É verdade que o monolitismo stalinista já era coisa do passado: de fato, logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve a excomunhão da Iugoslávia, que sofreu um mau momento, sendo ameaçada de invasão por tropas soviéticas e/ou pela subversão interna dirigida pelos aliados da União Soviética no país. Mas pouca atenção se prestou ao "caso" iugoslavo: era como se fosse uma exceção confirmando a regra.
Mais tarde, no entanto, as divergências sino-soviéticas, que desembocariam num cisma ideológico e em enfrentamentos armados, abalaram os alicerces de um sistema que se julgava uno e indivisível. O mundo socialista parecia se fragmentar: polêmica entre Cuba e China, diatribes albanesas contra a URSS, conflitos armados entro chineses e vietnamitas, invasão da Tchecoslováquia pelos blindados do Pacto de Varsóvia, combates entre vietnamitas e cambojanos. Da eternidade, Marx era tentado a reaparecer para apaziguar os conflitos com um novo chamamento: "Proletários de todo o mundo, desuni-vos!".
Acostumamo-nos a conviver (sem entender muito bem) com as querelas e conflitos entre Estados socialistas. Eram irmãos brigando entre si; o mundo capitalista seguia sendo o "inimigo principal". Não se podia perder muito tempo pensando e discutindo as contradições "secundárias", deixadas em segundo plano. Pensaríamos nelas depois da vitória da "nossa revolução". Além disso, falar no assunto poderia dar "armas ao inimigo"; melhor silenciar, mesmo que em alguns momentos os problemas latejassem dolorosamente: quem não achou difícil "aceitar" os tanques russos em Praga?
A novidade atual, portanto, não se refere aos conflitos entre Estados socialistas, que por sinal, e paradoxalmente, passam por uma fase de desativação - basta conferir as negociações diplomáticas entre URSS/China (visita de Gorbatchev a Pequim em maio de 1989), China/Vietnã e as conversações de paz sobre o Camboja, que se desenrolam em Paris.
Os conflitos agora explodem dentro dos Estados e sociedades socialistas. Na China, o movimento estudantil toma as ruas, reivindica a democratização do Estado, ganha a aliança de setores expressivos da população de Pequim (trabalhadores da função pública, operários, jornalistas etc.), estende-se pelas principais cidades do país, quebra o monopólio da informação, desfaz movimentos repressivos com o uso da persuasão, desafia, em suma, o poder, para terminar massacrado em plena praça da Paz Celestial.
Na URSS, a política de reconstrução econômica (perestroika) e de transparência na gestão dos negócios públicos (glasnost) atrai as atenções de todo o mundo, mas evidencia fissuras que se julgavam (pelo menos segundo o discurso oficial) abolidas na sociedade. As nações não-russas parecem acordar da letargia em que se encontravam e reivindicam cada vez mais agressivamente seus direitos a uma cultura própria, a um sistema educacional específico, a maiores margens de autodeterminação. Alguns já falam em soberania, querem retirar dos arquivos empoeirados o grande lema mobilizador dos povos não-russos em 1917: o direito de autodeterminação, ou seja, a prerrogativa de separação que os não-russos teriam na federação soviética. Porém, os problemas não se limitam às várias "questões nacionais". No interior de cada república soviética agravam-se as contradições sociais. A recente greve de centenas de milhares de mineiros é uma indicação clara da insatisfação social frente às desigualdades e às restrições à liberdade de manifestação e organização. As centenas de associações autônomas que surgem em todo o país, as contradições estampadas nas páginas dos principais jornais e revistas, as votações maciças em candidatos críticos ao regime (mesmo que formalmente ainda vinculados ao Partido Comunista) e a formação de um esboço de oposição parlamentar são expressões políticas de um fenômeno de fundo: o questionamento das bases do socialismo realmente existente na URSS.
