Novos tempos
Os antigos chineses davam muita importância à estabilidade e a serenidade, que consideravam essenciais para a felicidade. Portanto, desejar para alguém “tempos interessantes” era quase uma maldição, pois significa profetizar agitação, conflitos e tribulações.
Não há dúvidas de que vivemos tempos interessantes. A situação da segurança pública em São Paulo está caótica. Os homicídios aumentaram, os grupos de extermínio voltaram e nunca tantos policiais foram mortos por criminosos, nem mesmo em 2006, quando houve o grande ataque do Primeiro Comando da Capital (PCC) aos órgãos de segurança.
E os números são apenas a ponta do iceberg, representam 10% do problema. O conflito entre setores do PCC e parte do aparelho policial pode ter arrefecido, mas está por trás de vários homicídios não esclarecidos.
Esse conflito polícia versus ladrão não é comum nem corriqueiro, como querem alguns. Na maior parte do mundo, de um lado, existe uma lei não escrita que assegura ao criminoso que se não reagir vai para a cadeia inteiro e, de outro, aquele que atira na polícia faz mau negócio, porque vira alvo.
Aparentemente essa regra foi quebrada em São Paulo. E essa ruptura tem início no segundo semestre de 1969, quando a ditadura baixou dois decretos-lei que subordinaram as polícias militares ao Exército e militarizaram a repressão ao crime.
A militarização não tem a ver necessariamente com a existência ou não das polícias militares, mas sim com a ideia de alguns oficiais do Exército, que comandaram a PM, de que “vagabundo bom é vagabundo morto”. Essa atitude levou ao aumento do número de suspeitos mortos e começou a provocar criminosos.
Um segundo momento ocorreu após os ataques do PCC às polícias em 2006. Não se sabe se por conta de um acordo ou simples acomodação, o estado cedeu a algumas demandas dos criminosos e deu a eles regalias na cadeia em troca de manter o sistema prisional tranquilo e as ruas calmas.
O momento mais marcante desse tratado de paz foi o encontro com Marcola, o principal líder do PCC, em um presídio do interior paulista. Participaram da reunião policiais e funcionários da Secretaria de Assuntos Penitenciários. Um detalhe mostra o caráter oficial do meeting: a viagem foi feita em um avião da PM. Outro detalhe emblemático é que depois dessa conversa os ataques diminuíram muito e as rebeliões se extinguiram, mas em compensação o controle do PCC sobre os presídios cresceu.
Por cinco anos o conflito amainou, e só voltou a esquentar neste ano, quando a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) matou alguns membros do PCC. Como represália, criminosos ligados a uns dos líderes da organização criminosa, Roberto Soriano, o Tiriça, começaram a executar policiais.
Com o PCC na ofensiva, a polícia revidou e a guerra voltou, mas em um patamar diferente. O poder da organização agora é muito maior que em 2006. Apesar de apenas um grupo do PCC participar das execuções o número de policiais mortos ou feridos é muito elevado.
Depois de tanto tempo à vontade dentro dos presídios, o poder da organização criminosa só podia mesmo crescer. Durante seis anos os presos que ingressaram no sistema sofreram uma doutrinação do “partido” e muitos aderiram ao Primeiro Comando. Eles também ganharam experiência, já não atacam mais bases ou delegacias, preferem emboscar policiais fora de serviço.
Dessa experiência restam pelo menos duas lições. A mais importante é que a ideia de eliminar sumariamente criminosos, além de ilegal, não funciona. Provoca retaliação, colocando em risco a vida de policiais e um fogo cruzado que trás insegurança para toda a população.
A segunda constatação é que pactuar com uma organização criminosa é uma estratégia que só pode funcionar no curto prazo. Uma hora ou outra os conflitos vão ressurgir e o grupo criminoso vai estar mais forte do que antes. Também deixa o governo (seja ele qual for) politicamente dependente e vulnerável a chantagem.
A troca da cúpula da Secretaria de Segurança Pública, o procurador de Justiça Ferreira Pinto pelo também procurador Fernando Grella, pode ser boa. Desde que o novo secretário não incorra nos mesmos erros de seu antecessor, adote uma nova postura. Começando por admitir que o PCC existe, é forte e que estamos no meio de uma crise. Também tem de trabalhar para controlar a escalada da violência o que implica adotar medidas urgentes para conter os dois lados.
É preciso apaziguar parte da polícia que quer vingar os companheiros mortos. Outra regra não escrita, e que foi deixada de lado, é que o estado tem de dar prioridade à investigação dos homicídios de policiais. Se o estado não identificar e punir quem mata um policial, existe uma grande probabilidade de que seus colegas resolvam se vingar às margens da lei, muitas vezes por meio do extermínio de qualquer bandidinho ou pessoa que pareça criminoso dentro do senso comum policial. Normalmente um jovem que está no lugar errado na hora errada. E a forma mais prática de fazer isso é criar uma força tarefa que inclua policiais civis e militares para investigar esses homicídios.
Outra medida imprescindível é investigar de fato as mortes praticadas pelos grupos de extermínio, que possivelmente contam com policiais entre seus integrantes. É uma investigação delicada, mas tem de ser prioridade para o Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP). Eles mostraram que tem know how para isso mais de uma vez. Na década de 1980 prenderam praticamente todos os “justiceiros”, os matadores de aluguel que agiam na periferia paulista. Depois disso, levaram à justiça muitos dos membros dos grupos de extermínio constituídos por policiais militares. Neste momento seria importante formarem uma força tarefa com a Corregedoria da PM, que conhece melhor sua “clientela”.
Não adianta, porém, só resolver a crise atual e depois sentar sobre os louros para esperar a próxima. Foi essa a política adotada pelo governo tucano até agora e vimos no que deu. Depois das rebeliões, ataques a policiais e mortes de um juiz em 2001/02, os donos do poder decidiram que tudo estava resolvido, o PCC deixara de ser um problema. Teve até delegado afirmando publicamente que o “PCC tinha só um dente na boca e nós quebramos ele”. Eles devem ter um dentista muito bom, porque em 2006 deram uma mordida maior ainda. Mais que o dobro de rebeliões, dezenas de policiais mortos e um pânico que atingiu toda a grande São Paulo, em 15 de maio, quando São Paulo parou as duas horas da tarde.
Passada a crise, durante a acomodação com o PCC, o discurso voltou. Pouco antes do atual conflito o ex-secretário Ferreira Pinto disse que os órgãos de imprensa estavam sendo alarmistas, e que o PCC era composto por apenas uns quarenta sujeitos presos. Recentemente também se recusou a acreditar em um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que mostrava a guerra em curso entre setores da PM e do PCC. Segundo notícias veiculadas no Estadão em setembro último ele afirmou: "São notícias sem fundamento. A Abin não monitora presídios e não mantém contato com a inteligência do estado”. Também teria acusado a agencia de servir a interesses partidários.
Portanto não é difícil imaginar que daqui umas semanas, depois de passada a crise, o discurso volte a ser “vencemos”, “acabou”. Se vão usar essa estratégia de marketing ou se o problema será realmente enfrentado só o tempo dirá. Qualquer ação séria, porém, tem de levar em conta que o poder do Primeiro Comando da Capital vem do controle que tem sobre os presídios, e da facilidade de seus líderes em continuar comandando de dentro da prisão. Para quebrar o PCC é necessário tomar algumas medidas difíceis e complexas, mas de vital importância.
Uma delas é apertar o PCC tirando dele o controle dos presídios. Enquanto essa organização mantiver o domínio nos presídios continuará crescendo. O criminoso profissional adere ao PCC porque sabe que um dia ou outro acaba em cana, e aí a melhor coisa é ser amigo de quem manda na cadeia. Também faz parte da retomada isolar os líderes da organização, seja no sistema estadual ou no federal, dificultando a comunicação com os cúmplices. Quase toda a “Sintonia Final”, grupo que lidera a organização criminosa, está em presídios comuns. Apenas o Tiriça foi mandado para o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), e isso só ocorreu neste ano.
Outra medida essencial é criar outra força tarefa, constituída por policiais civis e federais, para investigar o dinheiro do PCC. A busca e apreensão do dinheiro ilícito sempre foi uma das formas mais efetivas de enfrentar as organizações criminosas.
São ações essenciais para começar a resolver o problema. Talvez outras venham a ser necessárias, mas temos que começar por algum lugar. Se não vamos continuar vivendo tempos interessantes.
Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e mestre pela Unicamp. Atualmente é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública