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Devemos ter olhos acurados para perceber o que acontece ao nosso redor e disposição para lutar pela mudança das coisas, na linha de formular uma nova concepção de mundo e transformar corações e mentes por uma persistente luta político-ideológica

É um ensaio ligeiro e antigo. Creio, de alguma utilidade. Inédito. Pode contribuir na compreensão sobre dois grandes revolucionários, não obstante, pelos anos passados, sujeito a atualizações óbvias. E, pela grandeza dos dois, a toda sorte de controvérsias. Não sei se posso arriscar hoje dizer do dinamismo capitalista como se diz no texto, acossado pelo coronavírus, e não apenas por isso. Também não sei se arriscaria dizer do debacle, do colapso. Mas não é a discussão posta aqui. Vamos a eles, extraordinários personagens do século 20, até hoje referências para nossa luta.

Esse texto, apresentado no seminário sobre Lenin, a lembrar os 80 anos de sua morte, realizado na Universidade Federal da Bahia entre os dias 5 e 9 de julho de 2004, organizado pelo professor Muniz Ferreira, não ultrapassa a natureza de anotações aligeiradas sobre dois grandes teóricos do marxismo, e é, portanto, uma ousadia sujeita a todas as críticas, roteiro para minha fala. O debate se deu ao lado dos professores George Gurgel e Carlos Zacarias, além do próprio Muniz Ferreira. Preferi cotejar dois grandes do século 20, Antonio Gramsci e o próprio Lenin. Não me restringi ao revolucionário russo.

Lênin foi antes de tudo um extraordinário político, homem de ação, que se movimentou permanentemente com perspicácia de uma águia procurando a sua caça, sempre com a clareza do objetivo imediato a alcançar. Sua obra teórica nasceu das necessidades da prática e estava a serviço dela. Gramsci, militante comunista, foi um dos maiores teóricos da esquerda mundial.

O galgo e o buldogue

Não custa lembrar uma comparação de Trotsky feita a respeito de Lenine e Georgi Plekhanov. O último parecia um galgo: mordiscava bem, mas acabava sempre por largar a sua presa. Lênin, um buldogue: quando mordia nunca mais largava. Metáfora apropriada. Essa personalidade forte, esse homem obstinado, de força de vontade inigualável, colocou toda a sua vida à disposição da revolução, à disposição da ideia de chegar ao poder na velha Rússia dos czares. Chegou.

A política em Lênin estava no posto de comando.

Se os homens fazem história sob determinadas circunstâncias, e é assim que se dá, não é demais alertar: grandes homens e mulheres contribuem decisivamente para mudar o curso dos acontecimentos. Lênin foi um dos maiores políticos do século 20. A Revolução Russa tem tudo a ver com ele.

Lênin é herdeiro não só da teoria marxista. É parte de um tempo em que a revolução – ou as revoluções – estava na ordem do dia. As grandes insurreições operárias do século 19, a Comuna de Paris, as significativas mobilizações dos trabalhadores nas cidades europeias, tudo isso representava o contorno histórico de então, a herança mais imediata recolhida por ele. Herdeiro também da Revolução Francesa, do jacobinismo que dali advinha. A Revolução Russa tem um forte componente jacobino, não há nesse dizer qualquer heresia nem novidade.

A Revolução Russa significava o confronto direto com o poder.

Não havia muito de fases intermediárias.

Era mais a guerra incessante de movimento do que a guerra de conquista de posições, e aí já me valho de conceitos gramscianos, a partir do vocabulário militar. Por isso, pela estratégia do confronto direto com o poder, a referência constante à ideia do assalto ao Palácio de Inverno, levado a cabo pelos bolcheviques como um modelo de estratégia revolucionária.

Sociedade em que o Estado era tudo

E essa ideia de revolução prosperou e foi vitoriosa, naquele momento, em razão do fato de a sociedade russa ser bem menos complexa que a ocidental, em que o Estado era tudo, e a sociedade civil, quase nada. Para dizer de modo simplificador, bastava chegar, como se chegou, ao Palácio de Inverno para a conquista do poder.

A simplificação, contudo, não pode ignorar as duras condições de luta, a construção paciente do partido revolucionário, os constantes zigue-zagues feitos pelo próprio Lênin para chegar até ali – zigue-zagues aqui entendidos como constantes mudanças de posição, combatendo ora o esquerdismo, ora o direitismo no interior do partido. Ao pensar a caminhada, tem em mente a transformação revolucionária na Rússia, com a crença otimista de que, logo adiante, haveria revoluções nos centros mais adiantados, com destaque para a Alemanha. Ilusão, constatará. Seu eixo, sua obsessão, no entanto, insista-se, era a Rússia.

A tomada do poder numa sociedade na qual o Estado era tudo, e a sociedade civil quase nada, implicava necessariamente autoritarismo. A ideia aparentemente generosa de ditadura do proletariado não pode esconder a implantação de fato de um modelo extremamente autoritário, defendido, praticado e teorizado por Lênin, e isso foi corajosamente apontado por Rosa Luxemburgo já em 1918.

