, no surgimento, pedia a liberdade de Prestes e até a volta de Otávio Mangabeira, exilado nos EUA – mais rápido do que se imaginava, Mangabeira vai se tornar duro adversário dos comunistas.

O PCB queria um governo de coalizão de todas as forças democráticas. Afinal, saía-se da ditadura do Estado Novo. E o término da Segunda Guerra, com o papel decisivo da URSS, dava aos comunistas muitas esperanças de crescimento, e isso só poderia acontecer em meio à democracia.

Vargas e o Queremismo, no entanto, foram derrotados. Dutra deu o golpe. O PCB apoiava a continuidade do presidente, convocação de novas eleições, com a participação dele e Assembleia Constituinte. Dutra era opção da direita nacional e dos EUA. Intensificou o clima de Guerra Fria, de perseguição aos comunistas, e a Bahia não estava fora disso obviamente. De modo especial, perseguição à sua imprensa, ao jornal O Momento.

A cassação do registro do PCB ocorreu em 7 de maio de 1947, poucos dias antes do empastelamento d’O Momento. O partido havia obtido quase 10% de votos para a presidência da República e elegera 14 deputados federais, entre os quais o baiano Carlos Marighella. E Luís Carlos Prestes, senador.

O empastelamento foi uma espécie de estopim para a rápida deterioração das relações entre os comunistas e o governador.

Em 1946, o PCB, terminadas as eleições, intensifica sua atuação entre os trabalhadores. É reprimido desde o primeiro momento. Houve repressão a repórteres de O Momento, o governo proíbe o diário de promover sabatinas com os trabalhadores nas empresas e nas fábricas. Comícios nas portas das fábricas também são proibidos.

João Falcão chegou a se defrontar com impressionante aparato policial no cais do Porto, em Salvador, à frente da reportagem d’O Momento, quando seria realizada uma reunião com portuários e estivadores. Após o episódio, houve reações de parlamentares, entre os quais de Carlos Marighella, Nestor Duarte, Rui Santos e Aliomar Baleeiro. E a imprensa baiana naquele momento se solidarizou com o jornal, condenando as proibições das sabatinas. A repressão ganhou intensidade com a cassação do registro do PCB.

O empastelamento de maio de 1947 aconteceu nesse quadro. O argumento para a repressão: o jornal publicou matérias ofensivas ao general Dutra. O jornal não deixou de circular, e caracterizava o empastelamento como coisa de “desordeiros fascistas” a serviço da ditadura Dutra, tentando inocentar o Exército, inutilmente.

Viria mais em fevereiro de 1948, aí já ação direta de policiais baianos sob ordens de Mangabeira, rompimento estabelecido.

A polícia argumentou ter ouvido estouros vindos do jornal – acreditava serem tiros. A repressão tentou invadir o jornal, forçou as portas, ameaçou jogar gás lacrimogêneo. Os jornalistas ofereceram resistência: recusaram-se a sair, abrir portas, fizeram barricada. Há depoimentos admitindo a possibilidade de a redação ter reagido à bala de fato. Nessa época, tal a repressão, havia jornalistas preferindo andar armados, dispostos a resistir, como Ariovaldo Matos teria admitido. Clima de confronto, desigual fosse, mas de confronto. Imprensa comunista sitiada.

O jornal comunista denunciava a traição do governador. Durante a eleição, fizera juras de defender o direito do partido de participar da vida democrática. Não cumpriu. Liberais, defendem a liberdade de expressão até um limite. Ultrapassados os seus interesses de classe, mandam descer o porrete, como ocorreu na Bahia, sob Mangabeira.

Não cessariam aí as perseguições à imprensa comunista.

As conjunturas se modificavam, mas o combate aos comunistas, não. Vargas havia voltado ao poder, Régis Pacheco governava a Bahia. E a partir de 1952, houve intensificação do anticomunismo. Guerra Fria seguia à toda, e o pau cantava no  lombo do PCB.

O jornalista e militante do PCB, José Gorender, foi preso no início do mês de dezembro daquele ano, solto somente no final do mês, dia 29, por força de um habeas corpus.

Boris Tabacoff, secretário do Comitê Estadual do partido, também jornalista, preso, passou 50 dias na prisão, incomunicável, acusado de ter conclamado o povo se organizar e lutar contra o Acordo Militar Brasil-EUA.

O jornalista Nelson Schaun, dirigente da sucursal de O Momento em Ilhéus, no Sul do Estado, foi agredido por policiais.

Vida que segue e em março de 1953 um estafeta de O Momento foi preso e os jornais, apreendidos. A repressão também prendeu vários militantes do Movimento Baiano dos Partidários da Paz, entre os quais,  jornalistas, Simão Schinitman, um deles.

O secretário de Segurança Pública, Laurindo Régis, afirmava: as prisões eram de rotina. Prometia manter sob vigilância rigorosa “os elementos ou setores considerados subversivos”. Alimentava particular convicção: comunista era sempre potencialmente perigoso, e quando organizado passava a ser um fora da lei. João Falcão o qualificava como um “provocador anticomunista” desde o episódio do cais do porto, quando se defrontou com ele, então ainda um simples comissário.

Em maio daquele ano, 1953, repressão invade a sede da sucursal do jornal A Voz Operária, publicação oficial da direção do PCB no Brasil. Invade e interdita a sede. E além de queda, coice: realiza diligências nas casas dos jornalistas Ariovaldo Matos e Altamirando Marques, ambos de O Momento.

Jogo bruto. Vida dura, a dos jornalistas – se comunistas.

No dia 30 de julho, estamos ainda em 1953, um comissário de polícia, Heleno Lima, faz ofício ao capitão Durval Carneiro. Informa ter apreendido duas carroças abarrotadas de material comunista e subversivo. Grave: tais veículos trafegavam “livre e ostensivamente” no dia 27 daquele mês, do Edifício Coqueijo, na Praça Municipal, para a sede do jornal O Momento, na Ladeira de São Bento, onde o farto material era “depositado”.

Aí se vê o perigo do “guarda da esquina” a que se referiu o então vice-presidente Pedro Aleixo na fatídica noite em que se decidiu pelo AI-5, 13 de dezembro de 1968, em reunião presidida pelo ditador Costa e Silva. Lembram? – “o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

Em razão da “gravidade do fato”, Heleno Lima dizia ser necessária uma diligência no jornal para busca e apreensão do “material subversivo”. Solicitava a presença do capitão Durval  Carneiro, delegado do DOPS, e a assistência do Ministério Público, de modo a revestir o arbítrio de algum manto de legalidade.

Dia seguinte, 31 de julho, ouvindo o “guarda da esquina”, de manhã bem cedo, ocorre o segundo empastelamento de O Momento.

O capitão Durval Carneiro, à frente de um grande número de policiais invade o jornal – vocês sabem, jornalista é um ser muito perigoso, ainda mais se comunista. Acompanhado, ainda, de um grupo de choque, metralhadoras à mão.

Outra vez, violência, quebra-quebra, apreensão de todo o material encontrado, prisão de todas as pessoas presentes, jornalistas ou não, interdição da sede, e logo depois, determinada a apreensão das máquinas.

Vá, vá ser comunista na vida, vá: é sina perigosa, torna o viver arriscoso demais.

Instaurado inquérito, presos recolhidos à Casa de Detenção durante alguns dias para interrogatório, residências deles invadidas, vasculhadas, e novas prisões no decorrer do inquérito. Aristeu Nogueira, diretor do jornal, dirigente do PCB, impetra mandado de segurança contra as medidas policiais, solicitando, ainda, a volta do funcionamento do jornal, e consegue liminar.

Janeiro de 1954: o próprio Aristeu Nogueira é preso. O Momento, acusado de desrespeitar a Lei de Imprensa por publicar o “Programa de Salvação Nacional”, do PCB.

Liberdade de imprensa, sim. Menos para os comunistas.

O Momento sobreviveu entre 1945 e 1957. Duramente perseguido, teve o seu fim apressado pela turbulência decorrente do Relatório Kruschev, com denúncias duríssimas contra o stalinismo. No PCB, caiu como bomba. Houve divisões, a afetar também a imprensa do partido, e o próprio jornal comunista baiano.

O fundador de O Momento, João Falcão, rompido com o partido em razão do Relatório Kruschev, não com o pensamento de esquerda, fundará o Jornal da Bahia em 1958.

A história da imprensa comunista no Estado, aqui no recorte de O Momento, desmascara o pensamento liberal de maneira nítida – durante toda a sua existência, houve a luta das classes dominantes locais, nos vários governos, para coibir a livre expressão do pensamento. Tudo podia – pensamento comunista, não.

Nota do autor: Mergulho nesses episódios sobre a repressão à imprensa comunista na Bahia, impulsionado pela minha chegada à Academia de Letras da Bahia (ALB), empossado em março deste ano. Sucedi Luís Henrique Dias Tavares na Cadeira Número 1, um dos mais notórios historiadores brasileiros, cuja trajetória iniciou-se n’O Momento, no segundo número do jornal. Nesse texto, ele aparece rapidamente. Virá de modo mais abrangente em outras publicações, ainda suscitadas pelas pesquisas realizadas sobre o trabalho de Tavares, a redundar no discurso de posse, base para esses escritos.

Referências bibliográficas

SERRA, Sônia. O Momento: História de um jornal militante. Dissertação apresentada à Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais (área de concentração em História Social). Salvador - Bahia, 1987.

FALCÃO, João. O Partido Comunista que eu conheci (20 anos de clandestinidade). Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira, 1988.

FALCÃO, João. Valeu a pena (Desafios de minha vida). Salvador : Ponto & Vírgula, 2009.

FALCÃO, João. Comunicação sobre a Revista Seiva, feita aos 26 de setembro de 1990, no 1º Seminário de Revistas e Movimentos Literários da Bahia, na Academia de Letras da Bahia. Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 39, maio/1993. Salvador, Academia de Letras da Bahia, p. 251-259.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vols.), O Cão Morde a Noite, entre outros