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Cabe ao poder público criar as condições para o retorno. Igualmente, cabe ao Estado criar planos de enfrentamento das desigualdades que se agravam, dentre as quais a escolar

A pandemia da Covid-19 tem dimensões globais, está presente em todos os países do mundo, exceto algumas ilhas do Pacífico, Turcomenistão e Coréia do Norte. Sua disseminação, contudo, não se deu de forma homogênea entre os países e dentro deles. Ao contrário, se apoiou e agravou ainda mais o histórico de desigualdade econômica, política e social das sociedades em que vivemos. No Brasil e em quase todo o mundo, as consequências da pandemia se abatem sobretudo sobre as populações negras, indígenas e pobres, seja em proporção de mortes, seja em relação ao desemprego e outras mazelas sociais. Esse padrão se repete também em relação à educação.

Da forma como tem sido apresentado pelo governo, o debate em relação à "volta às aulas" presenciais assume um caráter geral e genérico e desconsidera a miríade de questões e particularidades que envolvem as distintas comunidades escolares espalhadas pelo país. Há uma certa aleatoriedade no apontamento de datas para a "volta", que nada têm a ver com planos de ações efetivas que promovam a segurança e a saúde das crianças e jovens, das professoras e demais trabalhadores das escolas e também das famílias das e dos estudantes.

A questão não deveria ser, portanto, se devemos retomar as aulas na próxima segunda-feira ou no mês de outubro, mas o que fazer até lá de maneira que todos estejam seguros no ambiente escolar.

A variedade de respostas dos diversos países indica que não há uma receita única para a questão. Nos Estados Unidos as decisões variam de município a município no caso das escolas e as universidades têm autonomia para decidir se e quando retomar as aulas presenciais. Até o momento, Nova York é a única cidade que tem levado adiante a proposta de retomar as aulas no mês de setembro. Na Europa, a Inglaterra foi um dos primeiros países a retomá-las, inicialmente das crianças pequenas, em regime de revezamento de pequenos grupos que frequentavam a escola de duas a três vezes na semana. Outros países europeus adotaram modelos distintos. Na Itália, as aulas das universidades retomam nesta próxima semana em formato presencial. Já um caso emblemático de fracasso foi Israel. O país decretou o retorno às aulas ainda no mês de maio e após duas semanas os números de contágio haviam crescido enormemente, obrigando o governo a voltar atrás na decisão. Por fim, destacamos o Quênia, que tomou uma decisão drástica: cancelar este ano letivo e retomar as aulas em janeiro próximo, com todas as crianças e jovens repetindo os conteúdos do ano "cancelado". Vê-se, assim, que de fato não há receita única e menos ainda, uma receita eficaz.

O que de fato parece ser comum é que os efeitos da pandemia têm agravado as desigualdades escolares. Em todos os países do mundo há crianças e jovens com acesso a formas de ensino e de equipamentos que os permitem seguir nos processos de aprendizagem formal e/ou informal; assim como também há uma grande maioria de desprovidos de qualquer estrutura física e humana que os conecte com quaisquer processos de aprendizagem. Isto é, de um lado, crianças e jovens cujas famílias podem arcar com os enormes custos da homeschooling (ensino doméstico), com a contratação de tutores particulares; de outro, crianças e jovens à deriva, que não possuem sequer computador, smartphone, internet e até mesmo luz elétrica que os permitam participar de qualquer formato de aula online. Este também é o caso de professoras e professores, que de repente passaram a precisar de internet rápida, paga do seu próprio bolso, assim como de conhecimentos avançados de gravação de vídeo e preparação das aulas online para o regime de Educação à Distância (EaD). Nota-se ainda que muitas crianças não possuem ao menos comida em casa e, justamente no momento em que mães e pais perderam seus empregos ou a condição de correr atrás do seu "ganha-pão", ficaram sem a merenda, pois as escolas estão fechadas.

Entre esses extremos, uma variedade de situações e condições econômicas, culturais, psicológicas se abate sobre as crianças, os jovens e suas famílias. Atingem diretamente a comunidade escolar, porém recaem indiretamente sobre todos nós. As consequências da ampliação dos hiatos escolares de uma sociedade são sentidas e compartilhadas por todos. Em poucos anos impactam os indicadores socioeconômicos de municípios, estados e do país de modo geral.

É por isso que o custo do não retorno às aulas não pode ser tratado de forma individual. Não pode recair sobre as famílias, em especial as famílias monoparentais, chefiadas por mulheres. Sabemos que no presente momento não há condições sanitárias para o retorno das aulas presenciais no Brasil. Mas também sabemos que cabe ao Estado garantir condições de vida digna e o direito à educação às crianças e aos jovens.

É preciso ter em mente que o pós-pandemia não vai brotar de um dia para o outro – muito menos sem os devidos esforços governamentais, dos quais o Brasil tanto se ressente. Tudo leva a crer que não haverá uma linha de corte nítida e objetiva entre pandemia e pós-pandemia. Os impactos serão sentidos por muito tempo e em diferentes graus para diferentes famílias e comunidades. Por isso, o debate da volta às aulas presenciais não pode se pautar por datas tiradas da cachola, nas quais presumivelmente já nos encontraremos em situação de segurança para grandes aglomerações. Na contramão dessa espera hipotética, cabe ao poder público criar as condições para o retorno. Igualmente, cabe ao Estado criar planos de enfrentamento das desigualdades que têm se agravado, dentre as quais a desigualdade escolar. Nesse contexto, celebramos a recente aprovação do novo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) na Câmara Federal em julho do corrente e aguardamos sua tramitação no Senado e a sanção presidencial. O Fundeb é um dos caminhos para garantir o financiamento necessário para o sistema nacional de educação no Brasil. Sem ele, tornam-se inviáveis as mudanças tão necessárias e urgentes. Mas serão necessários mais esforços, recursos e programas educacionais, voltados sobretudo às desigualdades de acesso, de estrutura, de aprendizado e de oportunidades. Não abrimos mão da educação pública, gratuita e de qualidade no Brasil. Esse é um direito de todas e todos.

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)