Até porque como a estratégia era a da tomada do poder em primeiro lugar, para depois construir hegemonia – e aqui voltamos a utilizar, de novo, um conceito gramsciano –, não havia outro caminho, ao menos na estratégia leninista. Aqui tocamos num ponto nevrálgico, sujeito a muitos debates. A violência stalinista tem raízes no ponto de partida da Revolução Russa, dirigida por Lênin, fundamentada teoricamente por ele.

Cadernos do Cárcere

Gramsci guarda diferenças com Lênin sob muitos aspectos. Era um revolucionário como Lênin. Marxista, como Lênin. Mas não custa recordar: o grosso de sua obra teórica não se deu no fragor das batalhas revolucionárias, mas na prisão, onde ele escreveu seus Cadernos.

Lênin vai buscar argumentos para reforçar suas opções político-práticas, garantir a defesa de suas posições políticas, das reviravoltas rápidas feitas, de modo sempre a sustentar teórica e politicamente a revolução a se realizar na Rússia. Batia à direita e à esquerda, como um peso-pesado acostumado a nocautear o adversário. Sua linha argumentativa é sempre agressiva, não obstante solidamente fundamentada.

Gramsci, não. Até no combate teórico ele prefere ser mais elegante. Nem sei se cabe o elegante. Talvez mais a ideia de respeito ao adversário. E Gramsci, porque na prisão, independentemente dos escritos anteriores, vai procurar construir uma teoria geral de revolução para o Ocidente. E, para suscitar o debate: as diferenças entre Gramsci e Lenin não são pequenas e não devem ser tratadas com simplismo nem subestimadas.

Gramsci, para trazer o debate para os dias atuais, mantém muito mais a atualidade que Lênin, ao menos se considerarmos nossa realidade ocidental. Não se pode nem se deve levantar muros que impeçam o diálogo entre as duas elaborações, mas, do meu ponto de vista, é inegável encontrar em Gramsci uma formulação, uma teoria mais ampla para a revolução no Ocidente.

E poderia Lênin fazê-lo produzir tal elaboração no calor dos combates revolucionários da Rússia? Não sei, e talvez a pergunta seja ociosa. Não o fez – fato. Quem sabe as condições concretas da Rússia, a herança recebida, a específica cultura marxista ali desenvolvida tenham levado Lênin apenas àquele limite teórico. A formulação leninista é excessivamente “oriental”. Dela decorre a ideia necessária de ruptura, de guerra de movimento, de assalto ao poder, e não implica a guerra de posição, de conquista de hegemonia antes mesmo da tomada do poder, ideias tão fortes no revolucionário italiano.

A formulação gramsciana tem uma natureza muito mais ampla para o Ocidente. Foi capaz, sob as condições culturais e políticas experimentadas, de elaborar uma teoria para a revolução que, guardadas as extraordinárias modificações vividas pelo mundo, ainda conserva impressionante atualidade.

Hegemonia

Compreendeu que o Ocidente tem uma sociedade muito mais complexa até porque o capitalismo havia se desenvolvido com muito mais intensidade e as estruturas ideológicas tornaram-se mais sofisticadas. Chega até a falar nos meios de comunicação já como essenciais, os jornais como partidos políticos, meios a assumirem uma importância fundamental para qualquer processo de transformação – e de dominação, obviamente.

No Ocidente, não basta o assalto ao Palácio de Inverno. O processo é bem mais longo e complexo. Porque a dominação do Estado é sempre dominação, mas é também a construção permanente, continuada do consenso, o exercício diário e renovado da luta pela hegemonia.

Coerção, sem dúvida, mas sempre acompanhada do esforço de conquista de corações e mentes por parte das classes dominantes.

O Estado nunca é apenas o aparato militar e tecnocrático, mas também os demais aparelhos, das Igrejas às universidades, dos jornais às emissoras de rádio, e esses aparelhos constroem uma ideologia de aceitação do poder, ideologia que não deverá ser destruída apenas quando e se o poder for tomado, mas num processo longo, desenvolvido pacientemente, com clareza, pelos que estão dispostos a formular e praticar uma teoria contra-hegemônica.

Os dias de hoje, desde o fim do socialismo real, sinalizando essa fase áurea do capitalismo neoliberal, dão razão a Gramsci. No Ocidente, não são as rupturas violentas que estão na ordem do dia. São aquelas que poderíamos chamar de processuais, a implicar luta pela hegemonia, constante guerra de posição, sempre mais lentas que as nossas vontades revolucionárias gostariam.

Se o capitalismo ainda tem fôlego, como parece evidente ter, mais importante se torna a teoria gramsciana. Representa a elaboração mais refinada da luta revolucionária do século passado, a nos servir até os dias de hoje. Não é uma espécie de tábua sagrada da lei, nem poderia ser. Sob muitos aspectos não pode mais servir porque os tempos são outros, especialmente se considerarmos o problema do sujeito revolucionário.

