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O baque foi no pára-choque esquerdo, de canto. Em poucos segundos, o mais recente cadáver da rodovia já ficara para trás

 

O capitalismo é o senhor do tempo.
Mas tempo não é dinheiro.
Isto é uma monstruosidade.
O tempo é o tecido da nossa vida.

Antonio Candido

Atropelei um cachorro. Não estava distraída, mas estava cantando – em dupla com Marisa Monte. “Tarde, já de manhã cedinho/quando a névoa toma conta da cidade...” Naquele trecho da Via Dutra, às 9 da manhã, não havia mais névoa. Nem poluição. A partir de Santa Isabel, no sentido SP−Rio (para mim, SP−Guararema), o mundo começa a ficar bonito outra vez, do jeito como deve ser.

Eu cantava, mas estava atenta. Não se pode bobear em meio aos caminhões que levam todos os tipos de carga entre as duas principais capitais do Brasil. Eu vi o cão no acostamento. Cinza-sujo, esguio e vira-lata. Um vira-lata galgo, parecido com o símbolo da melancolia, na Renascença. Onde moraria aquele: do lado de cá, de onde vinha, ou do outro, para onde tentava ir? O fato é que só pode ter vindo das redondezas. Deveria ter experiência com a velocidade alheia. Deveria saber avaliar sua fragilidade. Então como é que ele fez o que fez?

À minha direita, um pouco mais devagar que eu, ia um furgãozinho branco. O cachorro meteu a cara. Eu estava na segunda estrofe: “Quem pega no violão, sou eu, sou eu/ pra cantar a novidade”. Não acreditei que ele atravessasse a estrada assim, como se fosse dono dela. Mas então ele não sabe o que significa morar às margens da Dutra? O cão não sabia. Passou, indiferente, diante do furgão. Por um triz. Agora era a minha vez. Como é que eu podia brecar? Uma dúzia de caminhões passaria por cima de mim, e uns por cima dos outros também. Os maiores, por cima de todos. Uma auto-estrada não autoriza nenhuma delicadeza.

Enfiei a cabeça entre os ombros, antevendo a fatalidade. Deixei Marisa Monte sozinha. “Graças a Deus um passarinho/ vem me acompanhar cantando bem baixinho...” Já não tinha tempo para não atropelá-lo. Diminuí um pouco a velocidade, no limite da imprudência. Virei a direção só um pouquinho para a direita, de modo a lhe conceder mais alguns décimos de segundo. Só para não passar por cima dele inteiro.

O baque foi no pára-choque esquerdo, de canto. Em poucos segundos, o mais recente cadáver da rodovia já ficara para trás, na faixa estreita que separa as duas pistas. A música ficou insuportável. Como assim, “eu já não me sinto só, com o universo ao meu redor?” Um minuto, ou três quilômetros de silêncio pelo cão que acabei de matar. Porém, atrás do carro, ele se levantou. Pulou por cima da divisória de metal e atravessou, mancando de uma perna e com mais sorte, a pista esquerda. Não ouvi: vi, pelo retrovisor, o uivo de dor desenhado em seu focinho que fazia um bico alongado, voltado para o céu. A seguir, já bem diminuto, embrenhou-se no mato e desapareceu. Escondeu-se para morrer? Ou sobreviveu à batida e viverá mais alguns anos, coxo da perna traseira, com medo de chegar perto da estrada?

Foi tão depressa que, se eu não escrever isto, o atropelamento não terá acontecido. Se o cão morrer, não terá existido. Quando eu chegar a meu destino, a Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, só uma rachadura no meu pára-choque indicará que um mau encontro ocorreu. Um mau encontro entre meu carro e alguma outra coisa, não entre mim e outro ser. Um ser pré-capitalista: minha velocidade e a dele foram incompatíveis.

Atropelei um cão, símbolo da melancolia. Na Renascença, o melancólico representava a vontade de recolhimento, de reflexão, longe das transformações por que passava o mundo, no século 16. Longe da velocidade que, há quinhentos anos, já parecia além do que o homem conseguia acompanhar. Mas o homem se adapta. Somos cada vez mais velozes, atrás das migalhas de tempo que, esperamos, nos renda mais algum dinheiro. Vez ou outra, neste afã, atropelamos alguns melancólicos que atravessam o caminho, absortos em suas estranhas reflexões.

Maria Rita Kehl é psicanalista