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A referência ao "buenvivir" é frutífera porque "conceitua os indivíduos no âmbito da comunidade e de um contexto ecológico específicos"

Entre os dias 8 e 11 de fevereiro de 2021 ocorreu a 47ª Sessão Plenária do Conselho de Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (CSA/FAO). Um dos temas em discussão foi a Cúpula do Sistema Alimentar da ONU, prevista para ocorrer em Nova York, em setembro de 2021. Movimentos e organizações sociais de todo o mundo já alertam e denunciam o que seria a captura corporativa do encontro. Isto é, seu alinhamento aos interesses das grandes empresas multinacionais que controlam (quase) tudo o que comemos, como bem mostrou o estudo da Oxfam, de 2013.

A propósito desta sessão, quero repercutir e analisar um importante documento1 elaborado pelas juventudes integrantes do Mecanismo da Sociedade Civil e Povos Tradicionais, ligado à FAO (CSM/FAO). Trata-se da contribuição do grupo de juventudes para o relatório em elaboração sobre Promoção de emprego e engajamento juvenil na agricultura e no sistema agroalimentar. (Além das juventudes organizadas no CSM, foram registradas 71 respostas à consulta pública no site da FAO).

O grupo é formado por representações de todo o mundo de agricultores familiares e pequenos agricultores, pastoralistas, indígenas, povos tradicionais, pescadores artesanais, trabalhadores da agricultura e da indústria da alimentação, sem terra, consumidores, estudantes, acadêmicos, membros de ONGs e outros.

A mística inicial que introduz o documento dá a tônica da contribuição das juventudes: "Nossa comida não é um negócio. Em toda a beleza de suas variedades e cores, ela nos dá a vida. (...) Nossa comida não é um negócio. Nossa comida é nossa medicina e nosso futuro". O poema foi escrito por Nicole Yanes, Opata, indígena da região da fronteira dos Estados Unidos com o México, com excertos de duas Declarações de 2019 que afirmam direitos indígenas: Declaração de Tlaxcala e Declaração de Takahiwai.

Seguindo essa linha, a posição das juventudes sobre o tema emprego e engajamento na agricultura e no sistema alimentar busca enfatizar os desafios de fundo que motivam o êxodo rural e as vulnerabilidades juvenis. O texto que chegou aos jovens dá centralidade a três conceitos fundamentais: direitos, agência e equidade. Todos três foram bem recebidos, porém entende-se que suas formulações são insuficientes para reverter a dinâmica historicamente desigual que confere às juventudes posição de subordinação no sistema agroalimentar. É preciso mais.

Direitos devem, portanto, estar conectados a responsabilidades. Ou seja, a esforços estatais de promoção de vida digna que de fato garantam as condições para a sucessão rural, para a permanência das juventudes no campo, nas florestas e nas águas. Assim, direito, simultaneamente, se contrapõe e se sobrepõe à perspectiva de acesso – à terra, aos recursos produtivos, ao mercado2.

A agência tem a ver com autonomia e emancipação. A participação nos fóruns e espaços de decisão – familiar, nas cooperativas e nas instituições públicas e privadas – se mostra essencial. Em vez de protocolar, instrumental e simbólica, deve ser entendida como direito, elemento genuíno e essencial para o engajamento juvenil no sistema agroalimentar.

A equidade depende fundamentalmente do enfrentamento das estruturas e dinâmicas desiguais que caracterizam o atual sistema agroalimentar. As juventudes apontam a necessidade de mudanças profundas, que vão desde a forma de cultivar e/ou coletar os alimentos até o momento do descarte. Nessa perspectiva, campo e cidade não são dois pólos, muito menos opostos, mas espaços complementares e interdependentes de um mesmo sistema.

A radicalidade – no sentido etimológico da raiz – das mudanças necessárias decorre da gravidade do contexto de desigualdades, fome, insegurança alimentar e degradação da Casa Comum, como nos chamou a atenção o Papa Francisco em sua encíclica LaudatoSí'’ de 2015. Sua superação requer outros enquadramentos teóricos e práticos.

