EM DEBATE

Massacre na China, conflitos nacionais, diálogo governo/grevistas, críticas abertas ao partido único na URSS.  A "solução" parlamentar  na Polônia. Para onde vai o socialismo?

O termo Comunismo estaria falido (como o termo Social-Democracia em 1917) e deveria ser abandonado pelo movimento de esquerda?

O Socialismo admite Democracia ou a Democracia tende a quebrar o Socialismo?

O Marxismo foi superado?

Como fica a organização internacional do movimento Socialista?

Um mundo de ponta cabeça

Crise mortal ou reconstrução?

O crepúsculo das burocracias

Um mundo de ponta cabeça

É verdade que o monolitismo stalinista já era coisa do passado: de fato, logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve a excomunhão da Iugoslávia, que sofreu um mau momento, sendo ameaçada de invasão por tropas soviéticas e/ou pela subversão interna dirigida pelos aliados da União Soviética no país. Mas pouca atenção se prestou ao "caso" iugoslavo: era como se fosse uma exceção confirmando a regra.

Mais tarde, no entanto, as divergências sino-soviéticas, que desembocariam num cisma ideológico e em enfrentamentos armados, abalaram os alicerces de um sistema que se julgava uno e indivisível. O mundo socialista parecia se fragmentar: polêmica entre Cuba e China, diatribes albanesas contra a URSS, conflitos armados entro chineses e vietnamitas, invasão da Tchecoslováquia pelos blindados do Pacto de Varsóvia, combates entre vietnamitas e cambojanos. Da eternidade, Marx era tentado a reaparecer para apaziguar os conflitos com um novo chamamento: "Proletários de todo o mundo, desuni-vos!".

Acostumamo-nos a conviver (sem entender muito bem) com as querelas e conflitos entre Estados socialistas. Eram irmãos brigando entre si; o mundo capitalista seguia sendo o "inimigo principal". Não se podia perder muito tempo pensando e discutindo as contradições "secundárias", deixadas em segundo plano. Pensaríamos nelas depois da vitória da "nossa revolução". Além disso, falar no assunto poderia dar "armas ao inimigo"; melhor silenciar, mesmo que em alguns momentos os problemas latejassem dolorosamente: quem não achou difícil "aceitar" os tanques russos em Praga?

A novidade atual, portanto, não se refere aos conflitos entre Estados socialistas, que por sinal, e paradoxalmente, passam por uma fase de desativação - basta conferir as negociações diplomáticas entre URSS/China (visita de Gorbatchev a Pequim em maio de 1989), China/Vietnã e as conversações de paz sobre o Camboja, que se desenrolam em Paris.

Os conflitos agora explodem dentro dos Estados e sociedades socialistas. Na China, o movimento estudantil toma as ruas, reivindica a democratização do Estado, ganha a aliança de setores expressivos da população de Pequim (trabalhadores da função pública, operários, jornalistas etc.), estende-se pelas principais cidades do país, quebra o monopólio da informação, desfaz movimentos repressivos com o uso da persuasão, desafia, em suma, o poder, para terminar massacrado em plena praça da Paz Celestial.

Na URSS, a política de reconstrução econômica (perestroika) e de transparência na gestão dos negócios públicos (glasnost) atrai as atenções de todo o mundo, mas evidencia fissuras que se julgavam (pelo menos segundo o discurso oficial) abolidas na sociedade. As nações não-russas parecem acordar da letargia em que se encontravam e reivindicam cada vez mais agressivamente seus direitos a uma cultura própria, a um sistema educacional específico, a maiores margens de autodeterminação. Alguns já falam em soberania, querem retirar dos arquivos empoeirados o grande lema mobilizador dos povos não-russos em 1917: o direito de autodeterminação, ou seja, a prerrogativa de separação que os não-russos teriam na federação soviética. Porém, os problemas não se limitam às várias "questões nacionais". No interior de cada república soviética agravam-se as contradições sociais. A recente greve de centenas de milhares de mineiros é uma indicação clara da insatisfação social frente às desigualdades e às restrições à liberdade de manifestação e organização. As centenas de associações autônomas que surgem em todo o país, as contradições estampadas nas páginas dos principais jornais e revistas, as votações maciças em candidatos críticos ao regime (mesmo que formalmente ainda vinculados ao Partido Comunista) e a formação de um esboço de oposição parlamentar são expressões políticas de um fenômeno de fundo: o questionamento das bases do socialismo realmente existente na URSS.

Na Europa chamada do "Leste" os problemas aparecem sob formas ainda mais contundentes. Na Polônia, as eleições recentes esmagaram literalmente o Partido Comunista Polonês, que só obteve cadeiras em função dos casuísmos que determinaram a organização do pleito. De fato, onde houve oportunidade de livre escolha, os poloneses escolheram em massa os candidatos apresentados pelo Solidariedade. No momento em que escrevemos este artigo, o general-presidente da Polônia (vinculado ao Partido Comunista) acaba de convocar lideranças do Solidariedade para dirigir a constituição de um novo governo para o país. Um fato inédito: pela primeira vez, desde a primeira vitória de uma revolução socialista (em 1917, na Rússia), os comunistas, pacificamente, parecem abdicar, do governo, entregando-o, ao menos parcialmente (as Forças Armadas e a polícia permanecerão sob controle comunista), a seus adversários políticos.

O mesmo processo está em curso na Hungria, onde já se legaliza o pluripartidarismo e o próprio Partido Comunista húngaro passa por tal processo de transformação interna que, se as coisas continuam evoluindo dessa forma, será muito difícil distingui-lo de um partido social-democrata europeu.

Diante deste quadro, de pouco adianta proferir anátemas e excomunhões ou se refugiar em posições dogmáticas, como preferiu fazer o líder da Revolução cubana, Fidel Castro, que, em recente discurso, sugeriu em termos apocalípticos a desagregação do sistema socialista mundial, garantindo todavia a fidelidade dos cubanos (que não foram consultados a respeito, nem têm liberdade para se manifestar sobre o assunto) ao marxismo-leninismo. Também não seria mais aceitável continuar fingindo que a crise geral do socialismo não nos diz respeito ou esgrimir argumentos de realpolitik do tipo: "Não hostilizemos nossos eventuais aliados na luta contra o capitalismo".

Não nos iludamos: a fábula que se conta hoje no mundo socialista diz respeito a nós. O que está em jogo é nada mais nada menos que o futuro de nosso projeto político de construir no Brasil um socialismo democrático. Se não decifrarmos esta esfinge em tempo, ela certamente nos devorará. Pior é que, a rigor, mesmo que a decifremos, talvez não estejamos em condições de escapar ao tipo de crise que ronda hoje a experiência socialista. Mas pelo menos estaremos mais bem preparados para enfrentá-la, quando chegar - se chegar - a nossa hora.

A compreensão dos problemas que as sociedades socialistas enfrentam hoje passa, necessariamente, pela análise crítica do momento chamado de "tomada do poder", em que as revoluções se instauraram, em outras palavras, quando as antigas classes dominantes, identificadas com o regime capitalista, foram derrotadas.

Ora, um exame, mesmo sumário, dos processos revolucionários nos revela que as revoluções ditas socialistas não se tomaram vitoriosas em torno de lutas sociais "pelo socialismo". Não se trata aqui de comentar a ausência do nome "socialista" ou "socialismo", mas de evidenciar o fato de que não estavam em jogo, para a consciência dos amplos movimentos sociais que tornaram possível a vitória da revolução, os pressupostos e os objetivos ou mesmo o significado histórico de um processo revolucionário socialista.

Na Rússia czarista - sociedade na qual viviam do trabalho na terra cerca de oitenta por cento da população -, os camponeses lutaram pela distribuição eqüitativa e pela posse familiar da terra. Articulados por suas organizações de base os comitês de aldeia - e por seus partidos políticos, principalmente o Partido Socialista Revolucionário (talvez impropriamente chamado de partido, pois se tratava na verdade de uma confederação de grupos políticos), invadiram propriedades, queimaram mansões, mataram proprietários e capatazes e enfrentaram duros combates no tempo da guerra civil, inclusive organizando forças armadas próprias (a experiência macknovista, na Ucrânia, ainda tão mal conhecida, infelizmente) autônomas em relação ao Exército Vermelho dirigido por Trotsky. Ou seja, fizeram a revolução perseguindo objetivos próprios e bem delimitados.

Os soldados e marinheiros constituíram outro componente fundamental do processo revolucionário. Seu movimento não só desagregou a base armada de sustentação do antigo regime mas também forneceria os quadros para o exército revolucionário que iria se formar em seguida para defender a revolução vitoriosa. Quase todos originários do campo lutaram pensando na terra que iria ser distribuída pela revolução e desejando, em termos imediatos, a paz. O governo burguês seria varrido do mapa por não ter sido sensível a essas reivindicações. Os povos não-russos, por sua vez, lutavam por liberdade - queriam se emancipar da opressão russa e a questão nacional ocupava um lugar primordial em seus horizontes - e também pela questão da terra, na medida em que eram fundamentalmente agrários.

O proletariado industrial, mais por sua localização estratégica, nos centros político-administrativos da sociedade, do que por seu peso numérico, iria desempenhar um papel igualmente decisivo. Mas é preciso descartar as avaliações mitológicas que apresentam a Revolução russa como revolução proletária. Na verdade, ela tornou-se possível em função de uma aliança de movimentos sociais objetivamente convergentes (a coordenação maquiavélica de grandes processos de massa pertence ao campo especulativo da polícia política, mas está longe de corresponder à realidade das lutas sociais). É certo que seções do proletariado russo, trabalhadas pelos partidos socialistas (bolcheviques, mencheviques etc.), tinham a revolução socialista e o socialismo em seu horizonte. Mas o estudo das reivindicações apresentadas pelos soviets (conselhos) operários revela que essa temática não ocupava lugar central - e, freqüentemente, não ocupava lugar nenhum - nas preocupações. Além disso, a classe operária russa era permeada de correntes contraditórias (socialistas e anarquistas) e organizações alternativas (soviets, comitês de fábrica, sindicatos) que estavam longe de ter uma concepção semelhante do que seria exatamente uma revolução socialista.

É claro que a ação simultânea das várias forças sociais revolucionárias (camponeses, soldados, povos não-russos e proletariado industrial) constitui um campo privilegiado de influências recíprocas. Assim, a ação do proletariado, devido, como já se disse, à sua localização estratégica, produziria impacto desproporcional ao seu peso numérico. Apesar disso, pertence ao campo do ilusionismo a perspectiva de querer apresentar a Revolução russa como socialista no momento da tomada do poder.

Mesmo assim, o processo acabou sendo dirigido por um partido socialista: os bolcheviques. O fato deveu-se não à amplitude da influência do pensamento socialista ou de suas propostas específicas mas, como de resto é bem conhecido, à capacidade que tiveram os bolcheviques de assumir, na prática, todas as reivindicações dos movimentos sociais, inclusive, quando foi o caso, à custa de suas próprias propostas anteriores (veja-se a polêmica sobre a questão agrária: os bolcheviques assumiriam as propostas do I Congresso Camponês, realizado em maio de 1917, embora contrariassem seu programa oficial).

Em resumo, a revolução tornou-se vitoriosa, sob direção de um partido socialista, como base num programa de reivindicações que assumiu caráter revolucionário pela intransigência dos governos burgueses e pelas características da luta de classes na Rússia numa conjuntura determinada. Mas não era um programa socialista.

Um processo análogo, e ainda mais marcante, ocorreria em outras revoluções que se tornaram socialistas. Na China, lutou-se contra o inimigo estrangeiro - as forças de ocupação japonesas.

A questão nacional assumiu o primeiro plano. Os camponeses chineses (a Revolução chinesa foi, como se sabe, uma guerra camponesa) queriam ainda a distribuição da terra e a paz, pois o país estava em conflagração permanente desde os anos 20. A sutil referência de Mao Tsetung ao "reino da paz e da harmonia" (datong), formulada em seu discurso na praça da Paz Celestial, em 1º de outubro de 1949, recupera muito mais a tradição "comunista" dos movimentos camponeses chineses do que as perspectivas do socialismo moderno marxista. A classe operária apenas aplaudiu a entrada do Exército Popular de Libertação nas grandes cidades. Na verdade, não conseguiu se recuperar das colossais sangrias provocadas pelas derrotas dos anos 20 (Xangai e Cantão, entre outras).

Na China também, como na Rússia, um núcleo de vanguarda marxista-leninista - o estado-maior do Exército Popular de Libertação - assumiria a direção do processo revolucionário, na medida em que foi sensível às especificidades do processo social e às reivindicações dos camponeses.

A Europa do Leste apresenta um quadro mais complexo. É impossível examiná-la como um bloco. Em certos países houve guerrilhas fortemente implantadas (Iugoslávia, Bulgária, Albânia), que teriam, inclusive, papel decisivo na libertação do território das mãos dos nazistas (caso iugoslavo). Em outros, as tradições socialistas e o papel da classe operária desempenhariam certo papel (Tchecoslováquia). Mas seria sumamente difícil imaginar a vitória revolucionária nesses países, se se fizer a abstração da presença do Exército soviético dentro de suas fronteiras. A questão nacional foi, mais uma vez, decisiva na mobilização das vontades. Num momento seguinte, a sombra do Exército soviético protegeria o devir socialista dessas revoluções.

Em Cuba, a Revolução tornou-se vitoriosa em torno de um programa nacional-democrático. A realização desse programa chocou-se com a intransigência das classes dominantes locais e, principalmente, com a arrogância do Estado americano. Em meio a toda sorte de boicotes, com direito inclusive a uma invasão contra-revolucionária articulada em Miami, a Revolução cubana tornou-se socialista. A boa nova foi anunciada num discurso de Fidel, sem maior preparação prévia. Em Cuba, a própria vanguarda do processo não era marxista-leninista em seu conjunto. Tornou-se adepta da doutrina ao longo do tempo, até a fundação do Partido Comunista Cubano, em outubro de 1965, quase sete anos depois da vitória da revolução.

Considerando os limites de nossa análise comparativa, destacaríamos os seguintes aspectos comuns aos processos revolucionários socialistas: a revolução torna-se vitoriosa em virtude da convergência de movimentos sociais objetivos, cujas reivindicações são negligenciadas ou simplesmente recusadas pelas várias modalidades de "antigos regimes", que são varridos do mapa político, pagando o preço de sua intransigência. Uma vanguarda marxista-leninista (nem sempre sob a forma de partido), ou que se torna marxista-leninista (caso cubano), empolga a direção do processo porque assume as bandeiras dos movimentos sociais. Ou seja, a revolução instaura-se como produto de uma aliança de classes, em torno de um programa delimitado. Mas a realização do programa implica, dadas, as circunstâncias em que se processa a luta de classes, a destruição das antigas classes dominantes. A consolidação da revolução vitoriosa se faz simultaneamente ao aparecimento de uma contradição imprevista: na base da sociedade, os movimentos sociais digerem suas vitórias conquistadas na luta; na cúpula, uma vanguarda estruturada alimenta um projeto histórico - a construção do socialismo. Ora, esse projeto não passou ainda - nem passará - pelo consenso das forças sociais que fizeram a revolução. Estamos diante das raízes históricas da crise geral por que passam as sociedades socialistas atuais.

As vanguardas marxistas-leninistas têm encaminhado com determinação a construção do projeto histórico com o qual se consideram comprometidas. O modelo soviético, devidamente redefinido segundo condições de espaço e tempo, fez escola: estatização da economia, planejamento centralizado, ênfase no desenvolvimento da indústria pesada, ou no cumprimento de metas que freqüentemente subestimam os interesses imediatos da população, coletivização da terra, liquidação das liberdades políticas, monopólio da informação e da política pelo partido de vanguarda marxista-leninista, que dirige a sociedade apoiado numa vasta rede de organizações de "massa" (sindicatos, entidades de mulheres, jovens, intelectuais etc.)

Um projeto desse tipo não poderia ser submetido à crítica livre, muito menos a eleições periódicas. Pressupunha certo período, pelo menos, de tutela política. Os marxistas-leninistas não recuariam diante do desafio - sentiam-se identificados com os interesses históricos do proletariado. Se fosse o caso, estavam dispostos a impor ao proletariado, em nome de seus próprios interesses (do proletariado), a construção do socialismo.

Naturalmente, houve revoltas populares contra a realização de semelhante projeto. Os campos de trabalho forçado, a importância da polícia política e o emprego maciço da censura atestam a existência de lutas de resistência, ainda mal conhecidas, mas que as periódicas "aberturas" ajudam a evidenciar.

Os países socialistas conheceram, apesar dos pesares, um processo notável de modernização. Seria um contra-senso imaginar, como se comprazem os ideólogos do capitalismo, que tudo foi conquistado exclusivamente pela força da repressão.

Muitos setores da população foram efetivamente ganhos política e ideologicamente. Razões não faltaram: o socialismo implementou uma série de reformas sociais básicas (educação e saúde gratuitas, em todos os níveis, para todos; melhorias significativas nos transportes públicos; habitação precária, porém barata; comida, muitas vezes racionada, mas não fome; emprego para a grande maioria - em alguns países, para todos - etc.) chamadas, justamente, de "conquistas revolucionárias". Além disso, as ameaças de agressão externa (às vezes, exageradas conscientemente, para provocar o pânico; muitas vezes, bastante reais, inclusive desdobrando-se em invasões efetivas) serviram para coesionar o povo em torno da defesa da nação. Regimes capitalistas têm sabido, ao longo do tempo, servir-se do patriotismo e do nacionalismo. Neste terreno já havia, portanto, uma escola na qual o socialismo aprendeu. Um outro aspecto não pode ser subestimado: a mobilização das pessoas (particularmente os jovens e as mulheres foram sensíveis a isso) com vistas à construção de uma nova sociedade, justa, de um homem novo, sem os vícios e defeitos das sociedades baseadas na exploração. Finalmente, não nos esqueçamos da aspiração à paz e à ordem que é normal suceder aos períodos revolucionários turbulentos. A autoridade beneficia-se desse sentimento, e ela era encarnada nas sociedades nas quais a revolução triunfara pelo Estado socialista.

Os países socialistas cresceram, modernizaram-se. De pouco vale compará-los com as sociedades capitalistas avançadas. O marco principal de comparação encontra-se no próprio passado dessas sociedades, quando vigorava a dominação das antigas classes proprietárias.