Mas inegavelmente contribui muito para entendermos a complexidade de luta, usando a fórmula que lembrava muito – pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Devemos ter olhos acurados para perceber o que está acontecendo ao nosso redor e ao mesmo tempo disposição para lutar pela mudança das coisas, sempre na linha de formular uma nova concepção de mundo, transformar corações e mentes pela via de uma persistente luta político-ideológica.

Em Lênin, o Estado não é trabalhado como em Gramsci. Ele tem uma compreensão de Estado que, ao fim e ao cabo, é criticada por Gramsci, mesmo que não haja uma crítica explícita ao revolucionário russo. De alguma maneira, em Lênin aparece um Estado praticamente só coerção, só violência, como conceituado em O Estado e a Revolução. Em Gramsci, já o dissemos, o Estado não é só coerção. É dessas diferentes noções de Estado que se desenvolvem duas estratégias do processo revolucionário.

Se há um Estado guarda-noturno, só violência, cabe derrubá-lo pura e simplesmente para, então, começar, com outro Estado, a construção de uma nova sociedade, necessariamente usando os meios de força de que se dispõe. É o Estado que nasce da Revolução Russa e que segue durante quase todo o século 20, para cair por si mesmo no final da década de 1980.

Derrubar as casamatas

Do Estado pensado por Gramsci desenvolve-se outra estratégia revolucionária necessariamente. Não se trata de ir direto ao assalto ao poder. A revolução será um processo, construído ao longo do tempo, posição por posição. Os revolucionários deverão lutar para mudar concepções de mundo, construir uma contra-hegemonia e ir se constituindo como novo poder na sociedade. O Estado é decorrência desse processo. Não se trata de primeiro chegar ao Estado para depois propor reformulações na sociedade. Mas ir conquistando hegemonia para então chegar a um novo Estado.

Se pensarmos as sociedades ocidentais – sociedades capitalistas complexas –, não há dúvida: a visão gramsciana tem muito mais consonância com a realidade. Há muitas casamatas por detrás do aparelho de Estado, com capacidade de assegurar a continuidade das estruturas de dominação capitalista. E por casamatas entendam-se estruturas ideológicas muito poderosas, as grandes trincheiras da resistência, para além do aparato militar de que todo Estado dispõe.

Um, Lênin, defende o assalto frontal. A revolução se apresenta assim, e segue, de armas na mão, contra todos os que se insurgirem contra ela. Outro, Gramsci, um processo de construção. A revolução caminha em meio à sociedade, transformando-a, para ir “construindo” o novo Estado. São duas noções de Estado, duas compreensões de sociedade, duas noções de processo revolucionário. Contraposição entre uma revolução “oriental”, uma sociedade na qual o Estado é tudo, a sociedade nada, e uma outra, em que o Estado é permeado pelas instituições da chamada sociedade civil, na qual os aparelhos de Estado são muito mais complexos.

Num momento histórico como o que vivemos, em que se observa uma mudança estrutural do capitalismo, com predominância absoluta do capital financeiro, com tecnologias produtivas jamais vistas anteriormente, com uma revolução tecnológica extraordinária, com forças produtivas avassaladoras, com o peso gigantesco do trabalho morto, com a acelerada diminuição do proletariado, com o fim das grandes unidades produtivas, com a escassez de empreendimentos que concentrem milhares de trabalhadores, cobra-se também uma revisão profunda da própria noção de revolução e especialmente sobre qual sujeito ou sujeitos poderiam levar à frente um projeto revolucionário.

Mais hoje do que ontem, nesse quadro, as casamatas de Gramsci estão ativas, poderosas e exercem papel fundamental na sustentação do Estado ampliado a que ele se refere. Mais hoje do que ontem, inclusive na América Latina, onde a maioria dos movimentos revolucionários depôs as armas, impõem-se a guerra de posições, a luta por reformas, a caminhada passo a passo, considerando-se a correlação de forças com que a esquerda se debate.

Não basta procurar bodes expiatórios para explicar essa realidade. O capitalismo vive um momento vigoroso e isso não tem nada de estranho se examinarmos a história dos modos de produção. Ainda terá muito fôlego, pelo visto. Trata-se de compreender que o processo é longo e que nós temos que exercitar toda nossa capacidade de reflexão, de criação teórica, de resistência para continuar a caminhada na perspectiva de uma sociedade democrática e socialista, com a clareza de que essa sociedade ainda não tem seus contornos definidos.

A grande experiência socialista do século que passou – a da URSS –não foi bem-sucedida, para dizer o mínimo. As experiências ainda existentes são perpassadas pela forte presença da lógica capitalista, especialmente a chinesa. De posição em posição, certos de que devemos cultivar a democracia como um bem fundamental, nós haveremos de ir construindo o caminho que nos levará à superação da sociedade capitalista. Mas, nos preparemos, as novas gerações devem se preparar: ainda há muito chão pela frente.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros