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Os filmes brasileiros sobre indígenas vão dos que se baseiam em obras literárias românticas aos de denúncia do genocídio perpetrado, com ou sem ditadura, contra esse contingente populacional

Nossos indígenas nunca receberam do cinema o papel de antagonista malévolo que tiveram nos Estados Unidos, enquanto definição de um gênero que assinalou a arte, o faroeste. Os norte-americanos encontraram neles os vilões obrigatórios que durante décadas assombraram as telas e os espectadores, até que uma reviravolta muito bem-vinda começasse a mostrá-los como as vítimas históricas que de fato foram. E nunca mais regrediriam ao papel de vilões.

A reviravolta deveu-se à publicação em 1970 do livro Bury my Heart at Wounded Knee, que mais tarde se chamaria no Brasil Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown. O livro estourou como uma bomba: vendeu-se aos milhões, foi traduzido no mundo todo e é reeditado até hoje. Dee Brown, modesto bibliotecário do Ministério da Agricultura, foi desencavando e expondo uma documentação relativa aos sucessivos tratados oficiais entre o governo americano e os índios, em que eram dadas as bases jurídicas para um extermínio perpetrado com constância e com propósito, cobrindo desde o início da colonização. Utilizando tratados, mapas e correspondência, o autor mostrava como os índios tinham sido sistematicamente enganados, esbulhados de suas terras e acuados em regiões cada vez mais distantes, onde eram confinados em reservas, à custa de massacres. E isso durante séculos. Enfim, um genocídio impecável.

Á época vivia-se no país o movimento pelos direitos civis e a oposição à Guerra do Vietnã, onde os americanos novamente praticavam o genocídio contra um povo de cor. A causa dos índios combinava com essas e foi encampada. E a partir das revelações do livro, as coisas começaram a mudar. No mesmo ano de 1970 surgiram dois filmes que, como o livro, reviravam do avesso as relações entre brancos e índios. Foram eles Pequeno Grande Homem (Little Big Man), com Dustin Hoffman, dirigido pelo grande Arthur Penn, e Quando é Preciso ser Homem  (Soldier blue), com Candice Bergen: ambos ilustram a nova orientação.

Diferente foi a sorte deles no Brasil. Os filmes brasileiros concernentes aos indígenas ou se baseiam em obras literárias românticas ou recriam entrechos históricos. Na maioria, filmes como esses ainda se prendem ao indianismo literário e pictórico, com uma visão idealizada do índio como o “nobre selvagem” de Rousseau.

Foi assim que Norma Bengell, de reputação firmada como atriz de brilhante carreira, dirigiu O Guarani (1997), transpondo o romance homônimo de José de Alencar. Baseado em outro livro do mesmo escritor, Carlos Coimbra dirigiu Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel (1979). E Guel Arraes dirigiu Caramuru – A Invenção do Brasil (2001), comédia que tem como roteiro a conhecida história, que aprendemos na escola, de Diogo Álvares Correia, português que veio ao Brasil e formou um casal com a índia Paraguaçu, na Bahia.

Um dos mais célebres ícones da pátria, A Primeira Missa, enorme tela de Victor Meirelles retratando a celebração litúrgica católica em território brasileiro pelos navegadores da frota de Pedro Álvares Cabral, forneceria inspiração para pelo menos dois filmes com esse mesmo título. Um em 1960, dirigido por Lima Barreto, famoso vencedor do prêmio no Festival de Cannes com O Cangaceiro, e outro dirigido por Ana Carolina em 2014. Nenhum dos dois é propriamente histórico, porque o primeiro se baseia num conto coevo, e o segundo, um “filme dentro do filme”, relata as agruras de fazer cinema no Brasil de hoje, com todos os seus tropeços.

Outras possibilidades descortinaram-se, como a República Guarani (1982), de Silvio Back, documentário consagrado aos Sete Povos de Missões no século XVIII, vastos aldeamentos que, sob a direção dos padres jesuítas, reuniram os Guarani na região fronteiriça entre Brasil, Paraguai e Argentina, protegendo-os dos bandeirantes predadores. Ou, ainda, destacando-se pela originalidade e ousadia, Como Era Gostoso o meu Francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos, falado em tupi, com base no livro do aventureiro Hans Staden, alemão de Hesse, que foi prisioneiro destinado ao banquete canibal, do qual escapou mas viu outros sucumbirem. Seria refilmado décadas mais tarde.