Entretanto, estas considerações são válidas sobretudo para uma primeira etapa de consolidação das revoluções vitoriosas. A partir de certo ponto, qual a eficácia política de se falar a respeito de fatos que já entraram no cotidiano das pessoas? De fatos que são considerados direitos "naturais"? Os cidadãos dos países socialistas tendem a imaginar que ter emprego, comer, vestir, assistência médica e educação gratuitas são aquisições consolidadas. A revolução já não se legitima por garantir estas conquistas. Além disso, a força militar do bloco socialista e da URSS, em particular, torna cada dia mais problemática a utilização do "espantalho" da ameaça da agressão externa. O mesmo se pode dizer dos lemas relativos ao "homem novo": desgastaram-se com o tempo. O próprio Mao Tsetung reconhecia no fim de sua vida, entre melancólico e cínico, que, na melhor das hipóteses, o homem novo surgiria talvez em algo em torno de trezentos anos. Não chega a ser exatamente exaltante nem eficaz para uma política de mobilização de "massas".

A cada vez maior complexidade das sociedades socialistas modernizadas, a produção de uma "massa crítica" em termos científicos e intelectuais (via sistema educacional) e a própria pujança relativa do desenvolvimento econômico começam a colocar em questão o modelo anterior. O processo não pode mais ser garantido, senão pela conquista da hegemonia: esta é a mensagem essencial de Gorbatchev. E por mais que se fale, como Fidel, que a instabilidade produzida pela perestroika/glasnost resultará na desagregação e na guerra civil, o fato é que, paradoxalmente, essa política é a única alternativa de que dispõe o poder socialista para evitar a estagnação, a opressão cada vez mais insuportável, porque ilegítima, e um lento e seguro processo de decomposição de amplitude e conseqüências imprevisíveis.

Reformar ou estagnar/perecer, este é o dilema irreversível do socialismo realmente existente. Não se trata de mera retórica: é preciso efetivar uma verdadeira revolução na revolução.

Será possível?

Passemos em revista os desafios: gargalos econômicos permanentes (produtividade baixa, absenteísmo, desabastecimento crônico de bens de consumo correntes), estrutura a esclerosada, corrupção endêmica, falta de representação e das lideranças sindicais e políticas "oficiais"/crise de representação. Questionamento da ideologia dominante: ninguém acredita no discurso oficial, nem mesmo as autoridades. O "cimento" ideológico se liquefaz.

Não se trata apenas de reformular a política econômica - este foi o grande equívoco de Deng Xiaoping e do Partido Comunista Chinês - mas de formular alternativas para problemas qualitativamente mais complexos.

As sociedades socialistas precisam escolher um novo modelo econômico, que passe pela crítica dos alicerces do atual: estatização, plano centralizado, dinossauros "comedores de aço" (leia-se: complexo industrial-militar socialista). A democratização do poder político é o horizonte em que essa reorientação de rumos pode se viabilizar, o que, por sua vez, passa pelo reconhecimento da pluralidade de opções ideológicas.

Fácil de dizer. Mas haverá condições para atingir esses objetivos? Poderão ser alcançados através de uma revolução pelo alto? Até quando?

A dosagem dos elementos é extremamente complicada. Na China, os comunistas tentaram reeditar a filosofia da NEP leninista dos anos 20: abrir a economia e manter fechada a estrutura política. Lenin já advertira: "No momento da 'retirada', muita atenção: qualquer descontrole pode resultar em pânico, e a retirada vira debandada". Na China, virou massacre...

Na Polônia, os comunistas já perderam o governo; na Hungria, preparam-se para perdê-lo. Na URSS, abrem-se as brechas: os povos não-russos não agüentam mais a opressão. A questão agrária segue sendo o ponto sensível: até quando a perestroika/glasnost resistirá às filas? As greves já começaram a acontecer: quando surgirá o Solidariedade russo?

As perspectivas não são nada claras.

As organizações alternativas aos PCs conseguirão formular alternativas que empolguem a sociedade? Os PCs se disporão a ceder ou dividir o poder, de fato? Há alguns anos seria implausível pensar nessa hipótese. Os acontecimentos na China confirmam a implausibilidade. Mas na Hungria e na Polônia surgem possibilidades novas. Qual seu fôlego? Na URSS, o Partido Comunista já desistiu de controlar o processo de multiplicação de sociedades autônomas em relação ao Estado. Mas todas ainda prestam tributo ao monopólio da política pelo PCUS. Até quando?

As coisas se complicam quando passamos a analisar as forças sociais que oferecem resistência às mudanças. É muito simplista a idéia de que resiste apenas um grupo minoritário de burocratas/corruptos/autoritários, isolados das "massas". Certamente, estes defenderão com unhas e dentes seus privilégios. Mas o sistema de vantagens sociais (as nossas mordomias) vai muito mais além de um pequeno círculo de dirigentes encastelados e esclerosados no poder. Há, de fato, amplos "coletivos" de operários e empregados ganhando salários incompatíveis com seu nível de produtividade. Empresas cujos produtos são invendáveis pela sua má qualidade continuam existindo graças à boa vontade da sociedade. Outros setores, por estarem vinculados aos dinossauros "comedores de aço", considerados estratégicos, recebem vantagens que deverão desaparecer. E os subsídios setoriais que beneficiam alguns à custa de todos? E os quadros das Forças Armadas e da polícia política? E os guardas dos campos de concentração? Claro, políticas de reconversão já estão sendo estudadas e implementadas. Mas os prejuízos serão incontornáveis, pelo menos numa primeira fase. Quantos se disporão a assumi-los de bom grado?

O socialismo está em crise.

Bendita crise, se soubermos compreendê-la em seu processo histórico, recusando as excomunhões fáceis e os bodes expiatórios, que só desarmam a reflexão crítica e preparam a repetição das tragédias.

Não há receitas à vista. Mas talvez já possamos extrair uma lição maior a necessidade de recuperar o socialismo como um sistema baseado simultaneamente na igualdade e na liberdade. E, no mesmo movimento, reconhecer sempre que, sob nenhuma hipótese, devemos formular projetos para os trabalhadores que não passem pela expressão de sua vontade e de sua consciência.

Daniel Aarão Reis Filho, historiador e autor de vários livros sobre as revoluções chinesa e russa e sobre a esquerda.

Crise mortal ou reconstrução?

O termo "crise" indica, segundo o dicionário, um agravamento acentuado de condições diferentes daquelas normais, um processo de mudança rápida. Trata-se, pois, de uma palavra aplicável ao que está acontecendo no mundo do chamado socialismo real. O caso da União Soviética é paradigmático, pois se trata do mais antigo dos países socialistas e o mais poderoso, o mais desenvolvido. Lá estão em crise o planejamento econômico burocrático e o modelo de partido único absoluto - uma crise econômica e política, estendendo-se para os planos cultural, moral, científico etc.

O modelo econômico, adotado desde os anos 30, terminou por desembocar na estagnação do crescimento ao final da década de 70 e começo da década 80. A economia soviética baixou seu crescimento a uma taxa de cerca de 3% anuais, segundo as estatísticas oficiais. Baixou mesmo quase a zero, conforme asseguram os cálculos de um economista tão conceituado quanto Abel Aganbeguian. Com a chegada de Gorbatchev à secretaria-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e o anúncio da perestroika, colocou-se em questão o planejamento econômico centralizado, minucioso e extremamente burocrático, que se consolidou no curso de quatro decênios. O que se pretende hoje é a manutenção do planejamento central em setores básicos - como o de transportes, comunicações, matérias-primas fundamentais, eletricidade e combustível. Portanto, um planejamento de caráter estratégico - mas acoplado à autonomia geral das empresas, dos coletivos de trabalhadores, dos agricultores e da própria iniciativa individual.

Como é que esta autonomia pode funcionar? Não existe outra saída, pelo visto, senão por meio do mercado. Haverá (e já está ocorrendo) uma ampliação das relações monetário-mercantis. Os bens de produção - até há pouco, fora do giro comercial - passam a ser vendidos no atacado, e as empresas se relacionam diretamente entre si, ao invés de fazê-lo por meio dos ministérios de Moscou. Neste mercado, os agentes fundamentais serão agentes sociais, ou seja, empresas de propriedade social, como fábricas, fazendas agrícolas e cooperativas de indivíduos, que voluntariamente se reúnem para oferecer serviços à população, ou famílias de agricultores que produzem por conta própria. A propriedade social não será afetada. Pelo menos, esta é a intenção declarada. E não se pretende admitir a contratação privada do trabalho assalariado na URSS, o que já vem ocorrendo na Hungria e na Polônia. As forças do mercado não terão plena liberdade para chegar às suas últimas conseqüências. Será um mercado socialista planejado e regulado, conforme o define o economista Leonid Albakin.

Mas ele pressupõe desigualdades, a meu ver.

Em qualquer mercado, nem todos ganham a mesma coisa - e, às vezes, alguns perdem. A desigualdade já é prevista, pois se trata do socialismo e não do comunismo. O socialismo, conforme tese de Marx, é uma etapa de transição para o comunismo. Como tal, possuirá elementos capitalistas até se extinguir. Nesse sentido, trata-se de socialismo com elementos do direito burguês, entre os quais o do pagamento segundo o trabalho. Em outras palavras: pagamento desigual por trabalhos que também são desiguais.

Marx não previu, é verdade, que o mercado se mantivesse durante tanto tempo. Na Crítica do Programa de Gotha, por exemplo, ele imaginava que, já no socialismo, o dinheiro e o mercado desapareceriam. As pessoas trocariam bônus (que receberiam pela quantidade de trabalho) por produtos, diretamente. Isso não está se confirmando: não há outra maneira, por enquanto, de fazer com que a economia funcione, mesmo em regime socialista, sem manter o mercado e o dinheiro. A questão é como controlá-los. Com o mercado, pode-se estimular a economia, a produtividade, a introdução de tecnologias novas, o oferecimento de uma variedade maior de bens de consumo (de qualidade cada vez melhor). Ao mesmo tempo, e de outro lado, o controle do Estado pode impedir que as desigualdades cheguem à escala das desigualdades capitalistas, como está acontecendo, em alguns casos, na Hungria, na Polônia e na Iugoslávia mais ainda. O descontrole das relações de mercado pôde ser observado também na China. O país obteve excelentes resultados quando saiu da camisa-de-força do planejamento uniformizador da época de Mao Tsetung: conseguiu aumentar consideravelmente a produção agrícola e industrial e avançou na modernização da economia. Simultaneamente, porém, aumentaram as desigualdades. O mercado descontrolado gerou carência de certos produtos e matérias-primas, e, em conseqüência, vieram a especulação e a corrupção. Tais deformações explicam, em parte, os recentes protestos da população chinesa, que culminaram no massacre na praça da Paz Celestial. Em última instância, pode-se dizer que está em causa hoje, em todo o mundo socialista, a tese da possibilidade do socialismo num só país. Pode-se afirmar que é uma tese ainda não refutada, nem demonstrada. A crise da passagem de um a outro modelo, as dificuldades profundas dessa passagem, muito observáveis na URSS, põem em causa se realmente é possível construir o socialismo em um só país. A prática dará a sentença definitiva.

É neste quadro que precisamos encarar a discussão econômica, que se completa com a discussão política da democracia dentro do socialismo. O que está em crise - e ainda tomando a URSS como exemplo, como caso paradigmático - é o modelo vigente há tantos anos do partido único fundido com o Estado gigante. Temos um só partido dirigente que absorve as funções do Estado - que é gigantesco porque, além das atribuições políticas e administrativas próprias de qualquer Estado, tem o comando estrito de toda a economia. Este modelo entrou em pane. É o modelo stalinista, implantado desde o final dos anos 20 e sobretudo nos 30, resultando no maior aparelho burocrático do mundo. São 18 milhões de pessoas mantidas fora da produção. Isso não só é muito caro, como asfixia a iniciativa das bases. Foi este aparelho que gerou os chamados "Projetos do Século", agora denunciados pela imprensa soviética. Projetos descomunais, como os desvios de rios, que atentam contra a ecologia, a exemplo do esvaziamento do mar de Aral ou da salinização do lago Baikal, a maior reserva de água potável no mundo. Enfim, planos que conduzem a desastres ecológicos como o que se viu em Chernobyll. Outra conseqüência inevitável é o sufocamento da vida cultural em todos os aspectos, o atraso científico e o atraso tecnológico. No campo das ciências sociais nem se fala. Estas foram reduzidas a um monótono modelo falsamente dito materialista-histórico, na verdade, um modelo do mais baixo nível teórico.

Apesar disso, é evidente que, na URSS, as práticas democráticas estão agora se firmando e ampliando. Isso é inegável. Está caindo por terra o famoso paradoxo de Norberto Bobbio, segundo o qual nenhum país democrático chegaria ao socialismo e nenhum país socialista chegaria à democracia. Assistimos à chegada de países socialistas à democracia. O Soviet Supremo, recém-eleito (ainda por métodos em parte equivalentes ao que, aqui no Brasil, chamamos de biônicos, mas, em todo caso, eleito pela primeira vez com pluralidade de candidatos e liberdade de discussão), está se convertendo no que ele deve ser: um centro do poder. Hoje, quando há questões graves que exigem solução imediata, não se espera a reunião do Bureau Político, órgão do Partido Comunista. Logo se reúne o Soviet Supremo e as discussões se travam em plenário. O Estado, pelo menos no nível das cúpulas, tanto na URSS como nas Repúblicas, está se desprendendo dos organismos partidários e funcionando como deve ser, como um Estado de direito - porque esta é também uma finalidade da democratização soviética. Reclamam-se uma nova Constituição e um novo processo eleitoral, que elimine as restrições e os privilégios antidemocráticos das últimas eleições. Sobretudo, o privilégio do partido único. Pode-se observar também a democratização em outros planos. No da imprensa, para começar. Quem lê as publicações soviéticas percebe uma diferença enorme com relação à chatice cinzenta que existia ainda há poucos anos. Hoje, os órgãos de imprensa criticam autoridades e procedimentos estatais em todos os escalões. O mesmo se pode notar na literatura, nas artes plásticas, no teatro.

Indiscutivelmente, o processo de democratização está sujeito a ventos e tempestades. As reformas econômicas, que concorrem para sustentá-lo, ainda não produziram resultados visíveis. Elas estão melhorando o desempenho da economia, é certo, mas ainda não à altura reclamada pelas necessidades da população, reprimidas há décadas. Escasseiam bens de consumo essencial e habitações, enquanto os serviços de saúde, deteriorados a ponto de aumentar consideravelmente a mortalidade infantil, ainda não se recuperaram.

A lentidão das reformas econômicas vem sendo agravada pelos conflitos nacionais e interétnicos. Vale lembrar que a URSS tem mais de cem etnias diferentes, algumas das quais sofreram verdadeiras barbaridades no tempo de Stalin: transferência maciça de centenas de milhares de pessoas de um lugar para outro, muito distante e desabitado (em geral, a Sibéria); dispersão de nacionalidades como os tártaros da Criméia, os alemães do Volga, e outras, a um custo de dezenas de milhares de mortos etc. Tudo está explodindo agora. O conflito dos armênios com os azerbeidjanos, os enfrentamentos na Geórgia e no Usbequistâo, a reivindicação de verdadeira autonomia e mesmo de independência dos países bálticos - tantos problemas requerem agora soluções políticas através da discussão, da persuasão, de acordos, e não mais, como antes, de decretos aplicados graças à força bruta.

A recente greve dos mineiros de carvão deu mostras do alcance das reformas. Trezentos mil mineiros da Sibéria, da Ucrânia e de outras regiões paralisaram o trabalho - não através dos sindicatos oficiais, que ainda são apêndices do Estado, mas organizados por comitês constituídos de baixo para cima. Um fenômeno completamente novo na história da URSS desde os anos 20. Naturalmente, a greve deflagrou uma situação preocupante, muito séria, mas foi resolvida num processo de consenso, e não à custa da força repressiva. Os mineiros, que pleiteavam melhor abastecimento, obtiveram as suas reivindicações. Conquistaram também a autogestão das suas empresas, com o direito de vender diretamente no comércio internacional o que exceder a quota de venda obrigatória ao Estado. Uma greve de dez dias, que ameaçou o abastecimento de carvão, e tudo foi resolvido da maneira mais democrática que se possa exigir. Mas a lentidão na implementação das reformas econômicas constitui grave ameaça ao êxito da perestroika.

Façamos também rápida avaliação de alguns outros países do socialismo real. O processo democrático também avançou na Polônia. O sindicato Solidariedade se tornou um partido político, venceu as últimas eleições e constituiu o novo governo. Mas por que alcançou a vitória? Porque o Partido Comunista, na Polônia, tem um passado que a grande maioria da população repudia: fracassou na administração econômica e já reprimiu várias vezes os trabalhadores, com violência homicida, como no massacre de Poznan em 1956, como em 1970 e em 1979. Acrescente-se o golpe militar de 1981, com a prisão dos militantes do Solidariedade. Esse passado repressivo - somado ao pecado original de que o socialismo na Polônia não veio de um processo revolucionário endógeno, porém foi imposto pelas tropas soviéticas de ocupação em conformidade com o modelo stalinista - fomenta poderosas tendências anti-socialistas na Polônia. Não se pode desligar disso a influência imensa do catolicismo. Sabe-se que o catolicismo não é homogêneo, haja vista a própria experiência do Brasil e de outros países da América Latina. Mas o catolicismo polonês tem um componente reacionário fortíssimo. A influência do papa João Paulo II sobre o líder Lech Walesa é conhecida. Enfim, tendências pró-capitalismo atuam livremente na Polônia. Como este processo não está resolvido, a reversão ao capitalismo não deixa de ser uma das possibilidades. Embora o Solidariedade tenha também correntes pró-socialismo, como a representada pelos deputados Jacek Kuron e Adam Michnik. Particularmente, espero que a classe operária polonesa não se deixe desorientar e conquiste a democracia sem abrir mão do socialismo. Ela pode fazê-lo através do Solidariedade e de outras organizações. Pode construir o socialismo, não segundo o falido modelo stalinista, mas segundo o modelo adequado às características da Polônia.

Fatos semelhantes, embora não tão graves, ocorrem na Hungria. Também ali o Partido Comunista se comprometeu com a repressão brutal das tropas soviéticas, em 1956. E não tem conseguido se desvincular dessa imagem repressora, apesar de haver iniciado um processo pioneiro de reformas, há vinte anos. Não há dúvida, porém, de que o compromisso com a repressão no passado macula a imagem do Partido Comunista na Hungria. A resposta virá dos trabalhadores, nas eleições do próximo ano, já no regime pluripartidário.

Creio que, nos demais países, o processo de renovação democrática não avançou significativamente. Pouca coisa há para ser dita da Tchecoslováquia e muito menos da Alemanha Oriental. Infelizmente, as notícias que nos chegam de Cuba não são alentadoras. A última delas, a proibição da circulação de publicações soviéticas que defendem a perestroika, é lamentável. Não podemos aplaudir uma medida dessa natureza. Com toda a admiração pela Revolução Socialista cubana, pela sua solidariedade internacional a Angola e a outros países da África, não podemos deixar de criticar o modelo político que ainda se mantém em Cuba e que já está entrando em obsolescência. Precisa ser mudado. O fato de Cuba ter fronteiras praticamente apenas com os Estados Unidos não justifica esse monolitismo unipartidário, essa vida cultural espartilhada.

O marxismo não pode ser uma doutrina imposta nas escolas dos países socialistas como catecismo religioso. Os estudantes e todas as pessoas interessadas têm o direito de conhecer as outras doutrinas sociais, políticas e econômicas. O marxismo precisa competir com as outras doutrinas. Não deve haver nenhum obstáculo à importação de livros, venham de onde vierem. Todo o passado da cultura humana deve estar ao alcance do público. Com o pressuposto da liberdade de não ser marxista.

Nessa perspectiva de atraso, o que se passou este ano na China configura o caso mais penoso. A China começou a fazer sua nova política econômica, a sua NEP (como é conhecida a sigla soviética), há dez anos, com um retardamento de vinte anos devido à Revolução Cultural e ao maoísmo. Só então ela acabou com aquela coletivização bastante fictícia, meramente aparente, que havia no campo, e voltou a introduzir relações mercantis abertas na agricultura e em outros setores. Isso deu grande impulso ao desenvolvimento da economia. Mas as relações mercantis têm a sua própria dinâmica e tudo indica que a direção política e econômica do país perdeu o controle do processo. O descontrole, as desigualdades acentuadas, carências, câmbio negro, especulações e corrupção contra tudo isto se voltou o vigoroso movimento de massas de abril a junho últimos.

Ao contrário da URSS, onde o stalinismo castrou, durante decênios, as iniciativas de baixo para cima, a China, apesar da violência do maoísmo, mantém viva uma fabulosa tradição de movimentos de massa. Os estudantes, setor mais sensível às questões culturais e políticas, tomaram a vanguarda nas jornadas da praça da Paz Celestial em Pequim, e logo tiveram o apoio de trabalhadores. Por que um desenlace trágico veio selar este movimento, reprimido a sangue frio? Porque o Partido Comunista da China continua preso ao modelo monopartidário, desgastado em todo o mundo socialista. Tão desgastado que, mesmo sendo um partido com 40 milhões de militantes, o PC chinês não foi capaz de mobilizar uma única contra manifestação aos estudantes e trabalhadores reunidos na praça da Paz Celestial. Não se sabe, até hoje, de uma só passeata ou comício que se dirigisse contra os estudantes. Isso mostra a falência política do partido. Sem a possibilidade de um diálogo, de uma resposta política, o governo atacou seu próprio povo da maneira mais cruel e exibicionista, difundida pela televisão para todo o mundo. Não podemos deixar de protestar com veemência contra este crime stalinista.

O modelo do partido único caminha para uma situação de crise e terá de ser superado seja em Cuba, seja na China. O que acontece na URSS já nos permite fazer esta previsão. O movimento democrático de base existente na China, essa aspiração, que mobilizou um milhão de pessoas na praça da Paz Celestial e centenas de milhares em outras cidades, não vai ser asfixiada pelo massacre, pelas punições, nem pelas execuções capitais.

A concepção marxista do socialismo não parte de princípios éticos, como ocorria com o socialismo utópico. Mas inadmissível também é o socialismo sem ética, bem como a própria luta pelo socialismo sem um código moral. Isto é, stalinismo, caracterizado justamente pelo "vale-tudo" decidido "en petit comité", que delibera eliminar companheiros, fuzilá-los, jogá-los nos campos de concentração. A experiência prática está demonstrando que este socialismo sem ética, sem Estado de direito, sem democracia, conduz aos impasses hoje enfrentados pela perestroika na URSS. Conduz a perdas graves no movimento socialista. O marxismo não encerra, como alguns têm dito, uma vertente autoritária. O marxismo coloca com clareza que o momento da revolução é o momento da autoridade, porque só a força derrota o adversário. Mas esta é uma força de classes sociais, não de seitas. Que fique bem claro: não somos nós que escolhemos o caminho da revolução violenta. Esta nos é imposta pelo adversário, que obstrui o caminho pacífico com o uso prévio da violência do aparelho de Estado por meio da repressão política, dos golpes militares etc.

Diante disso, não podemos abrir mão de usar também da violência, o que, todavia, não significa "vale-tudo". Se empregarmos o "vale-tudo", mesmo contra o inimigo - adotando, por exemplo, a tortura como procedimento legítimo -, vamos nos desmoralizar, vamos descer ao nível abjeto do inimigo. Ficaremos eticamente desqualificados para construir uma sociedade socialista democrática.

Eu, pessoalmente, vejo a democracia como valor do socialismo. Discordo da fórmula do PCI (Partido Comunista Italiano), teorizada e difundida, aqui no Brasil, por Carlos Nelson Coutinho e Francisco Weffort, sobre a democracia como valor universal. Falar em democracia como valor universal é colocar no mesmo plano a democracia burguesa e a democracia socialista, que agora começa a ser construída em alguns países. A fórmula do PCI é vazia, pode ser preenchida e igualmente legitimada por um conteúdo burguês ou por um conteúdo socialista. Entre os dois se estabelece equivalência. Defendo a democracia como valor do socialismo e, por conseguinte, compatível com o socialismo.

O marxismo não pode ser visto como algo cristalizado para todo o sempre. Se é uma doutrina que precisa se desenvolver, ele progride por variadas tendências através de caminhos múltiplos, da competição entre as correntes, da discussão livre. Declaram o marxismo ultrapassado, mas, do ponto de vista da esquerda, que poderia tomar o seu lugar? Vale a pena conferir as alternativas oferecidas. A social-democracia? Até hoje as experiências da social-democracia atestam que ela é componente estabilizador do capitalismo. Obtém reformas para os operários - daí seu prestígio nos países desenvolvidos, onde é possível obter tais reformas -, mas este processo de conquista de reformas não é ininterrupto, nem consolidado. Discordo do pensador italiano Norberto Bobbio, segundo o qual nunca houve revolução permanente, mas há reforma permanente. Ora, este processo de reformas cessou e recuou, golpeado pelo desemprego e pela ofensiva dos governos conservadores dos EUA e da Europa. Há dez ou quinze anos, o processo de reformas sociais ficou bloqueado exatamente nos países desenvolvidos. Não, não vamos trocar o marxismo pela doutrina social-democrata ou keynesiana. E então? Trocar o marxismo pelo autonomismo? Esse neo-anarquismo de salão, que não tem sequer a combatividade do velho anarquismo? Francamente, é ridículo. O autonomismo também já cessou de se desenvolver, está em declínio vertiginoso. Nem falar de trocar o marxismo pelo pós-modernismo! Isto seria uma capitulação completa e vergonhosa à ideologia burguesa difundida por meio da mídia e das cátedras universitárias. Eu penso que o marxismo já superou outras crises gravíssimas e pode superar a atual, por meio da abordagem criativa das novas realidades. A história não vai parar no capitalismo. Dizem também que o termo "comunismo" está tão envilecido que seria bom abandoná-lo. Ora, o comunismo é um conceito teórico que designa um objetivo determinado. Se não mudamos o objetivo, porque mudaremos sua denominação? É certo que a utilização (e o abandono) de certos termos, segundo razões de ordem tática, constitui procedimento conhecido na esquerda. Os partidos da II Internacional adotaram a denominação da social-democracia imitando o partido alemão, que passou a se chamar social-democrata a partir de 1891 para driblar a legislação anti-socialista. Em 1919, Lenin considerou que a atitude dos partidos social-democratas durante a Primeira Guerra Mundial significava uma traição do objetivo comunista, que implica solidariedade internacional. Os partidos social-democratas apoiaram os governos burgueses da Alemanha, da Áustria, da França, da Inglaterra, da Rússia, potências que lutavam entre si, e passaram a engrossar as hostes dos exércitos imperialistas, em vez de lutar pela revolução. Todos eles abandonaram na prática o objetivo do comunismo. Lenin dizia, em razão desse fato, que os partidos comprometidos com o socialismo e o comunismo não podiam continuar a se chamar social-democratas. Mas nem todos, a partir de então, se chamaram comunistas, obrigatoriamente. Quero dizer que não interessa a denominação do partido, e sim o objetivo que ele tem. O comunismo é o nosso objetivo. E ele não pode ter morrido - mesmo porque concretamente não chegou sequer a existir. Isso não impõe, é claro, que, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores se chame Partido Comunista, o que daria numa confusão enorme. Já existem por aqui quatro ou cinco siglas de partidos comunistas. Para que criar mais uma?

