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No Brasil, o aborto inseguro é a quinta causa de morte materna. Dados da OMS indicam que 45% dos 55 milhões de abortos anuais no mundo são realizados de forma insegura

Em 14 de junho foi aprovado pela Câmara dos Deputados o projeto de lei que legaliza o aborto na Argentina. O projeto vai ao Senado e se aprovado segue para sanção do presidente Mauricio Macri – que garantiu que não deverá vetar a medida. As imagens das milhões de pessoas ocupando a Praça do Congresso em Buenos Aires rodaram as redes e emocionaram feministas de toda a América Latina. Com a aprovação da lei, a Argentina passa a ser o quinto país latino-americano a legalizar a prática do aborto, depois de Cuba, Porto Rico, Guiana e Uruguai, além da Cidade do México.

No Brasil essa parece ser uma conquista ainda distante. Desde o período da redemocratização e mais especialmente durante os governos Lula/Dilma, vimos o crescimento expressivo dos movimentos feministas, o fortalecimento da agenda de mulheres na esfera pública nacional, a institucionalização de políticas públicas, a aprovação de leis como a Lei Maria da Penha (Lei n.11.340/2006) e até mesmo a extensão do direito ao aborto em caso de anencefalia fetal, autorizado pelo Superior Tribunal Federal em 2012.

Contudo, vimos também forte reação a essas conquistas. E esbarramos no que podemos considerar como um verdadeiro calcanhar de aquiles das minorias políticas: a representação política, em especial nas casas legislativas. De fato, o crescimento dos movimentos feministas não resultou em aumento da representação feminina no Congresso Nacional. Também por isso, a eleição de uma mulher para o cargo mais importante do país não repercutiu como gostaríamos em termos de políticas e equipamentos públicos para as mulheres. As conquistas foram importantes, mas os desafios persistem.

Com o golpe – que teve todas as características de um processo machista e misógino –, acumulam-se os retrocessos em relação às políticas para as mulheres. E mais, justamente no momento de recuo do Estado em relação à oferta de políticas e equipamentos públicos, vemos o aumento do controle moral sobre a vida das mulheres e o fortalecimento do ideal conservador de família. Nesse contexto, o tema do aborto é, via de regra, mobilizado de forma abstrata, associado a bordões de defesa da vida e à condenação de práticas imorais.

Porém, falar de aborto não é falar de algo em abstrato. O debate público se dá em torno da proposta de legalização da prática do aborto, há décadas defendida pelos movimentos feministas e legalizada na maior parte dos países desenvolvidos, muitos do quais desde os anos 1970 e 1980. A questão não é, portanto, se o aborto é ou não realizado, mas se sua prática é ou não legalizada. E ainda, em quais condições ele se realiza? Quais os riscos para a vida das mulheres? Quais grupos sociais são mais vulneráveis?

Nesse sentido, os dados da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, assim como de outras pesquisas sobre o tema, são alarmantes. Eles evidenciam que o aborto é, de fato, uma prática comum entre mulheres brasileiras de todas as idades, classes sociais, escolaridade e religião. Das mulheres com até 40 anos, uma em cada cinco já realizou pelo menos um aborto, metade das quais recorreu a atendimento hospitalar para concluir o procedimento.

Ou seja, a criminalização do aborto não impede que ele seja realizado. Trata-se de uma prática milenar, que nem sempre foi criminalizada, que nem sempre foi matéria de preocupação da igreja. Milhares de mulheres tomam essa decisão cotidianamente ao redor do mundo – e também no Brasil.

Isso nos leva a pensar que mais do que discutir sobre a legalização do aborto, a questão-chave parece ser (manter) sua ilegalidade. Segundo o Centro Brasileiro de Pesquisas em Saúde, o aborto inseguro é a quinta causa de morte materna no Brasil. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que 45% dos 55 milhões de abortos anuais realizados no mundo são feitos de forma insegura.

Onde fica, então, a defesa da vida?

Considerando os dados – e sabendo que cada uma dessas mulheres é profundamente marcada pelo conjunto de violências ligadas à prática do aborto inseguro –, a insistência na criminalização do aborto é também uma forma de abortar a vida dessas mulheres. É fácil criminalizá-las, é fácil matá-las.

Nota-se ainda que o argumento em favor da vida é em geral mobilizado pelos mesmos defensores de políticas punitivistas, aqueles que sustentam o encarceramento em massa, que ignoram o sofrimento das mães negras que perdem seus filhos negros em decorrência da violência do Estado e que defendem medidas como a prisão perpétua e a pena de morte.

Nos perguntamos: Quais vidas estão em jogo? E o que a democracia tem a ver com isso tudo?

O tema da legalização do aborto não envolve apenas o marcador de gênero, mas é também mediado pelas variáveis de raça e de classe. No Brasil de hoje é uma aceitação tácita da prática do aborto seguro, porém clandestino, entre mulheres com maior renda e escolaridade, ao passo que as mulheres pobres são perseguidas e criminalizadas, se sujeitando a procedimentos extremamente perigosos, com alto risco de graves sequelas e morte.

Como reverter esse cenário? Como garantir o direito ao aborto legal e seguro, considerando a representação política do atual Congresso Nacional? É improvável pensar que a mudança virá daquela maioria de homens brancos, com alta renda e escolaridade, muitos dos quais pertencentes ou apoiadores da chamada bancada da bíblia, que constantemente nega a laicidade do Estado.

Esse é o tamanho do desafio que temos pela frente. Essa é uma luta que, pela vida, sobretudo pela vida das mulheres, não pode esmorecer ou recuar.

 

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)