Na Europa chamada do "Leste" os problemas aparecem sob formas ainda mais contundentes. Na Polônia, as eleições recentes esmagaram literalmente o Partido Comunista Polonês, que só obteve cadeiras em função dos casuísmos que determinaram a organização do pleito. De fato, onde houve oportunidade de livre escolha, os poloneses escolheram em massa os candidatos apresentados pelo Solidariedade. No momento em que escrevemos este artigo, o general-presidente da Polônia (vinculado ao Partido Comunista) acaba de convocar lideranças do Solidariedade para dirigir a constituição de um novo governo para o país. Um fato inédito: pela primeira vez, desde a primeira vitória de uma revolução socialista (em 1917, na Rússia), os comunistas, pacificamente, parecem abdicar, do governo, entregando-o, ao menos parcialmente (as Forças Armadas e a polícia permanecerão sob controle comunista), a seus adversários políticos.
O mesmo processo está em curso na Hungria, onde já se legaliza o pluripartidarismo e o próprio Partido Comunista húngaro passa por tal processo de transformação interna que, se as coisas continuam evoluindo dessa forma, será muito difícil distingui-lo de um partido social-democrata europeu.
Diante deste quadro, de pouco adianta proferir anátemas e excomunhões ou se refugiar em posições dogmáticas, como preferiu fazer o líder da Revolução cubana, Fidel Castro, que, em recente discurso, sugeriu em termos apocalípticos a desagregação do sistema socialista mundial, garantindo todavia a fidelidade dos cubanos (que não foram consultados a respeito, nem têm liberdade para se manifestar sobre o assunto) ao marxismo-leninismo. Também não seria mais aceitável continuar fingindo que a crise geral do socialismo não nos diz respeito ou esgrimir argumentos de realpolitik do tipo: "Não hostilizemos nossos eventuais aliados na luta contra o capitalismo".
Não nos iludamos: a fábula que se conta hoje no mundo socialista diz respeito a nós. O que está em jogo é nada mais nada menos que o futuro de nosso projeto político de construir no Brasil um socialismo democrático. Se não decifrarmos esta esfinge em tempo, ela certamente nos devorará. Pior é que, a rigor, mesmo que a decifremos, talvez não estejamos em condições de escapar ao tipo de crise que ronda hoje a experiência socialista. Mas pelo menos estaremos mais bem preparados para enfrentá-la, quando chegar - se chegar - a nossa hora.
A compreensão dos problemas que as sociedades socialistas enfrentam hoje passa, necessariamente, pela análise crítica do momento chamado de "tomada do poder", em que as revoluções se instauraram, em outras palavras, quando as antigas classes dominantes, identificadas com o regime capitalista, foram derrotadas.
Ora, um exame, mesmo sumário, dos processos revolucionários nos revela que as revoluções ditas socialistas não se tomaram vitoriosas em torno de lutas sociais "pelo socialismo". Não se trata aqui de comentar a ausência do nome "socialista" ou "socialismo", mas de evidenciar o fato de que não estavam em jogo, para a consciência dos amplos movimentos sociais que tornaram possível a vitória da revolução, os pressupostos e os objetivos ou mesmo o significado histórico de um processo revolucionário socialista.
Na Rússia czarista - sociedade na qual viviam do trabalho na terra cerca de oitenta por cento da população -, os camponeses lutaram pela distribuição eqüitativa e pela posse familiar da terra. Articulados por suas organizações de base os comitês de aldeia - e por seus partidos políticos, principalmente o Partido Socialista Revolucionário (talvez impropriamente chamado de partido, pois se tratava na verdade de uma confederação de grupos políticos), invadiram propriedades, queimaram mansões, mataram proprietários e capatazes e enfrentaram duros combates no tempo da guerra civil, inclusive organizando forças armadas próprias (a experiência macknovista, na Ucrânia, ainda tão mal conhecida, infelizmente) autônomas em relação ao Exército Vermelho dirigido por Trotsky. Ou seja, fizeram a revolução perseguindo objetivos próprios e bem delimitados.
Os soldados e marinheiros constituíram outro componente fundamental do processo revolucionário. Seu movimento não só desagregou a base armada de sustentação do antigo regime mas também forneceria os quadros para o exército revolucionário que iria se formar em seguida para defender a revolução vitoriosa. Quase todos originários do campo lutaram pensando na terra que iria ser distribuída pela revolução e desejando, em termos imediatos, a paz. O governo burguês seria varrido do mapa por não ter sido sensível a essas reivindicações. Os povos não-russos, por sua vez, lutavam por liberdade - queriam se emancipar da opressão russa e a questão nacional ocupava um lugar primordial em seus horizontes - e também pela questão da terra, na medida em que eram fundamentalmente agrários.
