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O cinema, tanto de ficção quanto documentário, tem se dedicado a recuperar de maneiras diferentes personagens da história do Brasil

O cinema, tanto de ficção quanto documentário, tem se dedicado a recuperar de maneiras diferentes personagens da história do Brasil. Os exemplos mais recentes e, unh, bombásticos são o arrasa-quarteirão Chico Xavier e Lula, o Filho do Brasil.

O primeiro ostenta números e títulos: 585 mil ingressos vendidos em três dias; maior abertura de um filme nacional dos últimos vinte anos. (O sentido de blockbuster, ou arrasa-quarteirão em português, é esse mesmo: o filme que acaba com a bilheteria de todos os outros).

O segundo acumulou coisas menos mensuráveis, mas igualmente intensas: vitupérios indignados, rios de pixels dedicados a detonar o filme e uma certa decepção entre aqueles pelo menos dispostos a ver (e não checar ponto a ponto a veracidade da versão ficcionalizada da vida de Lula).

De qualquer maneira, por diferentes que os filmes sejam, a cinebiografia ou o documentário sobre um personagem despertam um interesse enorme, tanto da parte de realizadores de todas as ordens como da parte do público.

Não é tarefa deste artigo pensar, por exemplo, se a maior atratividade da cinebiografia de Chico Xavier em relação à de Lula se deve às diferenças entre a força do personagem ou àquelas entre a qualidade da realização do filme. Num caso, a balança talvez pesasse para o lado de Lula, no outro, para o lado do filme de Daniel Filho a partir da vida de Chico Xavier. Uma hipótese é que não esteja nem em um nem em outro, mas na maneira mais acertada de achar a linguagem da emoção em um e outro caso.

O fato é que vultos da nossa história, como se dizia antigamente nas escolas primárias do Estado, vivos ou mortos e de todos os tamanhos e origens, têm resultado em filmes nos quais, pouco a pouco, vai se recontando a aventura de ser brasileiro.

E, por alguma razão, entre as diversas possibilidades de biografados ou documentados visualmente, músicos e personagens da música brasileira têm sido privilegiados. De 2005 para cá, foram objetos de documentários Cartola, Jards Macalé, Humberto Teixeira, Vinicius de Moraes, Tom Zé, Tom Jobim, Arnaldo Baptista, Herbert Vianna, Wilson Simonal, entre outros.

Essa concentração parece sugerir que, de fato, a música brasileira tem um papel central na história, não apenas da cultura, mas na própria história do Brasil. Isso deve ao fato de a música ter concentrado alguns dos mais importantes questionamentos e proposições sobre a identidade brasileira. Há, na formação do samba, desde antes da gravação daquele que é considerado o pioneiro, Pelo Telefone, em 1916, um entrecruzamento das questões mais perenes sobre quem somos e para onde vamos. E há pouca música brasileira feita depois dos anos 1930 que não pague alguma espécie de tributo ao samba, mesmo quando parece negá-lo de forma mais veemente.

O samba hibrida a forma popular, no sentido de vinda do povo e feita para o povo, com o sentido do popular que vai adquirir na cultura de massas. É branco na poesia e negro demais no coração. Baiano e rural de origem, passa a representar uma possibilidade de inclusão dos marginalizados pela urbanização do Rio moderno.

Quando o hibridismo não vem do samba, reinventa-se em outras cartografias. Lírio Ferreira, observador atento da cultura brasileira, norteou-se por essa noção no belíssimo documentário sobre Humberto Teixeira, O Homem Que Engarrafava Nuvens. O filme parece tentar responder a duas camadas de perguntas: quem foi esse parceiro quase oculto de Luiz Gonzaga e, mais, como essa dupla reinventou o forró e inventou uma música nordestina que entrasse nesse eterno debate da identidade.

Evidentemente, o filme de Lírio não toma essa discussão de maneira cerebral e acadêmica, nem mesmo ideológica. É bom, ótimo cinema de não ficção, e, portanto, isso se faz pelo audiovisual apurado e pela inteligência da edição.

Bia Abramo é jornalista, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate