EM DEBATE

Beliscão, piscada marota, mão boba e propostas "indecorosas" estão com seus dias contados, principalmente no ambiente de trabalho, se o projeto de lei apresentado pelas deputadas Marta Suplicy e Maria Laura for aprovado, caracterizando situações de assédio sexual, penalizando, assim, o assediador.

Mas, segundo Maria Rita Kehl ainda é preciso descobrir a diferença tênue entre o assédio sexual e a aproximação, tomada como um direito de cada indivíduo dispor livremente de seu corpo, sem confundir isso com o estupro, o uso da força ou o abuso do poder.

Samuel Mac Dowell de Figueiredo afirma que as condutas compreendidas como assédio sexual já estão amplamente previstas na lei penal, sendo desnecessária uma lei específica e reiterativa que, segundo ele, poderia até se tornar socialmente danosa, correspondendo a uma exacerbação da atividade repressiva do poder público.

Marta Suplicy mostra, a partir de pesquisas, que as mulheres estão mais sujeitas ao assédio sexual por se encontrarem em posição inferior na hierarquia de trabalho e pelas profundas marcas de submissão, deixadas por uma educação autoritária e machista. Para ela há necessidade de se caracterizar o assédio e puni-lo.

Uma questão de classe?

Limites da intolerância

Legislando contra o assédio

Uma questão de classe?

O normal seria iniciar este artigo advertindo que o assunto é delicado. De fato é delicado, em função das fúrias que a idéia de assédio sexual faz desencadear. O que não me impede de continuar imaginando como deve ser chato viver num país em que homens capitularam definitivamente de correr riscos por seu desejo. Como se já não fosse arriscado o bastante desejar alguém. Como se fosse fácil demonstrar o desejo ou, o que dá resultados melhores, esconder o desejo e jogar o jogo da conquista. Como se nós, mulheres, não tivéssemos lutado por várias gerações contra o tabu da virgindade, contra a sacralização cristã e repressiva de nossos corpos, contra a dupla moral sexual, contra os obstáculos institucionais, biológicos (há quantas décadas o acesso aos métodos anticoncepcionais se democratizou?), familiares, ao livre uso de nossos corpos.

Não consigo deixar de imaginar que triste seria viver num país em que a conquista, a aproximação dos corpos, a cantada fossem tratados como caso de polícia. Onde a noção de liberdade individual se confundisse com o máximo valor capitalista da propriedade privada. Explico: uma coisa é o direito de cada ser humano dispor livremente de seu corpo, e em nome deste direito condenamos o uso da força, o estupro, o abuso do poder como meio de se obter os chamados "favores sexuais". Outra coisa é tomar os corpos como fortalezas narcíseas intocáveis, propriedades preciosas para as quais uma aproximação não autorizada, um olhar "mal-intencionado" (huummm ... !), um toque erotizado (huummm ... !) equivalem a roubos, ultrajes, violações. Não posso imaginar, como modelo ético, nenhuma combinação pior entre a moral cristã mais puritana e o filisteísmo capitalista mais estreito do que esta que resultou na histeria antiassédio sexual. Mas é claro que a defesa tão apaixonada do direito ao assédio necessita de esclarecimentos e ressalvas, dúzias de ressalvas.

Primeiro: assédio não é estupro. Em hipótese alguma aceitaria confundir a liberdade que estou tentando pleitear com a defesa dos direitos do estuprador. Estou falando de tentativa de conquista sexual (ainda que nem sempre de sucesso garantido). Em que ponto começa o uso da força física, termina o princípio da sedução e começam os famosos casos de polícia? Antes deste ponto, há uma série de outras formas de aproximação que parecem ofensivas às mulheres, e penso que seria bom interrogar as leitoras sobre o que, afinal, pode ser tomado como ofensa.

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Segunda ressalva: há uma versão hardcore do assédio, o abuso do poder, que também é indefensável. O chefe que insinua à secretária a possibilidade de uma demissão se ela não se entregar a ele incorre em crime de abuso do poder - tanto quanto o chefe que exige horas extras e não paga, ou o militar que utiliza sua patente para intimidar uma vítima de sua barbeiragem no trânsito etc. Abuso de poder, sexual ou não, é crime.

Outra coisa é o efeito sedutor do poder. Aqui encerro minhas principais ressalvas e passo a interpelar a leitora. Sabemos que o poder seduz. Sabemos que as mulheres são particularmente sensíveis a esta sedução, já que durante séculos de dependência econômica fomos educadas para, com o perdão da franqueza, entregar nossos corpos (em matrimônio) ao "melhor partido". Assim, fica muito difícil separar o caso do professor sacana que usou seu prestígio para impressionar e conquistar a aluninha inocente (aliás: e daí?), da aluninha sacana que usou sua beleza e juventude para seduzir um professor bobão. Difícil diferenciar o chefe libidinoso que aproveita sua posição para levar as subordinadas para a cama (outra vez: e daí? Se foi bom, valeu; se não foi, não tira pedaço), da secretária carreirista que alimenta o sonho de cinderela de casar com o chefe - e só depois que percebe ter sido apenas uma aventura é que se magoa e resolve denunciar o "assédio".

Outra pergunta à leitora: e os preconceitos de classe, raça e idade, hein? Se você vai ao cine Belas Artes e um gatinho vem puxar conversa sobre Godard e depois tenta um beijo ou um convite, é romance. Se vai a um encontro do partido cheio de sindicalistas do ABC e um operário aproveita uma pausa da reunião e faz uma proposta a você, então é assédio, não é? Se um rapaz de terno com jeito de anúncio de Vinólia lhe oferecer flores, é aventura. Se a peãozada assobiar e chamar você de gostosa, passando de caminhão ao lado do seu Corsa, é ofensa?

Penso com certo desgosto que as mulheres não estão psicologicamente preparadas para a era de democracia sexual que elas próprias lutaram para inaugurar. Que não suportamos a ferida narcísica de ver nossos corpos, sagrados até a geração de nossas mães, tratados sem a menor cerimônia, e nosso desejo ser interpelado sem romantismo, do mesmo modo que os homens tratam a si mesmos - "gostei de você, quero ter você, você quer?" Nós ainda queremos as rosas, os tapetes vermelhos, as promessas e as garantias - dos tempos em que a virgindade era um bem a ser vendido a preço alto.

Admito que algumas formas de assédio possam consistir em ofensas graves. Mas avaliando perdas e danos, acho a histeria antiassédio, como fenômeno de massa, um retrocesso infinitamente mais grave.

Maria Rita Kehl é psicanalista e membro do Conselho de Redação de T&D

Limites da intolerância

N. S. Naipaul, o escritor de origem hindu, é autor de uma das frases mais cruéis da literatura contemporânea: "Odeiem a opressão, mas temam os oprimidos". Apesar de rude, esta afirmação expressa uma reflexão sobre a redução das defesas de princípios gerais à proteção de interesses exclusivistas e individualizados.

As defesas de princípios gerais têm como referência fundamental a solução dos conflitos da sociedade e as reivindicações de direitos coletivos e individuais. Ocorre, algumas vezes, que essas defesas são reduzidas a uma proteção de interesses exclusivistas e, muitas vezes, corporativistas, o que pode ensejar resultados que se afastam, facilmente, dos objetivos de bem-social que a inspiram. Mesmo em circunstâncias em que essas reivindicações assumam um caráter individualista, pode ocorrer - e ocorre - que elas continuem sendo feitas em nome de interesses de ordem geral e coletiva. Ainda assim, o agente da ação reivindicatória, em razão do fato de proclamá-la em nome de interesses difusos de toda uma sociedade, adquire para si mesmo uma força e uma autoridade que são próprias das reivindicações coletivas e dos agentes que as expressam. Essa ação se torna extremamente vigorosa, porque é alimentada pela força de uma reivindicação social e, portanto, justa - pouco importando que o seja, ou não. O resultado disso é que uma força efetivamente indomável é posta em movimento, com o objetivo não mais de invocar proteções gerais, mas de impor comportamentos, estabelecer exigências e, em uma palavra, constranger.

Essas considerações são motivadas pelo debate atual sobre a criação de um tipo penal específico para as condutas que passaram a ser designadas, recentemente, como de "assédio sexual": essas tentativas surgem como manifestação da intolerância e produto do desejo de entregar ao aparelho do Estado competência cada vez mais repressiva, no terreno das relações individuais.

Não é possível vislumbrar, em uma perspectiva estritamente técnica, razões suficientes para a criminalização do assédio sexual, mesmo que não se possa retirar a razão de quem reage a uma prática que se desdobra, entre outras situações, no contexto das relações de emprego, mediante coações e constrangimentos que se baseiam no prevalecimento de cargos e funções. Na verdade, porém, a maior parte das condutas que podem ser compreendidas sob a designação de assédio sexual já estão, com toda a amplitude, previstas na lei penal. A previsão dos tipos penais correspondentes ao constrangimento ilegal, à ameaça, ao atentado violento ao pudor, ao atentado ao pudor mediante fraude, à posse sexual mediante fraude, à sedução, ao estupro, ao rapto violento ou mediante fraude, ao rapto consensual, ao ato obsceno e à corrupção de menores expressa a repressão da lei a toda gama de comportamentos que podem ser assimilados ao assédio sexual, sempre que este constitua uma conduta delituosa.

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O projeto de lei sobre a criminalização do assédio sexual, em tramitação no Congresso Nacional, define o crime como "constranger, por meio de palavras ou gestos, mulher ou homem, com o intuito de obter favorecimento ou vantagem sexual" (assédio verbal) e "empregar meios físicos mediante violência, grave ameaça, fraude ou coação psicológica, para constranger mulher ou homem à prática de atos sexuais" (assédio físico). Essas hipóteses, com todo o rigor, já são correspondidas por alguns dos tipos penais já referidos, entre eles o constrangimento ilegal, que significa "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou fazer o que ela não manda"; ou o crime de ameaça, vale dizer, "ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave". Tipificações penais referentes a condutas mais específicas, como os crimes contra a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude) e os crimes de sedução e corrupção de menores, somam-se a todos demais para consolidar o conjunto de previsões legais que abrange, com toda a certeza, as hipóteses de assédio sexual verbal ou físico, sempre - vale insistir - que essa conduta invada o terreno da delinqüência. O assédio, praticado sem o emprego de qualquer daqueles meios previstos na lei penal, como a ameaça, a coação, o constrangimento, ou a violência, por nenhum motivo pode ser considerado uma conduta delituosa, situando-se, antes disso, no âmbito das relações individuais e dos conflitos que lhes são inerentes.

A criação de um tipo penal reiterativo e coincidente com hipóteses já previstas na lei, por essas razões, é inócua. Não somente isso, é também excessiva e socialmente danosa. Para superar a questão da sua sobreposição aos tipos penais já existentes, a nova criminalização necessita recorrer a tipificações de conduta que invadem terrenos nos quais os conflitos próprios das relações entre as pessoas devem ser resolvidos sem a mediação ou intromissão de juízes, promotores e policiais. É cabível considerar que a reiteração, na lei penal, do que nela já está previsto e reprimido corresponde, de fato, a uma exacerbação da atividade repressiva dos aparelhos públicos; e, também, que a ampliação de toda essa ressonância do assunto parece resultar de um desejo crescente de invasão da esfera de comportamentos individuais com a imposição de constrangimentos.

É necessário que se reflita sobre os processos que têm conduzido muitas pessoas, frente a questões que ora dizem respeito ao combate à opressão em suas diferentes formas, ora não passam de uma inclinação por interferir pelo desejo de interferir, a extremarem as suas exigências particulares por um viés autoritário e policialesco. Tudo isso está relacionado a alguns processos de deformação dos manifestos de vontades populares, que em muitos casos conduzem grupos que são vítimas potenciais de alguma opressão, ou quem em seu nome se pronuncie, a brandirem suas ameaças e exigências de um modo arbitrário. Essas exacerbações são freqüentes em inúmeras formas atuais de manifestação coletiva, como muitas das que ocorrem sob a inspiração do polictical correctness, que trazem a contrapartida de transpor para quem se diz, ou é, de fato, vítima potencial de uma conduta opressiva, o papel de agente de um autoritarismo equivalente ao que visa combater.

Samuel Mac Dowell é advogado.

Legislando contra o assédio

Em recente pesquisa, realizada em doze capitais brasileiras, a análise dos dados aponta que 52% das mulheres que trabalham consideram que já foram assediadas sexualmente, especialmente por homens que na hierarquia das relações de trabalho encontram-se em posição superior à sua.

Sem dúvida, o assédio sexual é um comportamento que, sabemos, existe há muito tempo, embora ainda seja difícil estabelecer mecanismos claros que o reconheçam e o sancionem enquanto uma prática passível de punição.

Isso ocorre, principalmente, porque ao falarmos de assédio sexual, estamos também falando dos valores, da cultura, da sedução, do poder nas relações e, especialmente, dos comportamentos tidos como "normais" nas relações homem/mulher.

Não estamos falando dos comentários e gracejos que podem até ser bem-vindos. Estamos aqui nos referindo a atitudes de exploração e desrespeito para com o sexo feminino que tem no assédio sexual sua expressão mais comum e freqüente. Cabe salientar que o assédio sofrido pelos homens é infinitamente menor, até porque são poucas as mulheres que estão em posição superior.

O assédio se caracteriza como tal, quando é exercido nas relações de trabalho e existe uma hierarquia, na qual um tem o poder de mando sobre o outro.

A Comissão dos Direitos e Liberdades Individuais define o assédio sexual assim: "O assédio sexual consiste num ato de insinuação sexual que atinge o bem-estar de uma mulher ou de um homem, ou que constitui um risco para sua permanência no emprego. Ele pode assumir a forma de proposta ou de insinuações persistentes tanto verbais quanto gestuais."

Outra definição que auxilia no entendimento do significado do assédio sexual, e da necessidade de rompermos com estas formas de relação, diz: "O assédio sexual é um comentário sexual, um gesto, um olhar, palavras sugestivas repetidas e não desejadas ou um contato físico, considerado repreensível, desagradável ou ofensivo e que nos incomoda em nosso trabalho."

Pode ainda ser definido como uma sujeição à prática de exigências sexuais, quando as pessoas em questão estão numa correlação de forças diferentes.

Nossa educação autoritária e machista desvaloriza a mulher, deixando marcas profundas de submissão. Certamente, esta é uma das questões que na maioria das vezes está por trás de uma denúncia não realizada. Para a mulher denunciar o assédio sexual é necessário, antes de mais nada, explicitar e dar voz a todos os mecanismos de humilhação de gênero sofridos no cotidiano.

Esta é uma tarefa mais árdua do que se pode supor, pois ela está diretamente relacionada com a transformação dos valores, e especialmente com a transformação de nossa subjetividade. Transformação esta que exige o rompimento do silêncio, das formas já cristalizadas pela sociedade da visão do que é ser homem e mulher, o rompimento da passividade e da submissão, construindo novas formas de solidariedade entre as mulheres, construindo uma nova forma de se colocar na sociedade com total igualdade de direitos.

Nas CPIs - Comissões Parlamentares de Inquérito - realizadas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo acerca da violência contra a mulher - aí incluído o assédio sexual -, vários depoimentos ratificam esta forma de encarar o assédio sexual. Em muitos depoimentos percebe-se a impotência das mulheres frente a estas questões e também a forma pouco eficaz como vem sendo tratada pelos órgãos componentes.

As mulheres que já sofreram assédio sexual e que denunciaram esta prática, na sua grande maioria foram demitidas por difamação ou afastadas de suas funções.

As que insistiram e entraram com um processo jurídico, depois de muito tempo, reconquistaram o direito a retomar suas antigas funções. Este é um processo demorado e desgastante, fazendo com que muitas mulheres que não dispõem de apoio, solidariedade e um acompanhamento jurídico adequado, desistam na metade do processo. Isso sem contar o medo de perder seu emprego e com ele pôr em risco a sua sobrevivência e também a de sua família. Outro aspecto, que muitas vezes impede a mulher de tomar uma atitude frente ao assédio sexual e realizar a denúncia, está vinculado à humilhação a que está exposta, tendo ainda que ouvir comentários do tipo: "Certamente foi ela a culpada, deve ter provocado. Provavelmente estava usando roupas inadequadas para a ocasião, muito justas, transparentes ou provocantes".

As relações de trabalho explicitam as relações sociais e as discriminações de gênero vividas pela mulher em seu cotidiano.

No caso da mulher, o assédio sexual expõe uma ferida que tem um significado muito mais amplo. Expõe a divisão sexual do trabalho e a divisão dos papéis sociais e seus mecanismos constantes de dominação. Precisamos ir além dos espaços já conquistados como, por exemplo, as delegacias de mulheres e os conselhos da condição feminina. É urgente que as políticas incorporem a visão de gênero para que possa diminuir a distância entre os direitos de homens e mulheres e que possamos acabar com a discriminação e a violência contra a mulher.

O assédio sexual raramente implica o uso da força física. Geralmente destitui a pessoa de seus direitos enquanto cidadão e a priva de sua autonomia. É destituir o indivíduo do que lhe é mais íntimo e singular, é roubar-lhe o que lhe é mais caro: sua liberdade e dignidade. À vezes até o respeito próprio.

Os sindicatos, partidos e grupos organizados da sociedade têm um importante papel para a transformação das relações para além das propostas e discursos.

Construir uma sociedade justa e ética, com direitos iguais, passa necessariamente pelo enfrentamento destas questões com coragem para responsabilizar atitudes tão inadequadas e violentas quanto o assédio sexual. Através de um projeto de lei apresentado conjuntamente com a deputada federal Maria Laura (PT-DF), proponho a penalização do assediador, caracterizando e tratando o assédio sexual como crime. Acredito ser este mais um passo importante para que muitas mulheres venham a denunciar o assédio sexual rompendo com o silêncio e transformando as relações entre homens e mulheres.

Marta Suplicy é psicanalista e deputada federal pelo PT-SP.

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