O proletariado industrial, mais por sua localização estratégica, nos centros político-administrativos da sociedade, do que por seu peso numérico, iria desempenhar um papel igualmente decisivo. Mas é preciso descartar as avaliações mitológicas que apresentam a Revolução russa como revolução proletária. Na verdade, ela tornou-se possível em função de uma aliança de movimentos sociais objetivamente convergentes (a coordenação maquiavélica de grandes processos de massa pertence ao campo especulativo da polícia política, mas está longe de corresponder à realidade das lutas sociais). É certo que seções do proletariado russo, trabalhadas pelos partidos socialistas (bolcheviques, mencheviques etc.), tinham a revolução socialista e o socialismo em seu horizonte. Mas o estudo das reivindicações apresentadas pelos soviets (conselhos) operários revela que essa temática não ocupava lugar central - e, freqüentemente, não ocupava lugar nenhum - nas preocupações. Além disso, a classe operária russa era permeada de correntes contraditórias (socialistas e anarquistas) e organizações alternativas (soviets, comitês de fábrica, sindicatos) que estavam longe de ter uma concepção semelhante do que seria exatamente uma revolução socialista.
É claro que a ação simultânea das várias forças sociais revolucionárias (camponeses, soldados, povos não-russos e proletariado industrial) constitui um campo privilegiado de influências recíprocas. Assim, a ação do proletariado, devido, como já se disse, à sua localização estratégica, produziria impacto desproporcional ao seu peso numérico. Apesar disso, pertence ao campo do ilusionismo a perspectiva de querer apresentar a Revolução russa como socialista no momento da tomada do poder.
Mesmo assim, o processo acabou sendo dirigido por um partido socialista: os bolcheviques. O fato deveu-se não à amplitude da influência do pensamento socialista ou de suas propostas específicas mas, como de resto é bem conhecido, à capacidade que tiveram os bolcheviques de assumir, na prática, todas as reivindicações dos movimentos sociais, inclusive, quando foi o caso, à custa de suas próprias propostas anteriores (veja-se a polêmica sobre a questão agrária: os bolcheviques assumiriam as propostas do I Congresso Camponês, realizado em maio de 1917, embora contrariassem seu programa oficial).
Em resumo, a revolução tornou-se vitoriosa, sob direção de um partido socialista, como base num programa de reivindicações que assumiu caráter revolucionário pela intransigência dos governos burgueses e pelas características da luta de classes na Rússia numa conjuntura determinada. Mas não era um programa socialista.
Um processo análogo, e ainda mais marcante, ocorreria em outras revoluções que se tornaram socialistas. Na China, lutou-se contra o inimigo estrangeiro - as forças de ocupação japonesas.
A questão nacional assumiu o primeiro plano. Os camponeses chineses (a Revolução chinesa foi, como se sabe, uma guerra camponesa) queriam ainda a distribuição da terra e a paz, pois o país estava em conflagração permanente desde os anos 20. A sutil referência de Mao Tsetung ao "reino da paz e da harmonia" (datong), formulada em seu discurso na praça da Paz Celestial, em 1º de outubro de 1949, recupera muito mais a tradição "comunista" dos movimentos camponeses chineses do que as perspectivas do socialismo moderno marxista. A classe operária apenas aplaudiu a entrada do Exército Popular de Libertação nas grandes cidades. Na verdade, não conseguiu se recuperar das colossais sangrias provocadas pelas derrotas dos anos 20 (Xangai e Cantão, entre outras).
Na China também, como na Rússia, um núcleo de vanguarda marxista-leninista - o estado-maior do Exército Popular de Libertação - assumiria a direção do processo revolucionário, na medida em que foi sensível às especificidades do processo social e às reivindicações dos camponeses.
A Europa do Leste apresenta um quadro mais complexo. É impossível examiná-la como um bloco. Em certos países houve guerrilhas fortemente implantadas (Iugoslávia, Bulgária, Albânia), que teriam, inclusive, papel decisivo na libertação do território das mãos dos nazistas (caso iugoslavo). Em outros, as tradições socialistas e o papel da classe operária desempenhariam certo papel (Tchecoslováquia). Mas seria sumamente difícil imaginar a vitória revolucionária nesses países, se se fizer a abstração da presença do Exército soviético dentro de suas fronteiras. A questão nacional foi, mais uma vez, decisiva na mobilização das vontades. Num momento seguinte, a sombra do Exército soviético protegeria o devir socialista dessas revoluções.
Em Cuba, a Revolução tornou-se vitoriosa em torno de um programa nacional-democrático. A realização desse programa chocou-se com a intransigência das classes dominantes locais e, principalmente, com a arrogância do Estado americano. Em meio a toda sorte de boicotes, com direito inclusive a uma invasão contra-revolucionária articulada em Miami, a Revolução cubana tornou-se socialista. A boa nova foi anunciada num discurso de Fidel, sem maior preparação prévia. Em Cuba, a própria vanguarda do processo não era marxista-leninista em seu conjunto. Tornou-se adepta da doutrina ao longo do tempo, até a fundação do Partido Comunista Cubano, em outubro de 1965, quase sete anos depois da vitória da revolução.
Considerando os limites de nossa análise comparativa, destacaríamos os seguintes aspectos comuns aos processos revolucionários socialistas: a revolução torna-se vitoriosa em virtude da convergência de movimentos sociais objetivos, cujas reivindicações são negligenciadas ou simplesmente recusadas pelas várias modalidades de "antigos regimes", que são varridos do mapa político, pagando o preço de sua intransigência. Uma vanguarda marxista-leninista (nem sempre sob a forma de partido), ou que se torna marxista-leninista (caso cubano), empolga a direção do processo porque assume as bandeiras dos movimentos sociais. Ou seja, a revolução instaura-se como produto de uma aliança de classes, em torno de um programa delimitado. Mas a realização do programa implica, dadas, as circunstâncias em que se processa a luta de classes, a destruição das antigas classes dominantes. A consolidação da revolução vitoriosa se faz simultaneamente ao aparecimento de uma contradição imprevista: na base da sociedade, os movimentos sociais digerem suas vitórias conquistadas na luta; na cúpula, uma vanguarda estruturada alimenta um projeto histórico - a construção do socialismo. Ora, esse projeto não passou ainda - nem passará - pelo consenso das forças sociais que fizeram a revolução. Estamos diante das raízes históricas da crise geral por que passam as sociedades socialistas atuais.
As vanguardas marxistas-leninistas têm encaminhado com determinação a construção do projeto histórico com o qual se consideram comprometidas. O modelo soviético, devidamente redefinido segundo condições de espaço e tempo, fez escola: estatização da economia, planejamento centralizado, ênfase no desenvolvimento da indústria pesada, ou no cumprimento de metas que freqüentemente subestimam os interesses imediatos da população, coletivização da terra, liquidação das liberdades políticas, monopólio da informação e da política pelo partido de vanguarda marxista-leninista, que dirige a sociedade apoiado numa vasta rede de organizações de "massa" (sindicatos, entidades de mulheres, jovens, intelectuais etc.)
Um projeto desse tipo não poderia ser submetido à crítica livre, muito menos a eleições periódicas. Pressupunha certo período, pelo menos, de tutela política. Os marxistas-leninistas não recuariam diante do desafio - sentiam-se identificados com os interesses históricos do proletariado. Se fosse o caso, estavam dispostos a impor ao proletariado, em nome de seus próprios interesses (do proletariado), a construção do socialismo.
Naturalmente, houve revoltas populares contra a realização de semelhante projeto. Os campos de trabalho forçado, a importância da polícia política e o emprego maciço da censura atestam a existência de lutas de resistência, ainda mal conhecidas, mas que as periódicas "aberturas" ajudam a evidenciar.
Os países socialistas conheceram, apesar dos pesares, um processo notável de modernização. Seria um contra-senso imaginar, como se comprazem os ideólogos do capitalismo, que tudo foi conquistado exclusivamente pela força da repressão.
Muitos setores da população foram efetivamente ganhos política e ideologicamente. Razões não faltaram: o socialismo implementou uma série de reformas sociais básicas (educação e saúde gratuitas, em todos os níveis, para todos; melhorias significativas nos transportes públicos; habitação precária, porém barata; comida, muitas vezes racionada, mas não fome; emprego para a grande maioria - em alguns países, para todos - etc.) chamadas, justamente, de "conquistas revolucionárias". Além disso, as ameaças de agressão externa (às vezes, exageradas conscientemente, para provocar o pânico; muitas vezes, bastante reais, inclusive desdobrando-se em invasões efetivas) serviram para coesionar o povo em torno da defesa da nação. Regimes capitalistas têm sabido, ao longo do tempo, servir-se do patriotismo e do nacionalismo. Neste terreno já havia, portanto, uma escola na qual o socialismo aprendeu. Um outro aspecto não pode ser subestimado: a mobilização das pessoas (particularmente os jovens e as mulheres foram sensíveis a isso) com vistas à construção de uma nova sociedade, justa, de um homem novo, sem os vícios e defeitos das sociedades baseadas na exploração. Finalmente, não nos esqueçamos da aspiração à paz e à ordem que é normal suceder aos períodos revolucionários turbulentos. A autoridade beneficia-se desse sentimento, e ela era encarnada nas sociedades nas quais a revolução triunfara pelo Estado socialista.
Os países socialistas cresceram, modernizaram-se. De pouco vale compará-los com as sociedades capitalistas avançadas. O marco principal de comparação encontra-se no próprio passado dessas sociedades, quando vigorava a dominação das antigas classes proprietárias.
Entretanto, estas considerações são válidas sobretudo para uma primeira etapa de consolidação das revoluções vitoriosas. A partir de certo ponto, qual a eficácia política de se falar a respeito de fatos que já entraram no cotidiano das pessoas? De fatos que são considerados direitos "naturais"? Os cidadãos dos países socialistas tendem a imaginar que ter emprego, comer, vestir, assistência médica e educação gratuitas são aquisições consolidadas. A revolução já não se legitima por garantir estas conquistas. Além disso, a força militar do bloco socialista e da URSS, em particular, torna cada dia mais problemática a utilização do "espantalho" da ameaça da agressão externa. O mesmo se pode dizer dos lemas relativos ao "homem novo": desgastaram-se com o tempo. O próprio Mao Tsetung reconhecia no fim de sua vida, entre melancólico e cínico, que, na melhor das hipóteses, o homem novo surgiria talvez em algo em torno de trezentos anos. Não chega a ser exatamente exaltante nem eficaz para uma política de mobilização de "massas".
A cada vez maior complexidade das sociedades socialistas modernizadas, a produção de uma "massa crítica" em termos científicos e intelectuais (via sistema educacional) e a própria pujança relativa do desenvolvimento econômico começam a colocar em questão o modelo anterior. O processo não pode mais ser garantido, senão pela conquista da hegemonia: esta é a mensagem essencial de Gorbatchev. E por mais que se fale, como Fidel, que a instabilidade produzida pela perestroika/glasnost resultará na desagregação e na guerra civil, o fato é que, paradoxalmente, essa política é a única alternativa de que dispõe o poder socialista para evitar a estagnação, a opressão cada vez mais insuportável, porque ilegítima, e um lento e seguro processo de decomposição de amplitude e conseqüências imprevisíveis.
Reformar ou estagnar/perecer, este é o dilema irreversível do socialismo realmente existente. Não se trata de mera retórica: é preciso efetivar uma verdadeira revolução na revolução.
Será possível?
Passemos em revista os desafios: gargalos econômicos permanentes (produtividade baixa, absenteísmo, desabastecimento crônico de bens de consumo correntes), estrutura a esclerosada, corrupção endêmica, falta de representação e das lideranças sindicais e políticas "oficiais"/crise de representação. Questionamento da ideologia dominante: ninguém acredita no discurso oficial, nem mesmo as autoridades. O "cimento" ideológico se liquefaz.
Não se trata apenas de reformular a política econômica - este foi o grande equívoco de Deng Xiaoping e do Partido Comunista Chinês - mas de formular alternativas para problemas qualitativamente mais complexos.
As sociedades socialistas precisam escolher um novo modelo econômico, que passe pela crítica dos alicerces do atual: estatização, plano centralizado, dinossauros "comedores de aço" (leia-se: complexo industrial-militar socialista). A democratização do poder político é o horizonte em que essa reorientação de rumos pode se viabilizar, o que, por sua vez, passa pelo reconhecimento da pluralidade de opções ideológicas.
Fácil de dizer. Mas haverá condições para atingir esses objetivos? Poderão ser alcançados através de uma revolução pelo alto? Até quando?
A dosagem dos elementos é extremamente complicada. Na China, os comunistas tentaram reeditar a filosofia da NEP leninista dos anos 20: abrir a economia e manter fechada a estrutura política. Lenin já advertira: "No momento da 'retirada', muita atenção: qualquer descontrole pode resultar em pânico, e a retirada vira debandada". Na China, virou massacre...
Na Polônia, os comunistas já perderam o governo; na Hungria, preparam-se para perdê-lo. Na URSS, abrem-se as brechas: os povos não-russos não agüentam mais a opressão. A questão agrária segue sendo o ponto sensível: até quando a perestroika/glasnost resistirá às filas? As greves já começaram a acontecer: quando surgirá o Solidariedade russo?
As perspectivas não são nada claras.
As organizações alternativas aos PCs conseguirão formular alternativas que empolguem a sociedade? Os PCs se disporão a ceder ou dividir o poder, de fato? Há alguns anos seria implausível pensar nessa hipótese. Os acontecimentos na China confirmam a implausibilidade. Mas na Hungria e na Polônia surgem possibilidades novas. Qual seu fôlego? Na URSS, o Partido Comunista já desistiu de controlar o processo de multiplicação de sociedades autônomas em relação ao Estado. Mas todas ainda prestam tributo ao monopólio da política pelo PCUS. Até quando?
As coisas se complicam quando passamos a analisar as forças sociais que oferecem resistência às mudanças. É muito simplista a idéia de que resiste apenas um grupo minoritário de burocratas/corruptos/autoritários, isolados das "massas". Certamente, estes defenderão com unhas e dentes seus privilégios. Mas o sistema de vantagens sociais (as nossas mordomias) vai muito mais além de um pequeno círculo de dirigentes encastelados e esclerosados no poder. Há, de fato, amplos "coletivos" de operários e empregados ganhando salários incompatíveis com seu nível de produtividade. Empresas cujos produtos são invendáveis pela sua má qualidade continuam existindo graças à boa vontade da sociedade. Outros setores, por estarem vinculados aos dinossauros "comedores de aço", considerados estratégicos, recebem vantagens que deverão desaparecer. E os subsídios setoriais que beneficiam alguns à custa de todos? E os quadros das Forças Armadas e da polícia política? E os guardas dos campos de concentração? Claro, políticas de reconversão já estão sendo estudadas e implementadas. Mas os prejuízos serão incontornáveis, pelo menos numa primeira fase. Quantos se disporão a assumi-los de bom grado?
O socialismo está em crise.
Bendita crise, se soubermos compreendê-la em seu processo histórico, recusando as excomunhões fáceis e os bodes expiatórios, que só desarmam a reflexão crítica e preparam a repetição das tragédias.
Não há receitas à vista. Mas talvez já possamos extrair uma lição maior a necessidade de recuperar o socialismo como um sistema baseado simultaneamente na igualdade e na liberdade. E, no mesmo movimento, reconhecer sempre que, sob nenhuma hipótese, devemos formular projetos para os trabalhadores que não passem pela expressão de sua vontade e de sua consciência.
Daniel Aarão Reis Filho, historiador e autor de vários livros sobre as revoluções chinesa e russa e sobre a esquerda.