Ou então surge uma referência bem oblíqua, pois ao batizar a protagonista como Iracema deixa-se muita coisa implícita quando ela é uma prostituta de 15 anos e visível sangue indígena – mas pertinente porque se passa na Amazônia. O filme Iracema – Uma Transa Amazônica, dirigido por Jorge Bodanskyfaz uma crítica acerba às distorções socioeconômicas comandadas pela ditadura, razão pela qual foi proibido.

Daí em diante vão se suceder os filmes de denúncia do genocídio que a sociedade brasileira, com ou sem ditadura, perpetra contra esse contingente populacional. Mais recentemente os filmes sofreram uma guinada, com matéria da maior seriedade. Outros que demonstram diferentes aspectos que interessa ventilar, sempre dentro da problemática indígena, são examinados a seguir.

Um deles é Xingu (2011), de Cao Hamburger, filme de ficção que narra a história verdadeira e admirável dos três irmãos Villas-Boas, que consagraram sua vida à criação e desenvolvimento do Parque do Xingu, uma enorme área de reserva para que nela fossem protegidos e vivessem em paz mais de quarenta diferentes povos indígenas.

O famoso cineasta Hector Babenco, conhecido pelo filme Pixote, dirigiu Brincando nos Campos do Senhor (1991), que põe em cena um casal de missionários americanos dedicados a catequizar uma aldeia de índios na floresta amazônica. Terão que disputar o domínio sobre os índios com grileiros e aqueles que querem expulsá-los de suas terras.

Brava Gente Brasileira (2000 ), dirigido por Lucia Murat, mostra uma expedição de cartografia que penetra no Pantanal Matogrossense no século 18, com uma comitiva cujos soldados atacam e estupram grupo de índias banhando-se no rio. Destaca a cobiça por metais preciosos e a brutalidade que marcam o contato com os índios. A vingança pode demorar, mas será fatal. Baseado em documentação histórica.

Serras da Desordem (2006) registra a trajetória de Carapiru, índio Guajá que sobreviveu ao massacre de seu povo. Tornou-se nômade, realizando um percurso de 2 mil quilômetros, sendo encontrado apenas 10 anos depois. Andrea Tonacci, experiente documentarista da vida indígena, diretor de Conversas no Maranhão e A Visão dos Vencidos, dirigiu. Uma beleza de filme, premiadíssimo.

O projeto Vídeo nas Aldeias

Original é o projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1987 pelo antropólogo Vincent Carelli. Entre os longas-metragens dirigidos por ele próprio estão Corumbiara (2009) e Martírio (2018).

Corumbiara é o nome da gleba no sul de Rondônia onde fazendeiros de gado massacraram os índios que ali viviam para impedir que suas terras fossem demarcadas. O massacre foi encoberto pelas autoridades, em conluio com os perpetradores, de tal modo que o próprio cineasta levou 20 anos investigando o que acontecera, tentando preservar pelo menos a memória do genocídio. Foi premiadíssimo, no Brasil e no exterior.

Depois disso, o cineasta fez Martírio, tratando dos Guarani Kaiowá, que lutam pela retomada de suas terras, com seus territórios sagrados onde estão sepultados os ancestrais, desde a Guerra do Paraguai. Essas terras ficam no Mato Grosso do Sul, onde os índios vivem acampados nas margens das rodovias e em minúsculas reservas. A todo momento têm sido sujeitos a ataques paramilitares, sob os olhos do agronegócio e beneplácito do Estado.

O terceiro da trilogia é o muito aguardado Adeus, Capitão. Seguem algumas realizações do projeto.

Imbé Gikegü – Cheiro de Pequi e Nguné Elü – O Dia em que a Lua Menstruou, ambos dirigidos pelos Kuikuro. Estes foram os primeiros filmes realizados por indígenas, dentro do projeto Vídeo nas Aldeias.

As Hiper Mulheres (2011) é um documentário inusitado, em que uma índia idosa fala abertamente de sexualidade do ponto de vista feminino. Como pano de fundo, o ritual do Jamarikumalu, em que as mulheres encenam o mito de sua perdida hegemonia. Seus diretores: Takumã Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto.

Entre os mais recentes, conta-se Zawxiperkwer Kaa -- Guardiões  da Floresta (2019), feito pelos Guajajara, sobre as invasões a reservas do Maranhão.

Para obter informações sobre as dezenas de filmes já realizados e os prêmios amealhados no mundo inteiro, consultar o catálogo online da ONG Vídeo nas Aldeias.

Passando por fora do projeto mas semelhante na concepção é Ava Yvy Vera– Terra do Povo do Raio (MG, 2016). Com direção de Genito Gomes e vasta equipe, foi premiado no Festival do Documentário de Cachoeira. Mobiliza qualidades poéticas na compreensão da vida indígena, com exposição dos conflitos pela posse da terra, a ameaça de genocídio sempre pairando, a devastação dos recursos naturais, o desmatamento, a poluição de rios e nascentes.

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Um filme que não é brasileiro, mas vale a pena ver, devido à problemática similar, é O Abraço da Serpente (Colômbia, 2015), dirigido por Ciro Guerra. Em belíssimo preto e branco, um xamã índio e um branco colaboram enquanto contrastam suas respectivas culturas na solidão da floresta amazônica. O branco é um explorador experiente, agora à cata de uma planta que supõe curar sua moléstia terminal, esgotados os recursos da medicina ocidental. Ambos bem desiludidos, mas o índio não aceitou compromissos e se manteve fiel à sua cultura. Dois exploradores europeus importantíssimos para o Brasil comparecem de modo transfigurado, em alusões. Um é Von Martius, autor da monumental obra Viagem pelo Brasil. O outro é Koch-Grünberg, em cujos registros do lendário indígena Mário de Andrade foi buscar Macunaíma. Excelente discussão sobre a perda para a humanidade que é a destruição da floresta amazônica e o genocídio dos povos que a habitam.

Finalmente, um filme majestoso que devia obrigatoriamente ser exibido nas escolas é A Missão (Inglaterra, 1986), dirigido por Roland Joffé. Ganhou Palma de Ouro de direção no Festival de Cannes e muitos outros prêmios em várias categorias. O diretor já fora reconhecido graças ao filme Os Gritos do Silêncio (1984), que registra a sinistra ação do Khmer Rouge no Camboja. A bela obra dos jesuítas cuidando dos índios em Sete Povos de Missões, entre Rio Grande do Sul e Paraguai, é mostrada na intimidade. Mas os jesuítas foram expulsos tanto de Portugal quanto de suas colônias pelo Marquês de Pombal: assim, no quadro das lutas entre portugueses e espanhóis, os aldeamentos foram arrasados. Os milhares de indígenas ali agrupados foram ou dizimados ou escravizados, e é o que mostra esse filme. Essa horrenda pecha em nosso passado não foi esquecida, e Antonio Callado colocou-a como importante elemento em seu romance Quarup. Em A Missão, Jeremy Irons faz um padre jesuíta e Robert De Niro um nobre espanhol em penitência por ter cometido assassinato. Ambos lideram os índios e apresentam posições divergentes, entre o não enfrentamento e a resistência armada. As Cataratas de Iguaçu têm papel proeminente. Um famoso militante da desobediência civil nos Estados Unidos, o padre jesuíta Daniel Berrigan, funcionou como assessor e acabou por fazer uma ponta no filme.

A trilha sonora do grande Ennio Morricone, executada pela Filarmônica de Londres, posteriormente alçou voo para outros destinos, incorporando-se à música indígena da região, por um lado, e à liturgia católica, em especial a jesuíta, por outro lado. Fusão de música sacra barroca e cantos indígenas, é de uma beleza inefável. No filme, soa no dia a dia e soa enquanto eles são massacrados, arrebatando o espectador, fazendo-o sentir que está ouvindo os anjos, como em tanta pintura medieval com anjos músicos. Não dá para entender como o compositor não ganhou o Oscar, o que só faria quase quarenta anos depois, em 2015, com Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino, quando é provavelmente o melhor e maior compositor de trilhas sonoras da história. Já fez 500 delas. Agora acaba de compor sua primeira missa, dedicada ao jesuíta Papa Francisco. Com A Missão recebeu muitos outros prêmios, entre os quais o Globo de Ouro e o Bafta.

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Contribuindo para a gigantesca luta mundial pela defesa dos índios ante o avanço do agronegócio, das madeireiras e do garimpo, a Unesco acaba de disponibilizar on-line cerca de 82 filmes que tratam de indígenas; e não só brasileiros, também de outros países (confira abaixo). Outra iniciativa da instituição é o patrocínio de Cineastas Indígenas para Jovens e Crianças, livro-vídeo com seis filmes dirigidos por índios.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate