EM DEBATE

Uma escalada de violência atinge o estado de São Paulo desde outubro passado. Notícias de dezenas de pessoas assassinadas, ônibus queimados e toque de recolher em diversos locais da região metropolitana são permanentes no noticiário diário. O Estado é o garantidor da segurança da população, mas o governo paulista tem se mostrado titubeante e omisso. Afinal, São Paulo tem uma política de segurança pública? Qual é a relação que estado mantém com o crime organizado?

Novos tempos

Um estado em transe

Sociedade em situação de vulnerabilidade

Ausência de políticas públicas

Novos tempos

Novos tempos

Os antigos chineses davam muita importância à estabilidade e a serenidade, que consideravam essenciais para a felicidade. Portanto, desejar para alguém “tempos interessantes” era quase uma maldição, pois significa profetizar agitação, conflitos e tribulações.

Não há dúvidas de que vivemos tempos interessantes. A situação da segurança pública em São Paulo está caótica. Os homicídios aumentaram, os grupos de extermínio voltaram e nunca tantos policiais foram mortos por criminosos, nem mesmo em 2006, quando houve o grande ataque do Primeiro Comando da Capital (PCC) aos órgãos de segurança.

E os números são apenas a ponta do iceberg, representam 10% do problema. O conflito entre setores do PCC e parte do aparelho policial pode ter arrefecido, mas está por trás de vários homicídios não esclarecidos.

Esse conflito polícia versus ladrão não é comum nem corriqueiro, como querem alguns. Na maior parte do mundo, de um lado, existe uma lei não escrita que assegura ao criminoso que se não reagir vai para a cadeia inteiro e, de outro, aquele que atira na polícia faz mau negócio, porque vira alvo.

Aparentemente essa regra foi quebrada em São Paulo. E essa ruptura tem início no segundo semestre de 1969, quando a ditadura baixou dois decretos-lei que subordinaram as polícias militares ao Exército e militarizaram a repressão ao crime.

A militarização não tem a ver necessariamente com a existência ou não das polícias militares, mas sim com a ideia de alguns oficiais do Exército, que comandaram a PM, de que “vagabundo bom é vagabundo morto”. Essa atitude levou ao aumento do número de suspeitos mortos e começou a provocar criminosos.

Um segundo momento ocorreu após os ataques do PCC às polícias em 2006. Não se sabe se por conta de um acordo ou simples acomodação, o estado cedeu a algumas demandas dos criminosos e deu a eles regalias na cadeia em troca de manter o sistema prisional tranquilo e as ruas calmas.

O momento mais marcante desse tratado de paz foi o encontro com Marcola, o principal líder do PCC, em um presídio do interior paulista. Participaram da reunião policiais e funcionários da Secretaria de Assuntos Penitenciários. Um detalhe mostra o caráter oficial do meeting: a viagem foi feita em um avião da PM. Outro detalhe emblemático é que depois dessa conversa os ataques diminuíram muito e as rebeliões se extinguiram, mas em compensação o controle do PCC sobre os presídios cresceu.

Por cinco anos o conflito amainou, e só voltou a esquentar neste ano, quando a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) matou alguns membros do PCC. Como represália, criminosos ligados a uns dos líderes da organização criminosa, Roberto Soriano, o Tiriça, começaram a executar policiais.

Com o PCC na ofensiva, a polícia revidou e a guerra voltou, mas em um patamar diferente. O poder da organização agora é muito maior que em 2006. Apesar de apenas um grupo do PCC participar das execuções o número de policiais mortos ou feridos é muito elevado.

Depois de tanto tempo à vontade dentro dos presídios, o poder da organização criminosa só podia mesmo crescer. Durante seis anos os presos que ingressaram no sistema sofreram uma doutrinação do “partido” e muitos aderiram ao Primeiro Comando. Eles também ganharam experiência, já não atacam mais bases ou delegacias, preferem emboscar policiais fora de serviço.

Dessa experiência restam pelo menos duas lições. A mais importante é que a ideia de eliminar sumariamente criminosos, além de ilegal, não funciona. Provoca retaliação, colocando em risco a vida de policiais e um fogo cruzado que trás insegurança para toda a população.

A segunda constatação é que pactuar com uma organização criminosa é uma estratégia que só pode funcionar no curto prazo. Uma hora ou outra os conflitos vão ressurgir e o grupo criminoso vai estar mais forte do que antes. Também deixa o governo (seja ele qual for) politicamente dependente e vulnerável a chantagem.

A troca da cúpula da Secretaria de Segurança Pública, o procurador de Justiça Ferreira Pinto pelo também procurador Fernando Grella, pode ser boa. Desde que o novo secretário não incorra nos mesmos erros de seu antecessor, adote uma nova postura. Começando por admitir que o PCC existe, é forte e que estamos no meio de uma crise. Também tem de trabalhar para controlar a escalada da violência o que implica adotar medidas urgentes para conter os dois lados.

É preciso apaziguar parte da polícia que quer vingar os companheiros mortos. Outra regra não escrita, e que foi deixada de lado, é que o estado tem de dar prioridade à investigação dos homicídios de policiais. Se o estado não identificar e punir quem mata um policial, existe uma grande probabilidade de que seus colegas resolvam se vingar às margens da lei, muitas vezes por meio do extermínio de qualquer bandidinho ou pessoa que pareça criminoso dentro do senso comum policial. Normalmente um jovem que está no lugar errado na hora errada. E a forma mais prática de fazer isso é criar uma força tarefa que inclua policiais civis e militares para investigar esses homicídios.

Outra medida imprescindível é investigar de fato as mortes praticadas pelos grupos de extermínio, que possivelmente contam com policiais entre seus integrantes. É uma investigação delicada, mas tem de ser prioridade para o Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP). Eles mostraram que tem know how para isso mais de uma vez. Na década de 1980 prenderam praticamente todos os “justiceiros”, os matadores de aluguel que agiam na periferia paulista. Depois disso, levaram à justiça muitos dos membros dos grupos de extermínio constituídos por policiais militares. Neste momento seria importante formarem uma força tarefa com a Corregedoria da PM, que conhece melhor sua “clientela”.

Não adianta, porém, só resolver a crise atual e depois sentar sobre os louros para esperar a próxima. Foi essa a política adotada pelo governo tucano até agora e vimos no que deu. Depois das rebeliões, ataques a policiais e mortes de um juiz em 2001/02, os donos do poder decidiram que tudo estava resolvido, o PCC deixara de ser um problema. Teve até delegado afirmando publicamente que o “PCC tinha só um dente na boca e nós quebramos ele”. Eles devem ter um dentista muito bom, porque em 2006 deram uma mordida maior ainda. Mais que o dobro de rebeliões, dezenas de policiais mortos e um pânico que atingiu toda a grande São Paulo, em 15 de maio, quando São Paulo parou as duas horas da tarde.

Passada a crise, durante a acomodação com o PCC, o discurso voltou. Pouco antes do atual conflito o ex-secretário Ferreira Pinto disse que os órgãos de imprensa estavam sendo alarmistas, e que o PCC era composto por apenas uns quarenta sujeitos presos. Recentemente também se recusou a acreditar em um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que mostrava a guerra em curso entre setores da PM e do PCC. Segundo notícias veiculadas no Estadão em setembro último ele afirmou: "São notícias sem fundamento. A Abin não monitora presídios e não mantém contato com a inteligência do estado”. Também teria acusado a agencia de servir a interesses partidários.

Portanto não é difícil imaginar que daqui umas semanas, depois de passada a crise, o discurso volte a ser “vencemos”, “acabou”. Se vão usar essa estratégia de marketing ou se o problema será realmente enfrentado só o tempo dirá.  Qualquer ação séria, porém, tem de levar em conta que o poder do Primeiro Comando da Capital vem do controle que tem sobre os presídios, e da facilidade de seus líderes em continuar comandando de dentro da prisão. Para quebrar o PCC é necessário tomar algumas medidas difíceis e complexas, mas de vital importância.

Uma delas é apertar o PCC tirando dele o controle dos presídios. Enquanto essa organização mantiver o domínio nos presídios continuará crescendo. O criminoso profissional adere ao PCC porque sabe que um dia ou outro acaba em cana, e aí a melhor coisa é ser amigo de quem manda na cadeia. Também faz parte da retomada isolar os líderes da organização, seja no sistema estadual ou no federal, dificultando a comunicação com os cúmplices. Quase toda a “Sintonia Final”, grupo que lidera a organização criminosa, está em presídios comuns. Apenas o Tiriça foi mandado para o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), e isso só ocorreu neste ano.

Outra medida essencial é criar outra força tarefa, constituída por policiais civis e federais, para investigar o dinheiro do PCC. A busca e apreensão do dinheiro ilícito sempre foi uma das formas mais efetivas de enfrentar as organizações criminosas.

São ações essenciais para começar a resolver o problema. Talvez outras venham a ser necessárias, mas temos que começar por algum lugar. Se não vamos continuar vivendo tempos interessantes.

Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e mestre pela Unicamp. Atualmente é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Um estado em transe

Um estado em transe

Os números são alarmantes: mais de trezentas mortes violentas em cinco meses no estado de São Paulo. E o que temos além das estatísticas? Vítimas de um sistema falho de segurança pública, que não exime nem mesmo aqueles que deveriam proteger a população – até o momento já são mais de noventa policiais mortos desde que a guerra urbana começou.

Quando analisamos os homicídios dolosos (intencionais), a escalada da violência fica clara. Em outubro último, foram registrados 176 casos dessa modalidade de crime, representando aumento de 92,3% em relação ao mesmo período de 2011 (82 ocorrências).

São meses de convivência do povo paulista com notícias sobre madrugadas tomadas por violência, em que o número de vítimas cresce a cada dia.

E após todo esse período de clima de guerra, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) resolve fazer mudanças na Secretaria de Segurança Pública. Saiu Antonio Ferreira Pinto, apesar de toda a defesa do governador sobre o seu trabalho, e entrou Fernando Grella Vieira, ex-procurador geral de Justiça.

A situação de Ferreira Pinto ficou ainda mais fragilizada quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) passou a executar policiais, em resposta às mortes dos integrantes da facção criminosa durante atuação da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), esquadrão de elite da Polícia Militar de São Paulo.

Durante a gestão de Ferreira Pinto, as ações eram defendidas como legítimas. Uma delas, ocorrida em um sítio na Grande São Paulo, seis pessoas foram mortas. Na época, o governador, que fez eco às palavras do seu então secretário de Segurança Pública, abonou a ação dizendo que “quem não reagiu está vivo”.

A troca de comando na área veio, enfim, após muitos “desmentidos” por parte do governo estadual de que a situação da violência estava crítica. Era como se os problemas fossem invenção de opositores ao governo, assim era o que se queria passar no discurso oficial. Desde que a onda de violência tomou conta do estado, o governador vinha dizendo que “todas as medidas estão sendo tomadas” para reduzir a criminalidade. Era como se as negaças fizessem com que o problema deixasse de existir.

Mas os fatos e as notícias diárias cada vez mais sufocavam as versões oficiais. Além dos crimes, recentemente, a Corregedoria da PM abriu investigação sobre um possível vazamento de informações sigilosas do 35º Batalhão de Itaquaquecetuba, com informações pessoais de policiais, como telefones e endereços, que estariam sendo vendidas ao crime organizado.

E essa articulação começa dentro dos próprios presídios, onde chefes de quadrilhas determinam execuções do lado de fora. A Secretaria de Segurança Pública admite que não consegue impedir o uso de celulares por parte de presidiários. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) chegou a oferecer para o estado de São Paulo um equipamento que permite rastrear e localizar com precisão celulares e chips em áreas proibidas. Segundo o Depen, em um ano, o aparelho localizou e identificou 9.289 linhas telefônicas em presídios de seis estados e no Distrito Federal, e em junho deste ano rastreou 458 celulares em um presídio de Ribeirão Preto e 32 em Araraquara. Apesar desses dados que demonstram eficiência, o governo paulista não solicitou o aparelho e diz que estuda outras formas de evitar que presos usem celulares.

Em meio a esses dados assustadores, há que se perguntar como a situação chegou a esse ponto em São Paulo. E é justamente para apurar eventuais responsabilidades das autoridades estaduais sobre a (in)segurança pública que o Partido dos Trabalhadores apresentou um pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa.

Nossa expectativa é que a bancada governista se sensibilize com o grave momento e vote favorável à CPI, pois somente a oposição não atinge o número mínimo de assinaturas necessário para tanto, 32. Até o momento há 28 adesões, sendo 24 do PT, dois do PCdoB, um do PSOL e outro do PDT.

Não é a primeira vez que a oposição tenta investigar as causas de tanta violência no estado, mas os apoiadores do governador asfixiam qualquer iniciativa de apurar possíveis falhas na administração estadual.

Como membro da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, tenho acompanhado também a precariedade do sistema carcerário em diversas cidades do estado, com superlotação e denúncias de tortura e maus-tratos – características que nada ajudam na recuperação de presos para uma reinserção social.

De acordo com levantamento feito pela bancada do PT, os presídios paulistas vivem hoje situação de calamidade pública. Só para se ter ideia, há 103.764 vagas nas penitenciárias do estado, porém 193.773 pessoas estão presas nessas unidades – ou seja, 91 mil pessoas a mais que a capacidade dos estabelecimentos.

Fazendo referência à obra Filosofia Política, do francês Eric Weil, Frei Betto lembra que a principal característica do Estado moderno é o monopólio da violência: “só o Estado pode legalmente suprimir a liberdade de um cidadão, cassar-lhe os direitos, vasculhar as suas contas, grampear o seu telefone, bani-lo e, em muitas nações, decretar a sua morte”.

Partindo desse princípio de que é o Estado quem determina as regras para a manutenção ou não da segurança, é lastimável ver a realidade violenta em que se encontra São Paulo. Estado mais rico da nação, paga mal seus policiais e não dá as devidas condições de trabalho a esses profissionais.

Aliás, recentemente, o governo estadual obteve liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) para reduzir o pagamento de benefícios a PMs, como quinquênios, sexta parte, entre outros. A medida foi considerada uma punhalada, já que ocorre bem no meio de uma crise em que policiais paulistas, além de viver sob o estresse de se sentirem em constante ameaça, ainda precisam lidar com a deficiência de equipamento de proteção individual, tendo que fazer até rodízio de coletes à prova de bala.

Não à toa o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, comparou o número de mortos na onda de violência vivida em São Paulo ao do conflito entre israelenses e palestinos, na Faixa de Gaza, onde foram contabilizadas 153 mortes. Pode parecer exagero, mas não é. A diferença é que em São Paulo não são usados bombas e foguetes, mas a estratégia de espalhar o terror é semelhante, com incêndios a ônibus do transporte público, assassinatos de policiais e civis, além de chacinas e outras tantas modalidades criminosas.

Por isso, causou espécie a demora do governador em aceitar o auxílio oferecido pelo governo federal na área de segurança. Somente depois de se ver pressionado pelos fatos é que Alckmin concordou em anunciar em conjunto com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, um pacto por medidas para conter a violência.

Uma agência integrando as polícias do estado e a Polícia Federal foi criada com intuito de facilitar a troca de informações entre as duas esferas, e, assim, aumentar a eficiência do combate ao crime organizado. A transferência de presos considerados de alta periculosidade para presídios de segurança máxima, sob responsabilidade do governo federal, também foi outra medida tomada.

Por ser um problema complexo e de raízes profundas é necessário ter humildade e sabedoria para admitir que toda a ajuda é importante na hora do enfrentamento ao crime. Não se pode tratar a questão como uma disputa de méritos ou de holofotes em busca da paz.

Em seu discurso de posse, o novo secretário de Segurança Pública afirmou que não fará ruptura com o modo de administrar a pasta, mas que vai buscar o aprimoramento do trabalho executado até agora. Numa clara resposta às críticas sofridas pelo seu antecessor, Fernando Grella promete combate ao crime organizado, mas “com respeito irrestrito aos direitos humanos”.

Assim esperamos que seja, pois a sensação de segurança perpassa também pelo sentimento de que a ordem ocorre acatando os mecanismos legalmente instalados, e não por força de uma lei paralela, que tende a querer calar – ou até mesmo exterminar – em julgamento sumário, fazendo (in)justiça com as próprias mãos, trabalhadores, inocentes e pessoas que foram subtraídas do seu direito a um justo julgamento. Isso tem nome: barbárie!

Marco Aurélio de Souza é deputado estadual pelo PT-SP

Sociedade em situação de vulnerabilidade

Sociedade em situação de vulnerabilidade

O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que completa 30 anos de existência, vem debatendo, ao longo de sua trajetória, a segurança pública, uma vez que esse tema está no DNA de seus militantes e defensores, já que todo o aparato de segurança estatal sempre foi utilizado contra as lutas pela democracia e pelas liberdades.

No entanto, há cerca de quinze anos, com a conquista de conselhos e ouvidorias de polícia para o exercício democrático do controle externo da política de segurança pública, entidades de direitos humanos passaram a se debruçar sobre o tema para tentar desvendar a forte tensão entre direitos humanos e segurança pública. Com esse alicerce, analisamos a atual situação de São Paulo, maculado por milhares de assassinatos que poderiam ser evitados, se a vida e os direitos humanos fossem objeto central da política de segurança pública do estado.

Herança jurídica da ditadura militar

Ao que estamos assistindo com muita dor e amargura em 2012, em nossa avaliação, deve-se ao fato de o artigo 144 da Constituição Federal de 1988 não fazer a transição de uma segurança pública militarizada e repressiva para uma política de segurança com estrutura democrática dos princípios constituídos no artigo 5º.

A diretriz do artigo 144 manteve as mesmas bases conceituais do sistema anterior, que guarda relação histórica de atividades policiais imbricada com a doutrina liberal patrimonialista, cuja ação da polícia é de repressão às condutas antissociais. Pior ainda, trouxe a ideia de manutenção de ordem pública no bojo do liberalismo do século 19, como algo a ser protegido, cujo conceito está dissociado de estruturas democráticas. Seu preâmbulo e os artigos 3º, 5º, 6º, 183, 227, entre outros, da Carta remetem o sistema constitucional a outras diretrizes jurídicas como base da Nação e da República – respeito às liberdades individuais, pluralismo, aceitação da diferença, prática dos direitos humanos, doutrina da proteção integral, sistemas de garantias de direitos, função social da propriedade, direitos sociais, entre outros.

Como em tais diretrizes, interpretamos como ordem social, e não mais ordem pública, uma ordem pactuada que tem como referência a vida e direitos, e não apenas proteção de instituições estatais ou ordem verticalizada, como antes de 1988.

Contudo, o artigo 144, isolado do sistema constitucional, conservou politicamente a segurança pública como controle social dos estados federados, sem nenhum comando de prevenção à violência nem garantia de direitos.

É nessa contradição jurídica que se instauram os desmandos políticos com relação à segurança em São Paulo, deixando-se de observar que se trata de um direito fundamental. Por isso, a alteração do artigo 144 da Constituição é alvo de reivindicação de diversas fontes.

O que ocorre em São Paulo?

Desde que foi instaurada a Ouvidoria de Polícia de São Paulo, importante ferramenta de controle social das atividades policiais, o MNDH tem acompanhado o debate sobre segurança pública em São Paulo. Os relatórios sobre as estruturas e atividades da polícia paulista comprovam, pela primeira vez, o que já se suspeitava. A polícia é um aparato político de controle e não está para servir cidadãos nem garantir direitos, mas ainda tem fortes resquícios com a polícia política eminentemente repressiva.

Apesar de os relatórios da Ouvidoria apontarem os assassinatos de pessoas e operações com negócios ilícitos por parte de polícia, o governo sempre tolerou e não adotou medidas eficientes de controle das atividades policiais. Ao contrário, adotou discurso que convalida os assassinatos sob a justificativa de proteção do estado, segundo a ideologia de que “bandido bom é bandido morto”, empoderando os policiais e sua forma truculenta de agir, e ressuscitou o “auto de resistência”.

Fechando os olhos para esse poder dado na ponta de um revólver a um agente público fardado com instruções apenas para reprimir, seja matando, agredindo, ofendendo, humilhando as pessoas detentoras de direitos constitucionais, o governo se contrapôs ao sistema jurídico e político vigente e além da perspectiva de vida em democracia dos cidadãos.

Há muitos anos a Ouvidoria de Polícia de São Paulo vem apontando os caminhos errados das atividades policiais que vão contra o Estado democrático de direito. Há muitos anos o MNDH e suas entidades filiadas vêm denunciando a existência de execuções sumárias feitas por policiais contra cidadãos – em sua maioria jovens, jovens negros e da periferia –, assim como de grupos de extermínio formados por agentes públicos do estado com ações em chacinas, como ocorria na ditadura militar com os esquadrões da morte.

Em maio de 2006, a cidade de São Paulo sofreu uma paralisia de quarenta dias, cujo resultado final foram cerca de quinhentas pessoas assassinadas, 80% com características de execução (sem possibilidade de reação). À época, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe-SP) entregou relatório ao governo estadual, e até os dias de hoje as autoridades paulistas não responderam, não investigaram e ninguém foi responsabilizado pelo episódio, apesar de haver fortes indícios de que o então secretário de Segurança Pública determinou que houvesse retaliação pela polícia aos ataques. Até hoje a sociedade paulista não tem respostas sobre o que ocorreu. Entendemos essa omissão como ação política do governo de reconhecer ter feito parte ativamente nas mortes de maio de 2006.

Na visão do MNDH, o estado de São Paulo, nos últimos 22 anos, vem sucateando as políticas públicas em favor da economia de mercado sem regulação, seja na educação, saúde, habitação, transporte, seja na segurança pública. Houve privilégio para a segurança privada, que hoje conta com efetivo de mais de 1,71 milhão de trabalhadores (dados da Polícia Federal que não computa pessoas não cadastradas), contra 120 mil no serviço público. Os investimentos na polícia sempre são de ordem material, nunca no aprimoramento do serviço, mitigando a capacitação profissional sem metodologia pedagógica, apenas instrutiva, e não gesta ações de inteligência integrada e de monitoramento a partir de banco de dados compartilhados.

Os policiais militares de baixa patente permanecem como em regime de Exército. Não possuem voz, direito de organização sindical, não podem se defender em processos administrativos, vivendo momentos ditatoriais como se estivéssemos no século 19, sem regulamentos de adaptação para a Constituição de 1988.

Por sua vez, o governo federal há dez anos vem remando na construção de uma política nacional de segurança, por meio do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e também pelas edições de programas incipientes, que constituem matrizes de políticas de prevenção à violência com democracia, como o Pronasci, ambos do Ministério da Justiça. E ainda programas de proteção à vida com viés no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e o Programa de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O governo se recusa peremptoriamente a inscrever e trazer para o estado de São Paulo tais ações, por reivindicação do MNDH, suas entidades e solicitações do Condepe.

Causas políticas e consequências sociais

Algumas das causas políticas apontamos anteriormente, porém elas se refletem, porém, no dia a dia. Desde 2010 recebemos denúncias sobre ações de grupos de extermínio, e que estes tinham formação e ligações com policiais. Questionava-se por que a formação de grupos de extermínio por policiais. Acreditava-se na possibilidade de financiamento por grupos econômicos, diante dos baixos salários. No entanto, fomos surpreendidos com indícios de que, na verdade, alguns oficiais da PM buscam controle territorial de negócios ilícitos, não só de drogas, mas de roubo de cargas, caça-niqueis e empresas de segurança privada, embora grupos econômicos não estejam apartados dessa articulação. Ou seja, vários interesses formaram um grupo ilícito.

Apuramos também que policiais militares que denunciavam esse tipo de   prática eram envolvidos em processo de expulsão e retaliação interna na corporação militar. Em setembro de 2011, o soldado Nascimento, que entregaria provas ao Condepe, foi assassinado com dezessete tiros na porta de sua casa, dias antes. Houve ainda denúncias de que sete policiais militares de baixa patente ficaram detidos e com processos de expulsão por apoiar pelo Facebook a greve da PM da Bahia.

No entanto, a Secretaria de Segurança Pública, gabando-se de seu poder de articulação e eficiência investigativa, para enfrentar tais denúncias, desconstruiu todos os indícios, passando a amordaçar a Polícia Civil e ampliar os poderes dos militares. A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, nomeou 31 subprefeitos coronéis PM’s da reserva, sem dizer de capitães e majores na assessoria. O Plano de controle social e político parecia perfeito, até que em maio de 2012 houve abruptamente troca do comando da PM e da Rota.

Não sabemos ao certo o que ocorreu, mas tudo dá a entender ter havido um racha político na cúpula militar por excesso de poder concentrado em que militares queriam compartilhar dos negócios e dos dividendos políticos, e os reflexos logo foram o aumento da letalidade da polícia. De maio de 2012 a julho de 2012 já havia notícias de que mais de sessenta policiais haviam morrido e mais de setecentos civis.

Ficou nítido que, em vez de o Estado criar uma política de segurança pública, introduziu a política na segurança pública, tanto nas subprefeituras como nas disputas eleitorais municipais, e o sucesso não seria maior, se os motivos do racha na cúpula militar não tivesse atingido o PCC com a troca de comando da PM.

Evidente é que de 2006 para cá nada se aprendeu com aqueles ataques, e o poder militar foi tão arrogante que desconsiderou a articulação e o poder ofensivo do PCC, e acreditou poder mantê-lo sob seu jugo.

A impunidade dos ataques de 2006 e a ausência de debate com a sociedade sobre o ocorrido, faltando democratização das informações da segurança pública, tornaram essa omissão do Estado a causa central para a repetição de uma guerra covarde que vem ocorrendo desde então o episódio, com aumento da letalidade das atividades policiais e dos grupos criminosos de extermínio.

Não se pode atribuir ao PCC as mortes de todos policiais. Pelos menos seis dos 91 policiais mortos foram assassinados por outros policiais. Recebemos informações, no entanto, de que há três grupos que matam. A Polícia Militar mata pessoas e assume quando lhe é conveniente ou não consegue esconder. O PCC mata policiais. Mas há o um terceiro grupo criminoso, com indícios de ser formado por policiais, que mais tem assassinado pessoas e também policiais entre maio e novembro de 2012 – e já podemos dizer que são mais de 1.500 pessoas assassinadas e mais de duzentos desaparecimentos forçados.

Em janeiro de 2012, o Condepe recebeu informações de policiais civis exonerados de que em todos os batalhões da PM havia ordens para executar pessoas ou grupos, bem como a presença do “kit-vela” (um pouco de droga, uma arma de fogo raspada e outros produtos de incriminação) em várias viaturas da Força Tática e da Rota. No bairro Sapopemba foi criada uma lista de pessoas para morrer, jovens e adolescentes dependentes químicos ou egressos do sistema prisional ou da Fundação Casa. Policiais da Rota fotografavam esses jovens e mandavam recados. No feriado de 9 de julho de 2012 morreram oito adolescentes na região com ação da Rota. Em Guarulhos, cinquenta jovens que receberam medidas de liberdade assistida foram assassinados logo após a decisão judicial – e as investigações nunca foram concluídas.

Ou seja, setores da polícia agem na ilegalidade e não há qualquer apuração dessa lógica de fazer segurança pública. Os grupos de extermínio agem e não há nenhum controle dessa ação, sendo que a pena de morte foi instituída na prática. O governo é omisso, como há muito vem sendo relatado pela Ouvidoria e pelas entidades de direitos humanos.

Nesse sentido, o MNDH e as entidades de direitos humanos têm convicção de que há um grupo organizado e criminoso com característica de milícia que pode estar em guerra com o PCC, o qual conta com a cooperação mascarada e articulada de setores da Polícia Militar. Tanto essa suspeita é verdade que chegou ao Condepe informações de que os toques de recolher que são dados em bairros da periferia são feitos por policiais militares e pelo grupo criminoso miliciano, e não pelo PCC, como se acredita.

A segurança pública em São Paulo está falida e o governo perdeu o controle sobre as instituições policiais. Assim, a banda podre da polícia prestigiada pelos discursos políticos higienistas e pelos serviços prestados ganhou força, tornando refém o próprio governo. Logo, a sociedade paulista está em situação de total vulnerabilidade: porque, de um lado, não há garantia de direitos na ação dos agentes do estado; e, de outro, está temerosa de grupos do crime organizado.

Rildo Marques de Oliveira é coordenador-geral do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), conselheiro do Condepe e do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública), membro do Instituto Popular de Educação de Direitos Humanos (IPEDH) e do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, advogado especialista especializado em Política Pública de Segurança Pública, pela PUC-SP

Ausência de políticas públicas

Ausência de políticas públicas

A garantia da “segurança comum” e a busca da “felicidade particular de cada ser humano” foram os fatores determinantes para a criação do Estado, conformação na qual cada indivíduo abre mão de parte de sua liberdade em nome de um “ser” (o Estado) mais forte que si mesmo ou de alguns grupos de pessoas, para ter paz e tranquilidade, uma vez que, no estado da natureza “o homem é o lobo do homem”, os grupos mais fortes dominam os mais fracos, entretanto os mais fracos podem reagir e gerar conflitos sociais, mesmo que levem a pior. É a “guerra de todos contra todos”, permanentemente. Numa visão idealista, o Estado é o garantidor da paz social, da imparcialidade, da igualdade de oportunidades, e por isso tem de ser estruturado, forte e detentor do “monopólio da violência”. E, como detentor do “monopólio da violência”, ou seja, da força, da capacidade de possuir armas, do poderio de agir para a manutenção da ordem pública, de prevenir e combater os delitos e a violência no seio das comunidades, dá aos indivíduos o direito de ser protegidos, com a correspondente obrigação de protegê-los. Entretanto, o tipo de Estado (liberal, social, de direito, democrático, ou autoritário...) determina o modelo de segurança pública e as políticas públicas de proteção aos indivíduos.

A crise em São Paulo

Feita essa introdução, vamos aos problemas da crise da segurança pública em São Paulo, onde todos os dias são assassinadas em média dez pessoas, policiais e civis, e ônibus são incendiados. Tal fato caracteriza uma “guerra civil” em decorrência do modelo de Estado e do esgarçamento das comunidades sociais. Antes dessa crise na área da segurança pública, o estado de São Paulo fracassou em outras áreas, como nas políticas públicas de educação, urbanização de favelas, saúde pública, habitação, prevenção às drogas, na falta de oportunidades para a juventude e adolescentes, como primeiro emprego, e na participação popular. Destaquem-se o desastrado sistema prisional paulista, que é o “ovo da serpente” que gerou as organizações criminosas no estado, a ausência de políticas públicas, a omissão do Estado, que tratou os presidiários e suas famílias desagregadas como párias da sociedade. Um sistema que não reeduca, mas constitui, ao contrário, uma verdadeira escola do crime, de formação de quadrilhas, de corrupção – e o mesmo ocorre na Febem/Fundação Casa.

Diagnóstico e propostas

A segurança pública em São Paulo está falida, e isso ocorre porque o mesmo grupo político governa o estado desde 1983, sem a necessidade de formulação de políticas públicas. Nessa área são governos do “deixe a vida me levar”, governos que se acomodaram no poder, pois não existe alternância – o que dá a sensação de que tudo está bem, quando na realidade não está. Se o tipo de Estado ou de governo determina o modelo de segurança pública, tanto um como outro estão equivocados em São Paulo, por diversas razões, entre as quais:

  • Esses governantes nunca apresentaram à sociedade um plano real de políticas públicas de segurança;
  • Não conseguem gerir políticas públicas com a metodologia da matricialidade e da transversalidade, na qual são combinadas segurança pública lato sensu (políticas sociais de educação, prevenção e tratamento contra drogas, iluminação pública, urbanização, eliminação dos ambientes propícios à violência, ou seja, políticas basicamente preventivas, que não dependem das polícias) e stricto sensu (que dependem estritamente das ações policiais, da força, da inteligência, de informações sobre as organizações criminosas);
  • Negam a integração com o governo federal, os municípios e outros estados, e portanto boicotam a criação do Sistema Único de Segurança Pública, por mesquinharias políticas partidárias;
  • Não enfrentam questões como corrupção nas forças de segurança, baixos salários, venda das horas de folga, “bicos”, desvalorização dos quadros, baixa autoestima, estresse, apadrinhamento das promoções, corregedorias fracas, descumprimento das leis nas ações policiais de forma generalizada, falta de investimento em equipamentos de inteligência e na polícia técnico-científica, de formação continuada, de participação popular e controle social.

Com base nesse cenário, arrisco-me a apresentar algumas propostas para a solução dos problemas de segurança pública no estado de São Paulo:

  • Corregedoria única, bem remunerada, capacitada, de carreira, subordinada diretamente ao secretário de Segurança Pública;
  • Modificações no currículo de formação das polícias civis e militares, com Academia de Polícia única, ligada ao Sistema Único de Segurança Pública;
  • Investimento na polícia técnico-científica e nos serviços de inteligência policial;
  • Reestruturação das carreiras policiais, com melhor remuneração e formação continuada;
  • Integração entre municípios, estados fronteiriços e governo federal na busca do Sistema Único de Segurança Pública e colaborações recíprocas;
  • Mudança na concepção da polícia rodoviária, como indústria de multa e busca de veículos irregulares somente, o que se resolve por monitoramento eletrônico, para garantir a vigilância e a segurança nas estradas, coibindo o tráfico de drogas e a circulação de criminosos;
  • Modificações no sistema de educação e de proteção social no estado de São Paulo e garantia de igualdade de oportunidades para todos, em especial adolescentes, jovens, mães chefes de família, com políticas públicas contra todas as formas de preconceitos;
  • Alteração radical do sistema prisional no estado de modo a isolar os chefes do crime organizado dos demais presos, impedir que o crime organizado tenha contato com as famílias dos presos, dando-lhes assistência e oportunidades, criar políticas de ressocialização e garantir trabalho e educação aos apenados.

Vanderlei Siraque é deputado federal (PT-SP), mestre e doutor em Direito (com a tese “O direito fundamental à segurança pública”) e autor de Controle Social da Função Administrativa do Estado (Editora Saraiva, 2005)

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