O caminho para o comunismo está longe de ser suave. A etapa do socialismo é muito acidentada, bem mais do que Marx, Engels, Lenin e outros teóricos previam. Nem Trotsky, nem Rosa Luxemburg imaginaram o quanto esse caminho seria turbulento. Há questões cruciais não resolvidas. Por exemplo, o fato de que nenhum país capitalista avançado, até hoje, realizou a revolução socialista. Temos de compreender que se trata de um fato importantíssimo. O melhor instrumento para a compreensão teórica dessa realidade continua a ser o marxismo. Por isso mesmo, a meu ver, o abandono do termo "comunismo", que designa nosso objetivo final, seria inaceitável capitulação diante da pressão ideológica da mídia burguesa.

Jacob Gorender, historiador e jornalista, autor de O escravismo colonial e Combate nas trevas.

O crepúsculo das burocracias

Às vésperas da Revolução de 1917, Lenin fez um enorme esforço para restaurar pelo menos uma parte dos ensinamentos de Marx então praticamente esquecidos por seu partido consagrados ao Estado, ao socialismo e à burocracia. Tornou-se famoso o seu aforismo ao indicar que "com o socialismo, e mesmo numa ditadura do proletariado, a administração torna-se-á tão fácil que qualquer cozinheiro será capaz de dirigir os negócios do Estado".

Refletindo sobre o assunto, ouvindo o noticiário nas rádios, lendo os jornais e principalmente vendo na TV o massacre dos estudantes na praça da Paz Celestial em Pequim, me ocorreram subitamente dois pensamentos: ou os dirigentes do Partido Comunista Chinês tiveram razão em jogar o 27º Exército contra os estudantes; ou, então, o socialismo-real, aquele que tenta se basear na teoria do "socialismo-num-só-país", desnudou-se como o "socialismo-em-país-nenhum".

Deixaremos às notas oficiais do governo Deng, inspiradas no arsenal stalinista, a defesa da primeira hipótese, já que para responsabilizar os agentes da CIA infiltrados no movimento de massas não exige muito esforço, principalmente quando esse movimento desagrada pesados dirigentes de "esquerda". Tentaremos desenvolver o segundo pensamento ao longo deste artigo.

A responsabilidade que um partido como o nosso tem hoje é enorme. Responsabilidade de apontar um caminho distinto do capitalismo e do "socialismo burocrático", que vive hoje a sua mais dolorida agonia, como os acontecimentos na União Soviética e na China podem demonstrá-lo. São os povos desses países, herdeiros de revoluções, que fustigam e desafiam abertamente os dirigentes "comunistas", repudiando o nepotismo, a corrupção, a estagnação econômica, os privilégios, a degradação das condições de vida, a ausência de democracia e os impasses patrocinados pela gestão burocrática. Gestão ultracentralizadora, que prescinde da população, da classe trabalhadora, cujos dirigentes se arvoram em seu único e legítimo representante.

O caldeirão hoje ferve no Leste, na URSS, na China, na Polônia, na Hungria e em vários outros países que se transformam em cenário para manifestação de milhares e até milhões fugindo do controle dos dirigentes, de uma forma inédita na sua história.

Por isso mesmo, somos levados a acreditar que estamos assistindo ao crepúsculo dos regimes burocráticos.

Por motivos éticos e profissionais, não trabalharemos com a terceira hipótese, a da tradução malfeita da frase de Lenin, que teria substituído a palavra "cozinheiro" por "açougueiro" - os chineses, mestres seculares da culinária, não fariam essa confusão.

Por que o espanto?

Lendo atentamente a imprensa mundial, seja de direita ou mesmo de esquerda, ficamos um pouco perplexos com a intrincada rede de variáveis que nos salta aos olhos. Bush, Thatcher, Mitterrand, o papa e até mesmo Sarney, repreendem Deng. Não muito é verdade, uma vez que os negócios da China, assim como várias propostas das reformas econômicas que vinham sendo aplicadas - como a revitalização da economia de mercado, a abertura ao capital estrangeiro, por exemplo - eram do agrado desses chefes de Estado de países capitalistas. Choram também lágrimas de crocodilo pelos estudantes reprimidos, já que a violência contra seu próprio povo e contra o povo de outros países sempre contou com seu beneplácito. Esses representantes do grande capital aproveitam-se da tragédia chinesa para minar as já enfraquecidas conquistas da revolução, assim como para atacar a idéia mesma de revolução e de socialismo.

A social-democracia, a mais competente administradora hoje do capitalismo em crise, sente-se fortalecida em suas teses sobre o autoritarismo inato do comunismo e procura, na verdade, identificar esse conceito, na sua versão stalinista, ao marxismo. Sua ação, tendo em vista seu comprometimento com a ordem imperialista, visa de uma só penada passar um atestado de óbito aos dois.

A Albânia, que, segundo alguns, seria o único reduto socialista a resistir bravamente às tentações do revisionismo, até agora não se pronunciou. Gorbatchev, apesar da glasnost, teceu comedidos considerandos lamentando o ocorrido, porém de modo a não atrapalhar sua tentativa de reaproximação com a China. Fidel emudeceu. E o Vietnã, assim como a Alemanha Oriental, apoiou abertamente a repressão.

A opinião pública mundial, estarrecida com a violência, expressou das mais diferentes maneiras seu repúdio ao massacre dos estudantes. E a Nicarágua, por meio da Frente Sandinista, e o PT se solidarizaram desde o primeiro instante com a juventude chinesa, os estudantes e os trabalhadores. O PT, inclusive, rompeu toda e qualquer relação com o PCC em decisão histórica no V Encontro Nacional Extraordinário.

Se dispuséssemos de espaço e de tempo, poderíamos ampliar esse quadro de modo a que todos pudessem visualizar quem e como se pronunciou no cenário político dos dias de hoje.

Esse quadro, fundamental para todos os democratas e socialistas, teria, além de um valor pedagógico inestimável, a virtude de tornar transparentes muitos lobos que circulam pelo mundo e que se escondem por baixo da pele do cordeiro.

Uma discussão sobre o "socialismo chinês" é vital para um partido nascente como o nosso.

Vital para destrinchar os nossos rumos, assim como para identificar quem são os nossos amigos e que herança teremos de recusar.

Como petistas, socialistas e internacionalistas, lutamos pela emancipação da classe trabalhadora. Queremos chegar ao poder, desalojar a burguesia, pôr fim à exploração do homem pelo homem; queremos acabar com a miséria e a fome e viver plenamente a liberdade e não a hipocrisia do capitalismo. Justamente por isso, como marxistas que somos, não nos dobramos diante do terror obscurantista que repele a crítica aos chamados países socialistas, situando-a "objetivamente' no campo do imperialismo.

Milhares de militantes operários foram calados por esse terror. Hoje, não há a menor possibilidade de se discutir e educar as jovens gerações no espírito da revolução, da luta pelo socialismo, se não nos distanciarmos radicalmente dos Dengs e Li Pengs da vida.

Não se trata de confundir e colocar um sinal de igual entre os países imperialistas e aqueles em que a burguesia foi expropriada. Mas trata-se de compreender que se o imperialismo gera a opressão dos povos, a pobreza e as guerras, o "socialismo" que nos oferecem é requentado e de difícil digestão.

Os recentes acontecimentos da China derramaram um mar de desesperança no mundo militante, em particular na juventude. E para combater a onda de ceticismo que inevitavelmente tomará corpo é preciso falar claro, deixar claro que revolução não é idêntica a socialismo; que, se em vários países um passo enorme foi dado com a quebra da burguesia e a criação de Estados operários, até agora, a deformação resultante chamada "socialismo real" está muito longe de ser socialismo.

Trata-se de compreender que se o capital não apresenta nenhuma esperança para o povo trabalhador, socialismo burocrático também não.

É preciso voltar às origens do movimento operário. Que os velhos partidos comunistas se esgotaram, que muitos deles degeneraram, não resta a menor dúvida. Mas o fim de um partido, que se reivindica do marxismo, não significa o fim do marxismo. Pelo contrário, o único referencial de que o movimento dos trabalhadores dispõe para compreender e agir diante da crise do capitalismo e dos Estados operários é o marxismo, pois ali, mais do que nunca, são as tensões, as contradições sociais que afloram segundo as leis da luta de classes. A alternativa posta para nós não pode ser: retorno ao capitalismo ou dominação burocrática mas sim a emancipação dos trabalhadores através da luta contra a burguesia.

A evolução da situação na URSS, os acontecimentos na China, provavelmente levarão os historiadores de amanhã a caracterizar o primeiro semestre de 1989 como um dos mais importantes da segunda metade do século XX. A eclosão de maciças mobilizações na URSS, a greve dos mineiros, sob inspiração da glasnost e sintonizadas com uma parte da cúpula do Estado e do partido, assim como as manifestações em toda a China, num movimento que terminou em choque com a casta dirigente, sinalizam para o mundo que os mais extensos e profundos movimentos de mudança, por mudança, estão ocorrendo desde que Stalin concentrou todo o poder em suas mãos nos anos 20.

Nos dois casos, ainda que através de formas diferentes, fruto de uma história e experiências distintas, há um choque das forças vivas contra os dirigentes burocráticos, verdadeiros parasitas encastelados nos Estados operários e nos partidos comunistas. Essa camada de dirigentes comanda um império de funcionários, que vivem apoiados numa rede de favores e privilégios, num sistema improdutivo, carregado pela classe trabalhadora e avesso a ela, que não participa, não dispõe de órgãos próprios e, até bem pouco tempo, não podia se manifestar nem se organizar.

A democracia, nesse caso, é incômoda para os governantes. O partido, obviamente, tem de ser único. O planejamento, administrativamente centralizado, é impermeável e insensível à triste situação das condições de vida do povo e vive, muitas vezes, em função do jogo de pressões e contrapressões ao imperialismo.

Esse sistema monstruoso, hoje, vive sua maior e mais profunda crise. O sistema e também os burocratas, parte integrante e fundamental desse mecanismo.

Mas, afinal, o que é essa burocracia?

Temos que procurar as raízes da burocracia, a maneira como ela gera e é gerada pelo Estado hipertrofiado, o modo como ela passeia à vontade do partido para o Estado, dos corredores palacianos para as coxias partidárias e a forma como ela se apropria e redistribui - principalmente para si mesma - uma parcela considerável da riqueza produzida pelos trabalhadores.

A pulverização das organizações que se reivindicam do marxismo, particularmente depois do fim da III Internacional, o gosto pelo sectarismo que muitas vezes delas tomou conta, não possibilitaram a superação do trabalho predatório do stalinismo e suas variantes. O marxismo foi oficializado e empobrecido. Desde Trotsky, em particular com sua elaboração condensada em A Revolução traída, muito pouco de novo foi produzido sobre as sociedades do pós-revolução. Esse dilema dos marxistas só será superado com a elaboração de um pensamento estreitamente vinculado à luta real dos trabalhadores, orgânico e não vigiado.

Pois é preciso cavar fundo para encontrar as bases da burocracia, a fim de ver por que esse flagelo da civilização humana, tão velho quanto o Estado, alcançou proporções tão aterradoras justamente nos países em que a classe trabalhadora fez a revolução.

Não falamos hoje como os "surpresos de Tianamen". Quem descobriu o stalinismo somente agora com a triste Primavera de Pequim vai demorar algum tempo ainda para se encontrar de verdade. Os processos de Moscou, que dizimaram a velha-guarda bolchevique, a coletivização forçada na URSS, a industrialização a ferro e fogo estiveram na base do "socialismo" de Stalin, mandante dos mais hediondos crimes da história. Seu método foi seguido pela maioria dos partidos comunistas, que passaram à colaboração de classes para sustentar a coexistência pacífica entre o Estado operário recém-nascido e o imperialismo.

A Revolução russa de 1917 criou o primeiro Estado baseado na expropriação da burguesia. Sua vocação era a transição para o socialismo, entendido como a primeira fase do comunismo, que, de acordo com todo o corpo doutrinário do marxismo, só se completaria na arena internacional, pois não há como enfrentar o capital internacionalizado enfeudando-se nas grandes muralhas. Quem assim fez teve de interromper os processos revolucionários em várias partes do globo. Penalizou seus povos e gerou deformações gigantescas. A revolução, quando se conquista, se decompõe.

Esse sistema, construído e imitado a partir da primeira revolução socialista vitoriosa na URSS, está em plena crise. A luta contra a burocracia é a luta pela liberação das energias da classe trabalhadora, lá, no Leste, mas também aqui, nos países dominados pelo capital.

Gorbatchev compreendeu essa realidade. E, muitas vezes, procura resolver esse impasse com base em acordos com o imperialismo, ainda que sua ação impulsione profundamente as massas. Essa contradição tende a explodir, pois a crise é dilacerante.

Às raízes

Os textos marxistas sempre alertaram para os perigos da burocracia. Já Engels, na Anti-Duhring, desenvolveu uma concepção que tentava prevenir contra esse perigo no socialismo:

"O proletariado apodera-se do poder do Estado e transforma, lentamente, os meios de produção em propriedade do Estado.

Desta forma se destrói a si próprio como proletariado, suprime todas as diferenças e antagonismos de classe".

Antes, o Estado era necessário como órgão da classe exploradora, como meio de opressão sobre as classes exploradas, os escravos, os servos e os trabalhadores assalariados. Com o socialismo, o Estado, no momento em que se torna verdadeiramente representativo do conjunto da sociedade, torna-se, por isso mesmo, supérfluo. E com o desenvolvimento pleno das forças produtivas modernas, com a abundância dos bens, não haverá mais a necessidade de manter os homens e o trabalho subjugados. O problema é que, além das características próprias dos países em que a Revolução se fez e que tinham um regime capitalista atrasado, a gestão burocrática, baseada na ilusão do "socialismo-num-só-país", a partir de determinado momento constitui-se num entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e resultou, na realidade, da carência e não da abundância.

Analisando a experiência da Comuna de Paris, Marx e Engels pressentiram as ameaças burocráticas que poderiam surgir no futuro. A Comuna tinha tomado inúmeras precauções que deveriam servir de exemplo para as transformações socialistas. A própria Comuna havia sido eleita através de eleições gerais e havia criado um serviço civil eleito, cujos membros podiam ser demitidos em qualquer momento a pedido dos eleitores. A Comuna aboliu o Exército permanente e substituiu-o pela milícia popular. Estabeleceu também o princípio segundo o qual nenhum funcionário deveria ganhar mais do que um trabalhador. Essas medidas serviriam para abolir os privilégios de uma classe ou de um grupo social. Em outras palavras, a Comuna, por seus atos, começou a indicar o caminho para a gradativa extinção do Estado.

Lenin, em O Estado e a Revolução, retomou integralmente essas teses. No entanto, a sua própria revolução, sob o comando de outros, voltou-lhe as costas.

Nós podemos encontrar nas bases teóricas de vários PCs um repertório de citações clássicas denunciando a burguesia e seu Estado de classe. Mas são inúmeras as elaborações em que podemos perceber a tentativa de caracterizar que o mesmo Estado que serve ao grande capital poderia atender às necessidades básicas dos oprimidos. Implicitamente, esses teóricos admitem que a natureza de classe do Estado é determinada pelo seu pessoal dirigente, e que seria suficiente substituí-lo para que um novo conteúdo tomasse corpo nas formas do Estado.

Essa visão, que busca conviver com o Estado burguês, como se ele fosse uma forma cujo conteúdo pudesse ser preenchido por quem estivesse à sua cabeça, fornece as bases para todo tipo de visão tecnicista atual.

Esses teóricos não questionam até o fim a existência mesma do Estado, isto é, a separação do poder da grande massa de trabalhadores, ou ainda o aparelho burocrático que se encarrega dos interesses gerais, acima de todos os interesses. Para eles, trata-se de "aperfeiçoar" o Estado, de torná-lo um pouco menos opressivo, de arejá-lo em sua composição e seu funcionamento.

Não temos uma visão ingênua que nega a necessidade de afirmar o poder transitório do Estado, como se pudéssemos ignorar a guerra entre as classes, a sabotagem e os ataques da burguesia e do imperialismo. O problema é que podemos constatar que o Estado vai sendo gradativamente reforçado e que a sobrevivência da burocracia exige não só a permanência como o fortalecimento do aparelho estatal. Longe de se extinguir pouco a pouco, o Estado reuniu nesses países mais poder do que nunca. Pela primeira vez na história da humanidade, a burocracia dirigente aparece como sendo onipotente e onipresente. Mesmo no capitalismo, em que o poder da burocracia é enorme, sua força é contrabalançada pelo efetivo poder dos proprietários, da burguesia enfim, que comanda em última instância a economia e a política. Nos Estados operários não há tais limitações. A burocracia gere os recursos da nação, comporta-se como um corpo independente, acima da sociedade e sempre, é claro, falando em nome dela.

E o povo, como está vendo esse "socialismo"?

Na China, a Primavera de Pequim atualizou inúmeras reivindicações e mobilizações das Cem Flores e da Revolução Cultural, que foi interrompida bruscamente. Na Polônia, o Solidariedade nasceu se reivindicando das lutas operárias dos anos 70 e da revolta de 1956. Na Hungria, as manifestações forçaram o reconhecimento de Imre Nagy, enforcado em 1958 depois da invasão das tropas soviéticas. Na Tchecoslováquia, a luta pela democracia vem da Primavera de Praga, da Carta dos 77 das associações livres.

Na URSS, a glasnost e a perestroika de Gorbatchev tentam dar conta dessa situação, abrindo caminhos para evitar incômodas explosões no país-chave de toda essa discussão. A política de Gorbatchev influencia e, ao mesmo tempo, obriga a realinhamentos em todos os países do socialismo real.

Pode ser que suas políticas se constituam numa resposta preventiva de um setor da burocracia diante do seu crescente isolamento. Pode ser que Gorbatchev tenha calcado suas reformas nas propostas húngaras e chinesas, que, por sua vez, tenderam a acentuar as diferenciações sociais, a questionar a política do pleno emprego e mesmo a facilitar a penetração do capital estrangeiro - diga-se de passagem, aspectos esses muito criticados pelos dirigentes cubanos. Isso, no entanto, não modifica em nada o fato de que a ação de Gorbatchev assim como a política de democratização que ele definiu constituem um ponto de apoio essencial para o movimento de massas, para as diversas nacionalidades sufocadas pela camisa de força da centralização estatal, para a juventude e também para a classe operária, inclusive de outros países.

O modo como os manifestantes na China se aproveitaram da visita de Gorbatchev para impulsionar sua luta pelas liberdades é um exemplo do lugar que ocupa hoje a ala reformista da burocracia. Poucos meses antes de Pequim, a presença de Gorbatchev propiciou a eclosão de uma manifestação de "dissidentes", que foi reprimida aos gritos, exigindo um "Gorbatchev tcheco". Na China, a figura de Zhao Zhiyang, na época secretário-geral do PCC, também serviu de escudo para a juventude, uma vez que ele procurava posições mais conciliadoras com o movimento dos estudantes.

Esses cismas deverão viver novos desdobramentos com a intensificação das mobilizações na URSS e nos países do Leste, e com o surgimento de novas formas de reivindicação e expressão nas difíceis condições chinesas.

Mas os tanques não conseguirão sufocar os poderes de todo um povo, que, aos milhões, demonstrou compreender a realidade tão simples como a explicitada no dazibao que reproduzimos abaixo:

"O povo e seus líderes"

"À primeira vista, o povo chinês é o senhor de seu país.

Há uma infinidade de palavras em nosso idioma às quais é preciso acrescentar o adjetivo 'popular'. Por exemplo: 'governo popular', 'polícia popular', 'tribunal popular', 'procurador popular', 'correios e telégrafos populares'... Existem também os 'restaurantes populares', os 'banheiros populares' etc. Um último exemplo: até nossas fábricas são chamadas de ‘fábricas populares'.

Em todos os lugares e circunstâncias, o povo está sempre em primeiro plano. Nos jornais, na televisão, assim como nos discursos dos funcionários dirigentes, o povo é constantemente colocado em relevo. As pessoas não cansam de repetir que o povo é o senhor da nação.

Para mim, que sou um membro do povo, este é um motivo de orgulho e felicidade sem limites. Afinal, quem não daria graças aos céus por figurar entre os senhores do país?

Entretanto, quando se passa para um nível um pouco mais concreto, verifica-se que não é tão simples ser um senhor do país. Eis alguns exemplos disso. De manhã, quando as pessoas vão para o trabalho, ou de noite, quando voltam para casa, os aborrecimentos são sempre os mesmos: há muita gente na rua e poucos ônibus, e não se pode evitar de ser empurrado e esmagado. Na fábrica, é preciso trabalhar. A jornada é longa, o trabalho é penoso e, além disso, não nos dá prazer. Mas temos de garantir a subsistência. Portanto, mesmo a contragosto, seguimos de manhã para o trabalho. O excesso de população provoca carência de moradias. Onde mais se poderia colocar o balde de excrementos, a não ser embaixo da cairia? Alguns desses 'senhores' são também enviados para o campo ou para as montanhas, são destacados para as regiões de fronteira, sempre sujeitos a uma transferência... Para eles, a situação é ainda mais negra.

Quanto mais avançarmos neste raciocínio, mais as coisas nos parecerão estranhas. Aparentemente, todos os funcionários de nosso país, ‘seja qual for a situação hierárquica, são servidores do povo’. Bom, muito bom! A questão é que esses ‘servidores’ têm mais prestígio e poder que seus supostos ‘senhores’. Quando eles põem um pé para fora de casa, é para embarcar em um avião, ou então para entrar em um automóvel, a fim de evitarem caminhadas a pé. Para participarem de banquetes grandes ou pequenos, eles não precisam tirar dinheiro do bolso. Seus escritórios são espaçosos e bem iluminados, suas casas dispõem de todo o conforto... Talvez vocês achem que meu ponto de vista é vulgar, ordinário, que me deixei obcecar pelos prazeres materiais... Mas eu me pergunto: quem dispõe de mais poder nos planos político e legal, os 'servidores' ou seus 'senhores'? A resposta é evidente.

Agora vocês entendem por que alguém como eu, que normalmente se conforma com sua condição de integrante do povo, e portanto da raça dos senhores, se sente presa de uma inveja súbita e irreprimível: ali, quem me dera deixar de ser senhor e transformar-me em servidor! O problema é que não basta querer! É preciso ser indicado pelos superiores hierárquicos. E então, o que fazer? Aparentemente, estou condenado a permanecer 'senhor' por toda a eternidade, pois é esse o destino que me coube ao nascer. Por outro lado, isso prova que os servidores de nosso país são revolucionários 'até o fim', e que a missão que lhes coube de servir ao povo só é interrompida com a morte. Nesse caso, dá na mesma passar o tempo deitado na cama, limitando-se a comer e fazer as necessidades, até o momento de se converter em pó! Quanto ao título hierárquico, quer seja de membro do comitê, presidente ou secretário, ele permanecerá intacto para todo o sempre". (Mural afixado na praça do Povo, em Xangai, em 22 de fevereiro de 1979. In: A Comuna de Pequim, de Marília Andrade e Luis Favre. Ed. Busca Vida, 1989)

Afinal, que dirigentes são esses?

Deng Xiaoping, no VI Plenário do Comitê Central do PCC, em 28 de setembro de 1986, declarava:

"No presente momento, uma corrente de pensamento está atuando em nosso meio. Se entrarmos pelo caminho da liberalização, nos será impossível manter uma situação política estável. Se entrarmos pelo caminho da liberalização, acabaremos destruindo nossa atual situação política de unidade e estabilidade. Assim teremos arruinado nossas chances de persistir no empenho de construção e edificação. Por esse motivo, concordo com a opinião de que é preciso lutar contra a liberalização burguesa, e igualmente contra a liberalização proletária. Com efeito, não existe liberalização proletária ou socialista: o simples conceito de liberalização é intrinsecamente burguês" (grifo nosso). (Texto integral da diretriz nº 2 do Comitê Central do PCC, divulgada pela Comissão de Assuntos Gerais do PCC. Idem.)

Em 1845, Marx e Engels afirmaram que "a democracia é hoje o comunismo. Uma outra democracia só pode existir na cabeça de visionários teóricos que não se preocupam com os acontecimentos reais... A democracia tornou-se um princípio de massa".

O texto de Marx tem quase 150 anos. Deng tem mais de 80. Sou levado a concluir que, nesse caso, o mais velho é bem melhor.

E esses países, que têm dirigentes como Deng, o que são? Houve revoluções em vários deles. A burguesia foi liquidada. Mas os trabalhadores, paradoxalmente, não detêm o poder. Quem manda são os chefes. Seriam, então, países capitalistas?

Acreditamos que não. Esses regimes são intermediários e não servem para qualificá-los categorias sociais acabadas como capitalismo ou socialismo. Não devemos e não podemos dar uma definição acabada de um processo inacabado. Temos que observá-lo, detectar suas tendências progressistas, as reacionárias, registrar suas variantes.

Pensar que gradativamente esses Estados se transformaram de Estados operários em Estados burgueses significa desenvolver no sentido inverso o filme do reformismo. Se não houve passagem lenta e gradual para a ida, não haverá na volta.

Esses regimes incorporaram contradições enormes que só serão resolvidas em definitivo pela luta de classes, pelo confronto entre as forças vivas, tanto no terreno nacional como internacional: ou a burocracia se torna cada vez mais um órgão da burguesia - e, dessa forma, ela liquidará as formas atuais de propriedade e jogará esses países no capitalismo ou a classe trabalhadora sairá vitoriosa desse confronto, arrastando ou não atrás de si uma parcela dos dirigentes, e abrirá um caminho novo em direção ao socialismo, tentando completar aquilo que foi interrompido. Enquanto isso não ocorre, novas tragédias virão. Para eles; mas também para nós.

Novo curso

O avanço da organização independente dos trabalhadores, na China, na URSS e no Leste europeu se dá simultaneamente ao surgimento de vários agrupamentos que, refletindo sobre a política tradicional, tentam um novo caminho.

Parece que fios invisíveis nos unem, não só na solidariedade, na identificação, na cumplicidade às vezes, mas, fundamentalmente, na ação por melhores condições de vida, por liberdade, pelo socialismo.

Vendo as condições de vida do povo chinês, por exemplo, podemos entender por que milhões e milhões identificam, sem medo de errar, o "comunismo" à barbárie. Fazem-no tão facilmente como nós - mortais que vivemos sob o capitalismo - identificamos neste o obstáculo maior à civilização e ao bem-estar.

Juntos, nós e eles, contra os deles e os nossos, talvez descobriremos um caminho novo.

Hoje, esses movimentos independentes, que afloram em todas as partes, ressentem-se de uma ligação. Stalin acabou com a III Internacional. Nada mais, depois conseguiu, com expressão, ocupar o espaço da Internacional de Lenin. Trotsky tentou em vão, e os trotskistas se debatem entre o gueto e os esquemas.

As forças crescentes do movimento operário têm a obrigação de refletir sobre essa realidade. Já começaram a fazê-lo quando deixaram de lado o rótulo de "comunista". Não por preconceito ao conceito do velho Marx, mas por recusarem qualquer espaço de confusão com os partidos tradicionais, em particular com os PCs.

A reunião dessas forças demandaria um trabalho gigantesco, como aquele que Marx e Engels desenvolveram com os proscritos, os justos, cooperativistas, anarquistas e socialistas. Mas, sem dúvida alguma, seria compensador, para nós, e para o socialismo.

Glauco Arbix, secretário de Organização da Executiva Estadual do PT-SP e coordenador da Campanha Lula (1989) no Estado.

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