É aí que as juventudes propõem a incorporação de um quarto pilar orientador: o Bem Viver. Juntamente com as noções de direitos, agência e equidade, a referência ao buenvivir é frutífera porque "conceitua os indivíduos no âmbito da comunidade e de um contexto ecológico específicos". As juventudes argumentam que sua importância adquire ainda mais relevo por se tratar de uma instância "explicitamente decolonial". Na mesma linha, valorizam as abordagens da soberania alimentar e da agroecologia, ambas profundamente embebidas no contexto decolonial e diretamente ligadas aos movimentos e organizações sociais do Sul global. O intuito é, portanto, "localizar os sistemas alimentares". Isto é, afirmar o controle popular sobre o sistema agroalimentar em nível local e construir interações mutuamente benéficas entre provedores locais de alimentos de diversos territórios.

A educação é outro tema amplamente discutido no documento. Vista pela ótica do direito, ressalta-se que ela não deve ter finalidade única de preparação para o mercado de trabalho. Deve-se pensar também no papel da educação na "recuperação das culturas e na valorização dos modos de vida tradicionais".

Nessa mesma linha segue o debate acerca da tecnologia. A esse respeito, as juventudes problematizam pressupostos corriqueiramente mobilizados pelo senso comum: i) jovens são inovadores e querem sempre empregar novos dispositivos tecnológicos; ii) jovens desejam permanecer no campo apenas se tiverem acesso às melhores e mais atualizadas tecnologias; e iii) as tecnologias solucionam a maior parte dos problemas das juventudes.

Ao problematizar essas questões, argumentam que inovar nem sempre implica adotar novos dispositivos ou técnicas, mas pode também significar o resgate de práticas perdidas ou marginalizadas, como nos ensina cotidianamente a agroecologia. Ademais, lembram que a tecnologia é uma faca de dois gumes, pois destrói postos de trabalho ao mesmo tempo em que abre novas oportunidades. Cabe indagar: os beneficiários das novas oportunidades são os mesmos que perderam seus trabalhos e tiveram seus modos de vida destruídos?

Outras perguntas necessárias dizem respeito à intencionalidade das novas tecnologias e às consequências em termos de distribuição da renda e controle dos processos de trabalho e produtivos. Assim, levantam questões como: Quem são os desenvolvedores das novas tecnologias e quais são seus propósitos e interesses? Quem controla os dados produzidos nos sistemas da chamada Agricultura 4.0? Se e como esses dados são utilizados para beneficiar a vida das famílias agricultoras, das juventudes e do planeta?

As inovações que de fato podem interessar às juventudes do CSM/FAO são aquelas ligadas à produção e ao desenvolvimento de conhecimentos locais; inovações que fomentam e valorizam habilidades compartilhadas e a aplicação de saberes tradicionais juntamente com saberes científicos; inovações elaboradas para espaços e condições específicas de pequenas propriedades, individuais e coletivas; inovações menos poluentes e aptas a reciclar e reaproveitar os resíduos descartados; inovações que contribuem para o aumento da renda das famílias sem atrelá-las a uma espiral sem fim de compra de insumos e sementes estéreis que a cada safra reduzem o lucro marginal e aumentam a degradação da natureza e da vida de maneira geral.

Como se vê, são muitas, umas mais simples outras mais complexas, as mudanças necessárias para transformar o sistema agroalimentar. Para localizá-lo, para garantir autonomia e possibilidades de emancipação dos sujeitos que em toda sua diversidade fazem a rede mundial de alimentos. Há que se reconhecer e valorizar o trabalho daqueles e, sobretudo, daquelas que pouco ou nada recebem como remuneração das tarefas desempenhadas. É também preciso desmonetizar ou descapitalizar conhecimentos, propriedade intelectual e relações a fim de fortalecer práticas de trocas e redes de solidariedade, à semelhança do que propõe o Bem Viver.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)