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Partidos e entidades comprometidas com serviços públicos de qualidade e valorização dos servidores devem trabalhar para rejeitar esse texto no Plenário da Câmara dos Deputados

A Comissão Especial da Reforma Administrativa na Câmara dos Deputados aprovou, na noite do dia 23 de setembro de 2021, a sétima versão do parecer do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), apresentado sob a forma de substitutivo à Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 32/2020. O texto, que será submetido a votação em dois turnos no Plenário da Câmara dos Deputados, traz importantes mudanças na Administração Pública.

O substitutivo aprovado, tendo como parâmetro o texto original, representou contenção de danos, pois trouxe alguns recuos. Porém, quando comparado à Constituição de 1988, o substitutivo ainda representa grandes retrocessos, tanto na organização da Administração Pública quanto nos direitos dos servidores públicos. Qualquer avaliação que se faça, o parâmetro deve ser o texto constitucional, que é modificado pelo substitutivo à PEC 32.

A PEC original tinha ênfase numa visão de Recursos Humanos sob a lógica privatista e patrimonialista, com fisiologismo na indicação para cargos de livre provimento e precarização das relações se trabalho. Nela não havia nenhum compromisso com meritocracia ou com a melhoria da qualidade do serviço público. Ao contrário, significativa a desorganização da Administração Pública, os desmonte dos Serviços Públicos e a precarização dos direitos dos servidores.

O objetivo da PEC original, portanto, era entregar ao mercado, diretamente ou mediante voucher, a prestação de serviços públicos, assim como entregar aos partidos da base do governo os cargos de livre provimento, inclusive em área gerenciais, técnicas e estratégicas, eliminando até a reserva de funções comissionadas para servidores de carreira.

Registre-se, ainda, que os recuos do substitutivo em relação ao texto original, simplificando-o e excluindo alterações que afetariam fortemente a atuação das estatais, além de reduzir drasticamente o direito à estabilidade no cargo, não foram generosidade do relator, mas resultado de pressão. Pelo menos cinco fatores foram determinantes para tanto.

O primeiro foi o aconselhamento e a assessoria especializada dos consultores legislativos da Câmara, que alertaram o relator para os riscos de descontinuidade dos serviços públicos.

O segundo foi a atuação da oposição dos partidos de esquerda, que denunciaram o caráter persecutório da PEC em relação aos servidores e ao serviço público.

O terceiro, a pressão dos servidores e suas entidades, que desnudaram os interesses por trás da PEC.

O quarto foi a crítica de especialistas, inclusive do meio acadêmico, que apontaram exaustivamente a incapacidade e inoportunidade das mudanças propostas para melhorar o serviço público.

E, por fim, a constatação de que o texto original não servia aos interesses da cidadania, mas apenas do mercado e dos cabos eleitorais dos governantes de plantão.

Quanto aos recuos, os principais foram a manutenção das regras do concurso público para ingresso em cargo efetivo; a permanência do estágio probatório em três anos; a continuidade do Regime Jurídico Único para servidores permanentes; e a preservação das regras em vigor sobre forma de provimento dos cargos em comissão e função de confiança.

A lista de retrocessos, entretanto, permaneceu grande, envolvendo desde a quebra da estabilidade, a ampliação do contrato temporário, a redução de salários, a ampliação da terceirização pela via de instrumentos de cooperação com o setor privado, até a definição de cargo exclusivo de Estado, conforme segue.

A estabilidade do servidor foi flexibilizada, inclusive para ocupantes de cargo exclusivo de Estado. O servidor estável poderá ser demitido em decorrência de avaliação de desempenho, de decisão judicial de órgão colegiado, de extinção de cargos considerados desnecessários ou obsoletos, bem como por excesso de gasto. A dispensa por insuficiência de desempenho dar-se-á nas hipóteses de duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas, ao longo de cinco anos.

O contrato temporário foi demasiadamente ampliado, tanto no escopo quanto no tempo. A contratação por prazo determinado, em regime de direito administrativo, para atender às necessidades temporárias ou transitórias dos entes federativos (União, estados e municípios), terá validade de até dez anos. Ela se aplica inclusive em atividade exercida por ocupante de cargo exclusivo de Estado e a contratação será feita por processo seletivo simplificado, exceto em caso de calamidade, emergência associada à saúde ou à incolumidade pública ou de paralisação de atividades essenciais, quando ocorrerá diretamente e poderá vigorar por até dois anos. Lei disciplinará essa modalidade de contratação e determinará, quando se tratar de atividade permanente, sua natureza estritamente transitória, mas sem a necessidade de que seja demonstrada a excepcionalidade da situação que a justifique.

O ar. 247 da Constituição, que tratava da proteção contra a dispensa das carreiras de Estado, foi alterado para determinar que a lei que dispuser sobre a demissão de servidor ou redução de jornada em caso de excesso de despesas “tratará de forma diferenciada servidores públicos investidos em cargo exclusivo de Estado”. Os servidores que farão jus ao tratamento diferenciado serão apenas aqueles que exercerem diretamente atividades finalísticas afetas à segurança pública, à manutenção da ordem tributária e financeira, à regulação, à fiscalização, à gestão governamental, à elaboração orçamentária, ao controle, à inteligência de Estado, ao serviço exterior brasileiro, à advocacia pública, à defensoria pública  e à atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de justiça, e do Ministério Público.

A possibilidade de redução de jornada com redução de salário, em até 25%, foi estendida a todos os servidores, atuais e futuros, inclusive aos ocupantes de cargo exclusivo de Estado. A redução, entretanto, fica condicionada ao caso de haver excesso no limite de despesa com pessoal, prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal.

A autorização para os entes federativos (União, Estados e Municípios) poderem firmar instrumentos de cooperação com órgãos públicos e entidades privadas para a execução de serviços públicos permite a terceirização do serviço público, que deixará de ser prestado diretamente pelo Estado em diversas áreas e setores vitais para a população. Abrirá caminho para uma ampliação quase ilimitada da contratação de “organizações sociais” e assemelhados para prestar serviços à população, eliminando a contratação de servidores estáveis, por concurso, para atividades como educação, saúde, cultura, assistência social, pesquisa científica e outras.

A combinação da ampliação da contratação temporária com a previsão de transferência para o setor privado de serviços atualmente prestados pelo Estado representará o desmonte do serviço público, além da precarização das relações de trabalho nesse setor.

Para os empregados de estatais, cujas relações de trabalho deveriam ser semelhantes à dos trabalhadores do setor privado, o texto impõe diversas restrições absurdas. Além disto, a restrição aos direitos dos empregados de estatais inclui a obrigatoriedade de encerramento do vínculo funcional quando da aposentadoria, bem como a proibição de negociação de cláusula de garantia de emprego em acordo ou convenção coletiva. Um completo absurdo.

A determinação constitucional de que os afastamentos e licenças de servidores superiores a 30 dias não possam ser considerados para fins de percepção de remuneração de cargo em comissão ou função de confiança, para recebimento de bônus, honorários, parcelas indenizatórias ou qualquer parcela que não tenha caráter permanente é outra novidade que poderá trazer dificuldades, prejudicando os servidores.

O texto remete para a lei ordinária federal a definição das normas gerais sobre provimento de cargos públicos (concurso, política remuneratória, benefícios, progressão e promoção, gestão de desempenho e jornada); sobre concessão de direitos em favor de servidores e de empregados públicos (contratação por tempo determinado, forma de seleção, direitos, deveres, vedações e duração da jornada, etc); sobre condições para perda de cargo (avaliação de desempenho insatisfatório de servidor estável, extinção de cargos, etc); e  sobre a nova disciplina para cargos em comissão e funções de confiança. Essa lei, que poderá ser objeto de medida provisória, virtualmente eliminará a competência dos Estados e Municípios para legislar sobre seus servidores.

Por fim, o substituto inclui na Constituição a necessidade de adoção de plataforma eletrônica, a ampliação da automação e da digitação de procedimentos executados pelo serviço público, bem como a obrigatoriedade de avaliação da respectiva qualidade.

Como podemos notar, os desafios dos partidos comprometidos com serviços públicos de qualidade e valorização dos servidores públicos, assim como das entidades representativas dos servidores, são trabalhar para rejeitar esse texto no Plenário da Câmara dos Deputados. Entretanto, caso não seja possível a rejeição pura e simples, devem atuar, via destaques supressivos, para retirar do texto aprovado na Comissão Especial: a possibilidade de redução salarial com redução de jornada; a previsão de demissão do servidor estável em razão obsolescência ou declaração de desnecessidade de cargo; a autorização para os entes firmarem instrumentos de cooperação com entidades privadas que levem à terceirização dos serviços públicos; e a ampliação do uso e duração dos contratos temporários.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político em Brasília