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Quem esteve nas ruas em 15 de março notou que algo estava diferente. Mais gente, outras cores e outras dores. A morte de Marielle chocou e mobilizou centenas de milhões de pessoas

Sete dias após as ocupações das ruas pelas manifestações do 8 de Março (8M), muitas de nós voltamos a elas em atos de repúdio ao assassinato da vereadora do Psol, Marielle Franco, e do motorista, Anderson Gomes. Pra quem vive no Rio de Janeiro, a mesma Cinelândia, a mesma Candelária, a mesma Alerj. O contexto, porém, era outro.

O assassinato de Marielle não corresponde aos tipos de feminicídio que vêm sendo constantemente denunciados pelos movimentos feministas no Brasil e no mundo. Tampouco sua morte deve ser lida como mais um episódio da violência cotidiana no Brasil, e em particular no Rio de Janeiro. De fato, o Brasil contabiliza aproximadamente 100 mil mortes violentas por ano, foram cerca de 60 mil por homicídio, em 2015 segundo o Ipea, e cerca 40 mil no trânsito, segundo o Ministério da Saúde (sobre as quais pergunto: qual a influência do poder econômico e político da indústria automobilística na incapacidade ou desinteresse para enfrentar a situação?). Das mortes por homicídio, a maior parte é de jovens negros. Um verdadeiro genocídio dos jovens negros do país. O assassinato de todos e de cada um deles não é desprovido de motivações políticas. Muito ao contrário.

Mas a execução de Marielle teve motivações particulares, e seu caso não está no mesmo bojo dos demais aqui mencionados. Sua condição de mulher, negra, periférica, mãe, lésbica, sua luta incansável pelos direitos humanos, a votação expressiva (46.502 votos) que a elegeu como a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro nas eleições de 2016 e seu trabalho de acompanhamento e denúncia dos abusos de autoridade e crimes cometidos pelo Estado no território fluminense dão o tom de sua grandeza política. Não, não somos todas Marielle. Em realidade, pouquíssimas foram como Marielle. Sua grandeza foi percebida por seus algozes e sua execução foi a maneira encontrada por eles de cortar o mal pela raiz, impedindo que ela alçasse voos mais altos, com capacidade de amplificar sua luta, o que certamente iria acontecer – ou melhor, já estava acontecendo.

Marielle, contudo, não lutava só e se há outros expoentes nessa caminhada, por que justamente ela?

De um lado, sua figura e seus simbolismos políticos vinham se tornando insuportáveis e representando ameaças concretas às forças políticas e policiais adversárias. Ela estava indo longe demais, ousando demais. De outro, a interseccionalidade que Angela Davis não nos deixa esquecer, dos aspectos de mulher, raça e classe, vis-à-vis a condição de outros expoentes políticos dessa mesma luta pelos direitos humanos e pela democracia, importou e foi trazida à baila, recordando às Marielles seu lugar de ser humano descartável no Brasil, para usar uma expressão dos Racionais.

Seu assassinato, portanto, explicita a intolerância que se manifesta contra a mulher, negra e favelada, que ousou superar barreiras sociais de toda a ordem, mantendo-se fiel à sua origem, às suas convicções e à sua luta pela construção de uma sociedade sem ódios e preconceitos, que aceite as diferenças e que permita o exercício dos deveres e responsabilidades da cidadania ativa. Mas se seus adversários perceberam que Marielle era grande, não viram, porém que ela é uma gigante.

Por isso as ruas estavam muito mais cheias em 15 de março do que estiveram no 8 de Março. Sua morte chocou e mobilizou centenas de milhões de pessoas, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, obtendo maior repercussão nas redes até mesmo que o impeachment da presidenta Dilma. As ruas estiveram apinhadas de milhares e milhares de Marielles, muitas das quais não pertencem às tradicionais bolhas nas quais comumente nos encontramos. De fato, quem esteve nas ruas em 15 de março notou que algo estava diferente. Mais gente, outras cores e outras dores. O que vem depois? Difícil prever. De um lado não há como não temer uma escalada da violência e o acirramento das tensões, especialmente no Rio de Janeiro, que sob a intervenção federal não ofereceu o menor constrangimento a esse assassinato. De outro, a indignação e a pronta resposta das ruas – do beco e do asfalto – nos levam a crer que sua morte não foi em vão. Ao contrário, fez brotar milhares e milhares de Marielles que já estão a transformar o luto em luta.

Luiza Dulci é militante da JPT e integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)