EM DEBATE

O 7º Encontro Nacional do PT marcou a abertura da discussão sobre a estratégia política que o partido deve adotar. Essa discussão deverá ser um dos pontos de destaque do 1º Congresso do PT, a realizar-se no segundo semestre de 1991. Várias questões serão debatidas, entre as quais: Qual o papel que desempenha a luta pela democracia no processo de transformação da sociedade? O caminho da luta armada está ultrapassado? A transformação socialista no Brasil supõe necessariamente uma ruptura revolucionária? Desde já, Teoria & Debate abre suas páginas para essa discussão essencial, até agora implícita em várias formulações e na prática de distintos setores do PT. Iniciando o debate, textos de Paulo Vannuchi e Ronald Rocha.

Adeus às armas?

Democracia profana

Adeus às armas?

Abrindo seu polêmico livro sobre a democracia, Francisco Weffort comenta a perplexidade de um certo diplomata norte-americano que se interessou em dialogar com o PT. "Afinal de contas, vocês em 1968 só falavam em revolução. Por que democracia agora?"

Weffort responde com muito brilho à questão, concorde-se ou não com seus argumentos. Mas a verdade é que continuam existindo, efetivamente, muitas indagações sobre qual seria o projeto de longo prazo do PT.

Uma boa parte da "intelligentsia" burguesa cabocla ("burritsia", talvez) insiste em destilar pela imprensa suas noções sobre o caráter extremista do partido. Dirigentes e militantes de base confessam profunda desorientação sobre o assunto. E podemos imaginar a voracidade com que um analista qualquer de informações, egresso do DOI-CODI (que deve ter sucessores), devora o calhamaço contendo as oito teses apresentadas ao 7º Encontro Nacional, em particular nos tópicos sobre estratégia.

Pois bem, discutir a relação que estabelecemos entre democracia e revolução, unificar um ponto de vista partidário sobre o caminho de longo prazo a ser trilhado rumo à transformação da sociedade, são assuntos que fazem parte do tema estratégia.

Ao nascer, o PT resolveu de modo satisfatório o complexo debate a respeito do programa de transformações necessário ao Brasil, imprimindo-lhe maior precisão em 1987, no processo do 5º Encontro. Nesses dez anos de existência, definiu com alguma clareza sua própria concepção orgânica. Confirmou, em diferentes conjunturas, a adoção de uma tática coerente na combatividade e na afirmação da independência de classe. Falta sistematizar, agora, suas definições sobre estratégia, para completar esses quatro pilares que costumam ser exigidos como certidão de identidade de um partido revolucionário.

Acabamos de abrir esse debate, deixando-o praticamente intocado no 7º Encontro, sob o compromisso de encará-lo de frente no congresso a ser realizado em 1991.

Urge aproveitar todos os espaços de discussão partidária no sentido de preparar a militância, desde já, para intervir com força no debate, ampliando-o e democratizando-o. Levando em conta as características essenciais do PT como partido de massa, onde é extremamente heterogêneo o nível de formação teórica, vale a pena gastar algumas linhas com um pouco de esforço didático.

Com a mesma preocupação, uma das teses apresentadas ao 7º Encontro Nacional já arriscava formular uma conceituação unificadora: "vamos entender estratégia como a linha geral, o conjunto de passos e procedimentos, a perspectiva de acumulação de forças, o direcionamento das energias de um partido, sempre num âmbito abrangente e de longo prazo, rumo à conquista de suas metas programáticas. Enquanto a estratégia aborda as definições globais, de longo alcance, a tática cuida das respostas imediatas, específicas ou de curto prazo".

Em resumo: enquanto a discussão sobre programa aponta quais transformações propomos, partindo de uma análise das classes em disputa no cenário nacional, a estratégia se volta para o como chegar lá. O nexo entre as duas questões é evidente. Na história da esquerda tem sido freqüente confundir os dois temas numa escala maior que o tolerável, embolando-se os assuntos de uma forma que só faz dificultar a compreensão. É recomendável, por isso, que no PT se procure distinguir com nitidez os dois campos de debate. No âmbito da análise de classes e das diretrizes programáticas já reunimos um acúmulo razoável. Na estratégia propriamente dita, seguimos engatinhando.

Cabe ainda focalizar, mesmo que em breve resumo, como tem evoluído ao longo da história a discussão sobre estratégia. no conjunto das forças que lutam pelo socialismo desde uma perspectiva revolucionária.

As formulações sobre estratégia ontem

Conceitos bipolares e inseparáveis que são, estratégia e tática foram emprestados à política pela ciência militar. Um dos principais teóricos da guerra, Clausewitz, é responsável por uma definição que se tornou clássica: enquanto a tática cuida da disposição de nossas forças numa batalha, a estratégia consiste em planejar uma sucessão de batalhas para se vencer a guerra.

Vindo do contexto bélico, o conceito de estratégia impregnou o debate político com alguma coloração militar, especialmente nas formulações que prevaleceram por longos anos nos movimentos revolucionários. As sólidas fundamentações marxistas sobre o caráter irreconciliável do choque de classes na sociedade capitalista logicamente ajudaram a reforçar o tom militar que tem marcado o enfoque do tema.

O como chegar lá teve como primeira resposta a via da insurreição. A experiência das revoluções européias do século passado, e particularmente da Comuna Paris, em 1871, e da Revolução Russa de 1917, serviu para firmar um primeiro consenso em torno do caminho insurrecional para a derrota da burguesia.

Nessa estratégia, o aguçamento a níveis extremos de uma crise econômica e social profunda - às vezes coroada pela derrota do país numa guerra externa destruía abruptamente a coesão política e a força repressiva do Estado burguês, tornando possível a explosão revolucionária num rápido intervalo de tempo.

Os agentes sociais interessados na revolução tinham reunido forças para o assalto ao poder após um longo período de acumulação por vias não-armadas: manifestações de rua, mobilizações sindicais, greves, debates doutrinários e construção partidária, alguma ação parlamentar etc. A acumulação não-armada se converte em luta armada com enorme velocidade e desfecho rápido, decidido basicamente em alguns poucos centros urbanos que servem de sede à burocracia civil e militar do Estado. São protagonistas principais da ação revolucionária, nessa via, a classe operária, setores identificados com ela e integrantes das bases das Forças Armadas.

Durante um bom tempo, o caminho estratégico da insurreição foi adotado como paradigma único por forças revolucionárias de vários países. A Terceira Internacional se encarregou, por sua vez, de padronizar essa via como obrigatória para todos os socialistas identificados com a Revolução Bolchevique, até mesmo ali onde a classe operária nem possuísse consistência numérica, abrigando os centros urbanos apenas uma parcela ínfima da população.

O êxito da Revolução Chinesa, em 194X fez subir para dois o número de paradigmas: insistir na via insurrecional, vitoriosa em 1917, ou adotar os princípios estratégicos sistematizados por Mao Tsé-Tung.

Dirigente do Partido Comunista da China. Mao já havia rompido com os preceitos estratégicos da Terceira Internacional na década de 20, sustentando que, na realidade chinesa, o como chegar lá passava pelo desenvolvimento de uma guerra popular prolongada, tendo o camponês como protagonista principal. O enfrentamento militar já se daria desde os primeiros passos de um longo processo de acumulação de forças que previa a liberação gradual de parcelas do território, implantando-se nelas novo sistema político e novas relações de produção, sem que o aparelho central de Estado estivesse ainda sob controle dos revolucionários.

Na China, esse processo demorou pelo menos 22 anos. Muitos outros países percorreram um caminho estratégico semelhante, com maiores ou menores variações: Vietnã, Coréia, Cuba (onde a guerra foi mais rápida) e países africanos.

Oscilando entre os dois referenciais, a discussão sobre estratégia desenvolvida no Brasil na década de 60 e início dos anos 70 não conseguiu formular uma teoria própria sobre os rumos do processo revolucionário brasileiro que se demonstrasse consistente e conseqüente.

Carecendo de formulações próprias, brotadas das próprias raízes históricas do país, alguns prosseguiram defendendo a melhor adequação do caminho insurrecional ao Brasil, argumentando com o ritmo acelerado de seu desenvolvimento capitalista, sua forte industrialização e urbanização. Outros apostaram em diferentes variantes da guerra popular, seja sob a formulação maoísta do cerco das cidades pelo campo, seja sob influência do processo cubano, registrando-se aí desde a adoção literal das teorias de Régis Debray até propostas que procuravam articular campo e cidade numa estratégia guerrilheira global, mas que não conseguiram fugir do "foquismo" na questão fatal do distanciamento entre vanguarda e massas.

Um balanço efetuado na metade da década de 70 mostrou a falência dessas diferentes linhas. De início, muitos imaginaram que a derrota tivesse sido meramente tática, fruto de debilidades orgânicas ou erros na aplicação de uma teoria que seguia sendo vista como correta. Hoje, poucos mantêm tal avaliação. A derrota foi, efetivamente, uma derrota das próprias estratégias aplicadas, que se revelaram todas elas distanciadas de nossa realidade social e cultural, inadequadas ao nível de consciência e de lutas dos trabalhadores, incapazes de orientar um processo de acumulação tendente à vitória.

Não escaparam dessa derrota os agrupamentos que discordaram da ação armada naquele momento e nem mesmo o PCB, que desde os anos 50 se orientou pelas opacas formulações de Nikita Kruchev, apontando a possibilidade de uma transição pacífica ao socialismo, na medida em que o "campo socialista" (esse aí, do Muro de Berlim e de Ceausescu) havia se consolidado e atingido um nível de equilíbrio com as potências capitalistas.

Diga-se, de passagem. que a estratégia da transição pacífica do PCB nunca contou com uma teorização sólida, a menos que se queira levar em conta o esforço dos que tentaram ministrar Gramsci corno tônico rejuvenescedor do combalido partidão. A tentativa heróica merece respeito, mas terminou produzindo um perigoso "gramscismo de direita", confuso amálgama entre as brilhantes pistas abertas pelo marxista italiano e o burocratismo oportunista que já tomava conta dos núcleos decisórios daquela agremiação há um bom tempo.

Por paradoxal que pareça, esse momento em que as várias organizações de esquerda se encontram desmanteladas, na metade da década de 70, coincide com o início de um ciclo, que já dura 15 anos, de constante avanço das lutas e da organização popular. O paradoxo reside não apenas no quadro de derrota vivido no início desse ciclo, mas também no fato de que esse crescimento ocorreu estando a discussão sobre estratégia completamente ausente de nossa pauta ou, pelo menos, sendo inegável que o grosso de nossas energias esteve concentrado em questões imediatas.

O que significa isso? Que a discussão sobre estratégia tornou-se dispensável? É seguro que não. Significa, sim, que esse tema começa a se libertar de uma determinada camisa-de-força que o dogmatizou por várias décadas. Nesse rompimento saudável, a discussão sobre estratégia vai deixando de ser um exercício de futurologia, para converter-se em algo elaborado em concomitância com a prática, antecedendo-a em algumas definições centrais e só podendo se completar como resultado dessa mesma prática.

As formulações atuais no PT

Uma rápida leitura das oito teses apresentadas ao debate do 7º Encontro revela importantes sinais de arejamento na forma como várias correntes se aproximam do tema. Que há divergências profundas, é pacífico. Mas acima delas desponta um nível razoável de coincidência no esforço de modernização.

Há exceção, talvez, das teses apresentadas pela Convergência Socialista e por O Trabalho, que adotam pontos de vista mais ortodoxos (ainda que numa vertente trotskista), predomina no conjunto um enfoque inovador. As noções gramscianas da disputa de hegemonia, importância da sociedade civil, existência de um Estado ampliado, necessidade de se travar uma "guerra de posições" para gradual conquista de espaços políticos rumo às rupturas revolucionárias, e muitas outras ausentes nas formulações dos anos 60, aparecem em quase todas as contribuições.

Observa-se, também, uma boa "desmilitarização" do tratamento da estratégia e reiteradas afirmações de que o poder não apenas se toma, mas também se constrói no cotidiano das lutas populares.

Especialmente promissor é o caminho sugerido pela tese da Articulação, que tenta extrair da própria intuição que vem brotando nesse decênio de lutas e de construção partidária a sistematização do que poderia ser um primeiro esboço da estratégia global do partido. A tese propõe que a linha estratégica do PT seja definida, hoje, apenas em suas balizas mais gerais, deixando-se para responder de modo pormenorizado outro conjunto de questões quando já se tiverem reunido, no processo prático, condições para fazê-lo.

Na fixação de balizas delimitando a raia por onde devem avançar as definições, a Articulação indica a opção pela luta de massa, a construção do partido de massas, a noção de disputa e conquista de hegemonia. a afirmação da democracia como valor universal, a conjugação da luta de classes de modo a articular campo e cidade, a combinação de diferentes formas de luta, com peso corajoso na questão institucional, a perspectiva internacionalista e a alternativa democrático-popular como eixos de importância estratégica, que já puderam emergir de nossa própria experiência.

Mas é óbvio que temos aí apenas um começo. Restam sem resposta questões decisivas que, em termos ideais, já deveriam estar equacionadas muito antes de nosso partido ter chegado tão perto de uma vitória como aquela de 17 de dezembro.

O congresso partidário de 1991 será o momento exato de avançar em muitas das respostas que faltam. Desponta como extremamente positivo, porém, o fato de a discussão se abrir com tantos pontos convergentes, nesta época de derrubada dos muros do dogmatismo. Especialmente no aspecto em que o Estado deixa de ser visto como alvo único de todas as lutas e o conceito de ruptura foge da imagem implícita em alguns projetos tradicionais: clarão que surge no céu com hora marcada, explosão que fende a terra separando o mundo num antes e num depois, perdendo a revolução todo sentido de processualidade, para ser reduzida à canhestra idéia de um golpe ou usurpação.

E como ficam as armas?

Um nó extremamente complicado que falta desatar, nessa modernização da estratégia, é a questão da violência revolucionária. Particularmente para os muitos petistas que já estiveram vinculados a projetos que incorporavam a luta armada, o problema se apresenta com força. Há os que se mantêm excessivamente presos às elaborações clássicas e, por isso, não conseguem sentir ampla confiança no projeto petista, alertando sempre que "as leis da história" terminarão punindo nosso espontaneísmo. E há os que assimilam melhor a dinâmica do reaprender permanente, sem esquecer a necessidade de levar em conta que uma estratégia de libertação dos explorados precisa considerar a possível e provável resistência violenta dos exploradores.

Pois é: na discussão sobre estratégia, como no futebol, existe o time adversário, com projetos diferentes do nosso. Seria mais simples traçar todo um itinerário de lutas rumo à transformação da sociedade, se tivéssemos também o condão de estabelecer qual seria o comportamento do adversário em cada etapa.

Na luta de classes cada contendor desenvolve sua estratégia levando em conta que o adversário tem projetos opostos, que buscam neutralizar ou subjugar o oponente. E, assim, nossas indagações de fundo se impõem: como ficam "los fierros"? Será que nossas armas da crítica serão capazes de substituir a crítica pelas armas?

A complexidade da resposta não reside tanto em seus aspectos ético-filosóficos. Nem mesmo a burguesia. com seu proverbial cinismo, recusa o sagrado direito de rebelião aos povos esmagados pela tirania. Por acaso algum jornal condenou a insurreição que depôs Ceaucescu, ou a farsa judicial que decidiu seu fuzilamento? E mesmo em determinadas revoluções populares, como a que derrubou Somoza em 1979, a burguesia não perdeu muito tempo em condenar a violência dos sandinistas.

A violência de que lançam mão os povos para se libertar da violência institucionalizada da exploração, ou da violência política ditatorial, ou da violência por agressores externos, tem justificativas poderosas na história do Direito, na diplomacia internacional, nos textos bíblicos e de outras religiões, em grandes pensadores.

A complexidade maior está em saber se o recurso à violência é, efetivamente, uma necessidade histórica em determinada conjuntura, se realmente seu emprego corresponde ao único meio para se garantir a evolução da humanidade para níveis superiores de convívio e de produção material e, principalmente, se a passagem de uma luta não-armada para a luta armada expressa, de fato, uma clara disposição política das massas que se erguem contra a dominação e a hegemonia impostas pela burguesia.

Como primeira baliza, a estratégia assumida pelo PT deve afirmar, alto e bom som, nossa opção resoluta pela disputa democrática, sem tomar a iniciativa da violência. Se quisessem, os trabalhadores brasileiros já teriam todas as condições para recorrer às armas, empunhando a bandeira da legítima defesa. Chico Mendes, Nativo da Natividade, Paulo Fontelles, Margarida Alves, Tião da Paz, os metalúrgicos de Volta Redonda, os milhares de torturados ou assassinados pela ditadura militar são provas materiais de que a luta armada já foi proposta pela classe dominante há muitos anos.

Optamos, apesar disso, pelo caminho da disputa pacífica, insistindo em que ele corresponde a um padrão superior de humanidade e de civilização. Somos defensores ardorosos da paz, do desarmamento e da não-violência. A conquista do socialismo sem derramamento de sangue seria, de nossa parte, desejo e sonho ardentes. Mas, na luta política, não podemos nos permitir a ingenuidade criminosa de fazer nossas fantasias ultrapassarem as paredes rígidas do real. Nem temos o direito de expor todas as conquistas populares, que custaram tanto esforço e tantos sacrifícios, a uma destruição completa assim que um general qualquer decida disparar o primeiro tiro. Que ninguém se iluda: a estratégia da disputa de hegemonia não dispensa as operações de defesa das trincheiras e casamatas que vamos erguendo na sociedade civil.

Na boa imagem utilizada na tese da Democracia Socialista, nosso movimento de longo prazo consiste no estabelecimento de um cerco à dominação burguesa sob a forma de uma pinça, onde a luta institucional e a pressão de massa representam os dois braços do instrumento.

Nesse avanço, estamos convictos na disposição de acatar as regras da disputa democrática. Mas aqui começa a ser fixada a segunda baliza, marcando a outra linha da raia: nenhuma experiência histórica, até hoje, no mundo inteiro, mostrou um só episódio em que as classes dominantes tenham acatado o jogo democrático até o ponto de aceitar a perda dos privilégios econômicos e dos mecanismos de poder, sem reagir com violência.

O Brasil poderia ser o primeiro caso? Se estamos mesmo decididos a romper com todos os dogmas, podemos admitir que sim. Mas a evolução histórica de nossa burguesia, a vocação autoritária, intolerante, inflexível e profundamente antidemocrática de nossas elites salta à vista em qualquer compêndio de história. Podemos pressionar as classes dominantes a uma conversão democrática e anunciamos que é esse mesmo o nosso propósito. Mas não podemos planejar todo o futuro histórico de um partido como o PT fiando-nos unicamente nessa hipótese.

Pelo contrário. Embora não seja ainda uma questão absolutamente inadiável na vida de nosso partido. não podemos retardar demais a abertura de discussões sobre mecanismos de organicidade superior, capacidade de sobrevivência a investidas repressivas, autodefesa em áreas de conflito agudo, estudo das experiências internacionais da luta revolucionária e das rebeliões populares ocorridas no Brasil.

De qualquer modo, precisa ficar claro, também na abordagem do problema da violência, que ao assumir o caminho da disputa de hegemonia com a burguesia num processo de longo prazo, deslocamos necessariamente nossa mira do Estado para a sociedade. É nela que agiremos como partido, para mobilizar, dinamizar, conscientizar, diversificar e torná-la mais democratizada, pluralista e exigente em sua fiscalização sobre o Estado.

Isso não quer dizer que o Estado, ao modernizar-se, tenha perdido seu caráter de síntese das contradições presentes na sociedade e instrumento de dominação de uma(s) classe(s) sobre outra(s).

A conquista do Estado ou, melhor que isso, sua radical transformação revolucionária, permanece sendo, portanto, um objetivo estratégico central em nossa luta de longo prazo. Mas essa ruptura política só possuirá real eficácia revolucionária quando for: a) resultado de uma nova hegemonia social: b) concomitante a um amplo revolucionamento da sociedade, c) capaz de produzir na esfera das relações humanas (subjetividade, normas de convívio, cultura, ética, costumes, espiritualidade, sexualidade) mudanças tão profundas quanto as propostas nos campos econômico e político.

Além disso, a conquista do Estado não pode ser vista como ruptura revolucionária final. Ela precisa ser entendida como um elo decisivo numa seqüência de rupturas que vêm de longe e já são elementos de nosso presente. Foram rupturas revolucionárias, nesse sentido. o surgimento do PT, a construção da CUT, a Teologia da Libertação, a irrupção dos movimentos populares e dos sem-terra, a explosão ecológica, as vitórias eleitorais de 1988, a memorável campanha presidencial de Lula e da Frente Brasil Popular e muitas outras.

Nessa nova perspectiva, a revolução não perde seu conteúdo angular de meta utópica posta no horizonte de todas as lutas, mas converte-se, também, em desafio da vida cotidiana.

O controle do Estado pelos trabalhadores não é o fim da viagem, nem conquista irreversível. Tanto pode significar o adeus da burguesia às suas velhas ferramentas de fraude política, manipulação parlamentar e extermínio pela repressão, quanto pode representar tão-somente um período de aprendizado superior, interrompido com uma derrota eleitoral que - a Nicarágua mostra - instala novamente no poder os setores alijados na disputa anterior.

Nas atuais condições brasileiras desponta como evolução possível o avanço do nosso movimento de pinça até o nível de superar a força das elites. Crescendo no campo institucional, amadurecendo nosso projeto nas experiências concretas de administração municipal e estadual, conquistando aperfeiçoamentos gigantescos nas estruturas democráticas e estruturando uma ampla rede nacional de organismos de poder popular a partir das bases (sindicatos, associações de bairro e movimentos), podemos perfeitamente reunir condições para vencer uma eleição presidencial.

Poderão abrir-se, dessa forma, condições inéditas para imprimir uma profunda guinada estratégica na correlação de forças entre as classes sociais no Brasil.

Nessa hipótese, ao invés de cair por terra tudo o que vem sendo sistematizado sobre a estratégia, estaremos chamados a concretizar em novos patamares nosso campo de hegemonia, distinguir com exatidão poder e governo e, sobretudo, reunir energias, recursos e mobilização social suficientes para desarmar a resistência dos exploradores.

Paulo Vannuchi é militante do PT, jornalista, assessor político e sindical.

Democracia profana

A questão democrática se transformou em assunto quase exclusivo de setores da esquerda brasileira. Tal fenômeno, felizmente, se contrapõe ao corporativismo e ao doutrinarismo economicistas, e sobretudo às tiranias burocráticas. Mas indica também um deslocamento temático preocupante: desagrega a centralidade categorial da revolução na estratégia. A democracia institucional vem sendo vista como valor universal, conduto privilegiado, fim manifesto e núcleo conceitual da política socialista. Tal inflexão possui antecedentes internacionais, uma história no terreno nacional, contemporaneidade e repercussão político-prática.

Os antecedentes podem ser encontrados nas correntes que hegemonizaram o período oportunista da 2º Internacional. Kautsky e Bernstein estavam de acordo na separação metafísica entre as instituições democráticas e o Estado. Assim, ambos convergiram para o mito da transição ao socialismo pela via eleitoral. O primeiro, pela ótica do evolucionismo objetivista, afirmando que o socialismo seria o fruto inevitável da evolução orgânica do capitalismo. O segundo, pelo ângulo do neokantismo, sustentando que o socialismo seria a culminância de uma cruzada moral visando ganhar a sociedade civil burguesa para ideais eticamente superiores. Seus apoiadores abdicaram da "arma da crítica" contra a democracia do capital e se opuseram à primeira "crítica das armas" vitoriosa contra o capitalismo em outubro de 1917.

Herdeiros dessa ortodoxia, os "austromarxistas" viram o proletariado como uma espécie de messias e ao mesmo tempo sumo-sacerdote da democracia parlamentar, reduzindo o direito histórico-moral das massas à sublevação à simples defesa das instituições democráticas. Como desejou Otto Bauer: "Os trabalhadores austríacos fundaram a República democrática e a impuseram à burguesia. Vamos utilizar esta República para tomar o poder por meios democráticos... Só no caso de termos de defender a democracia contra a contra-revolução não nos restaria outra opção senão a de combater por meios violentos. A violência, em nosso programa, desempenha um papel apenas defensivo."

Para poupar essa tese da acusação de ignorar a violência institucionalizada do capital, bem como de legitimar o Estado e a sociedade civil burgueses, seria necessário comprovar uma autonomia radical das instituições democráticas. Perseguindo esse projeto teórico impossível, ainda hoje seus partidários tentam despir a democracia formal da sua particularidade de classe e do seu caráter de instituição estatal, apresentando-a como invenção e conquista unilaterais e infinitas dos trabalhadores. Não conseguem percebê-la como resultado multilateral e finito da práxis do homem real no interior da luta de classes e das formações sociais burguesas, aqui entendidas como ambiência que engloba as forças do capital enquanto personagens indescartáveis.

Porém, como a história humana não pode ser reduzida à história das idéias, torna-se preciso encontrar, no terreno nacional, o lugar das ilusões parlamentares-institucionais. A primazia burguesa no Brasil se afirmou como no conceito gramsciano de "revolução passiva", gerando uma desconfiança emblemática das classes dominantes em relação às liberdades políticas e forte presença dos métodos coercitivos. Tal via resultou na fragilidade estrutural das instituições democráticas.

Nesse quadro, a crítica socialista, quando escapou da esterilidade causada pelo doutrinarismo isolacionista, dirigiu-se não contra a democracia burguesa mas contra sua inexistência. Considerando ainda que a negação niilista da política é por definição ausente nos movimentos orgânicos de esquerda e impotente como formulador teórico, a democracia aparece então como um problema exclusivamente dos trabalhadores, enquanto sua carência é creditada à burguesia.

Democrata, como na simplória equação de Stalin, para quem a burguesia traiu a democracia e abandonou historicamente sua bandeira ao proletariado, seria sinônimo de anticapitalista. Na estratégia reformista para o socialismo no Brasil tornou-se comum, durante décadas, aferrar-se à chamada etapa democrático-burguesa. Cristalizou-se uma cultura esdrúxula: convidar os trabalhadores a incorporarem, como seu valor, um projeto institucional que a burguesia supostamente não desejou ou não pôde realizar, nem desejará ou poderá fazê-lo.

O regime militar foi visto, assim, mais como império do arbítrio do que como contra-revolução aberta. A hegemonia burguesa na oposição ao regime de 64 tensionou mais ainda o processo de retração da plataforma democrática à mera exigência do Estado de Direito nos marcos da normalidade constitucional. O desfecho da campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República marca a domesticação momentânea do impulso democrático de massas e a reafirmação da primazia liberal.

A transição se inaugura sob o "absolutismo" da questão democrático-institucional, exacerbado pela hegemonia monopolista, o continuísmo da tutela militar e o caráter altamente restritivo da liberalização em curso. É preciso esclarecer: este "absolutismo" não reside no reconhecimento geral da importância da luta democrática, politicamente desejável, mas na sua conversão em projeto liberal-conservador, com o abandono das questões econômico-sociais, nacional, agrária, ideológico-culturais e, principalmente, da abordagem do poder. A crítica da chamada burguesia progressista à transição-conservadora aponta, assim, durante o governo Sarney, para a frustração liberal e uma disputa natimorta com o neoliberalismo, que opera muito próximo de suas premissas doutrinárias, porém mais afinado com o "espírito do tempo".

Semelhante viés, longe de ser um eco do velho liberalismo, vem ungido com os óleos da modernidade. A bancarrota das tiranias burocráticas do Leste é tida como simples emergência da democracia formal que lhes faltou e abundaria no capitalismo do Oeste. Esta crítica superficial – e complacente! – às formações sociais em crise na Europa Oriental e na China é reforçada pelo "pós-marxismo" que, partindo de uma justa demarcação com os equívocos e crimes cometidos em nome do socialismo, especializou-se em dissolver a estratégia revolucionária. Calcados em uma simetria filosófica em relação ao stalinismo, inspirados enfim no idealismo moral e no irracionalismo contemporâneo, vários autores de passado marxista associam absoluta e mecanicamente os fracassos das tiranias burocráticas às revoluções originárias e buscam resgatar fórmulas evolucionistas para o movimento socialista.

Quais são os fundamentos teóricos do deslocamento temático que marginalizou o conceito de revolução social e restabeleceu, quase oitenta anos depois da falência total da social-democracia, a centralidade categorial da questão democrático-eleitoral na reflexão estratégica?

Salta aos olhos o tratamento exclusivamente abstrato que vem sendo conferido à questão democrática: a democracia como valor universal. Divinizada como absoluta como "absoluta mediação", isola-se no alto de sua torre de marfim, sem o pecado original do concreto. Os socialistas podem ignorá-la como relação social, estabelecida pelo Homem real no interior de uma sociedade particular enquanto instituição do Estado?

A democracia deve ser vista como totalidade. Segundo Hegel "o conceito tem (...) as três determinações particulares, isto é, o universal, o particular e o individual." Reduzir a democracia ao momento universal, transformá-la em universalidade abstrata, sem particularidade de classe, é uma postura que potencializa ilusões.

A dissolução categorial da liberdade na democracia burguesa, ou seja, do valor universal no momento particular, é a base teórica do doutrinarismo. Mas a dissolução categorial da democracia burguesa na liberdade, isto é, do momento particular no valor universal, tem sido a base teórica do liberal-reformismo. Na primeira racionalidade, a liberdade só interessa à burguesia, o que desconstitui a luta democrática sob o capitalismo e os direitos formais nas sociedades pós-revolucionárias. Na segunda, a democracia burguesa é neutra e o espaço por excelência da liberdade do sujeito, o que desagrega o caráter revolucionário da política e o de classe do Estado socialista.

Quando o enfoque meramente abstrato ultrapassa a epistemologia e penetra o terreno axiológico, a democracia formal se torna moralidade e se compatibiliza ideologicamente com as instituições do Estado burguês. A democracia é vista como o terreno incolor das disputas políticas "civilizadas" e o Estado como uma correlação de forças.

Se tal concepção chega ao paroxismo, a democracia burguesa assume um valor supraclassista, como se fosse o habitat da igualdade política. É mistificada, para utilizar os conceitos da metafísica kantiana dos costumes, em um "imperativo categórico que, sem referência a propósito algum, isto é, sem nenhum outro fim, declara a ação objetivamente necessária em si, tem o valor de um princípio apodíctico-prático". Um ato elícito, no sentido de que se pretende realizar tendo a vontade moral como causa imediata e única. Opera-se uma ideação dogmática, dissolvendo o estatuto próprio da política. Ao contrário, uma ética marxista tematizará a moralidade comportamental da democracia interna ao movimento operário e aos partidos socialistas, bem como das relações entre partidos, classes e massas no bloco histórico. Sem falar nos valores que o projeto comunista precisa incorporar e que devem ser praticados cotidianamente.

Ora, na democracia burguesa, como lembra Décio Saes, "direitos como a liberdade de reunião, de associação, de palavra e de imprensa são usufruídos prioritariamente pelas classes proprietárias, que dispõem de prédios, gráficas, dinheiro e tudo quanto seja necessário para transportar essas liberdades do plano da Constituição para o plano da prática política cotidiana de classe." Quem participou da última campanha presidencial conheceu o imenso poder das instituições privadas de hegemonia. A chacina de Volta Redonda elucidou o papel repressor do Estado na democracia formal e testemunha que as leis burguesas não constituem a quintessência da justiça mas o parâmetro da coerção.

A exaltação do suposto valor da democracia acima das classes legitima as instituições burguesas. A política é vista como ação meramente construtiva, uma espécie de eco do contratualismo. Aparece como ato individual de cessão positiva que legaliza uma vontade tangida pela moralidade. Daí o acento unilateral na construção da hegemonia, que passa a monopolizar a estratégia. A dimensão destrutiva, indispensável a toda e qualquer política revolucionária, entra em eclipse.

Surge uma incompatibilidade ontológica com a concepção marxista, que tematizou a negatividade em política: a revolução social pressupõe a destruição das relações sociais e do Estado burgueses, condição incontornável para o processo de humanização do Homem real. Depois de Marx, o ser revolucionário se distinguirá radicalmente do realismo cínico e da mera reforma social. Rejeitará unia política da e solução, do simples aperfeiçoamento das instituições, da ordem, que dispensa o enfrentamento político com o Estado, a violência revolucionária, a ruptura.

Ao mesmo tempo em que gerou um profundo carecimento democrático, a história do Brasil - com seus efêmeros períodos semiliberais, a truculência das classes dominantes, suas institucionalizações pelo topo, a militarização do Estado e a fusão de seus órgãos com os grupos monopolistas-financeiros e a hegemonia passiva desautoriza as quimeras. A política socialista deve captar esta "sugestão" do real. Realçar a importância da luta pelos direitos democráticos no interior do capitalismo, mas recusar a democracia burguesa como horizonte estratégico, isto é, como projeto histórico-subjetivo, como valor e como conduto por onde deve fluir necessariamente a revolução.

A política socialista e a questão democrática

Frente a posturas e perspectivas tão diferenciadas, não se deve alentar um falso consenso. Afirmar genericamente a democracia como valor estratégico recoloca imediatamente as mesmas indagações originárias que, se não abordadas de maneira clara, franca e crítica, continuarão gerando uma eterna circularidade nas formulações. Afinal, que concepção de democracia os socialistas devem ter? O que entendem por valor em política? Em que sentido a democracia é um valor estratégico? A manutenção e o aprofundamento da independência de classe do PT se vinculam às respostas que nós, petistas, ofereçamos a tais perguntas.

A positividade valorativa que os socialistas devem atribuir à democracia sob o capitalismo não diz respeito à sua universalidade abstrata, mas à dimensão concreta de liberdades individuais e coletivas que foi também uma conquista histórica das massas - articula-se com os limites da sociedade burguesa, eventualmente se aprofunda ou se desfaz no curso da luta de classes e possui inestimável importância estratégica. Estratégia entendida não em sua dimensão de fim, onde a democracia burguesa se converteria em etapa, mas na dimensão de terreno social-global da disputa, onde se afirma como um problema nacional.

Sob este ângulo, a democracia burguesa se torna uma escola da luta socialista, onde os trabalhadores realizam o aprendizado político. É o regime político burguês que melhores oportunidades oferece ao desenvolvimento da "guerra de posição". Representa, nas condições da sociedade capitalista, um exercício de cidadania e dignidade humana do qual os trabalhadores não podem se omitir, sob pena de se abandonarem às formas mais alienantes e ultrajantes de exploração e opressão. É neste sentido que Lenin afirmou: "a revolução socialista é impossível sem a luta pela democracia". Especialmente no Brasil, o proletariado não chegará à consciência socialista sem travar a luta democrática.

Tais parâmetros não substituem a crítica à democracia burguesa, condição sine qua non para que o movimento socialista ultrapasse a espontaneidade de ideologia dominante e o senso comum liberal. Contra o "espírito do tempo", a obra deste Marx cotidianamente morto pelos ideólogos do capital se refere ao mito: "A democracia política é cristã no sentido de que o homem, não só um homem, mas todo homem, é nela considerado como ser soberano e ser supremo; mas é o homem ignorante, insociável, o homem tal como na sua existência fortuita, o homem como foi corrompido, perdido para si mesmo, alienado, sujeito ao domínio das condições e elementos inumanos, por toda a organização da nossa sociedade - numa palavra, o homem que ainda não surge como real ser genérico".

Alguns séculos de dominação burguesa já deveriam ser mais que suficientes para que todos os socialistas soubessem que a democracia sob o capitalismo é e será uma democracia do capital, a liberdade formal para homens e mulheres reais em sua profunda desigualdade social, jamais uma democracia real. Valor mitificado, é mais que uma instituição objetiva do Estado burguês: converte-se em instrumento ideológico de poder político, em nome do qual se reproduz um consenso e se aplica o monopólio da coerção, pratica-se uma hegemonia e uma ditadura de classe.

Quando a estratégia é considerada na dimensão de fim político, a democracia deve ser vista como mediação histórico-concreta, mas agora em uma qualidade nova, que supõe a ruptura com as instituições democrático-burguesas: democracia socialista. A repulsa às tiranias burocráticas reafirma toda a importância dos direitos formais, inclusive à pluralidade, à liberdade de expressão e à autonomia das entidades representativas perante o Estado. Mas a democracia socialista vai muito além: é a síntese da liberdade formal com a liberdade real. Supõe o processo de apropriação social dos meios de produção, com o controle dos trabalhadores e a planificação democraticamente fundados. Implica a organização do proletariado em classe dominante, incluindo a participação do povo no aparato militar. Exige a presença das massas no exercício da coisa pública através da transformação dos órgãos de luta em órgãos democráticos de poder. Só assim a hegemonia poderá ser efetivamente o princípio diretor da transição socialista. Portanto, as "Soluções" adjetivas e substantivas pretendem simplesmente reformar uma concepção falida. Socialismo democrático? Socialismo com democracia? Ultrapassando os remendos no chamado "socialismo real", os revolucionários precisam se desvencilhar da herança burocrática e reconceituar o socialismo: rejeitar a categoria economicista que legitima como socialista uma formação social antidemocrática, sem democracia. O socialismo é intrínseca e conceitualmente democrático, portador de democracia. Onde não há democracia socialista o socialismo não se mantém, desagrega-se como categoria teórica e sistema social. Eis a principal experiência a extrair de décadas de stalinismo e da crise em curso no Leste Europeu: "socialismo" sem democracia socialista não é socialismo, é a tirania burocrática do capital de Estado.

O socialismo precisa também ser revolucionário no seu próprio âmago categorial, pois sua realização exige, além de uma objetividade determinada, uma subjetividade densa e complexa, sem a qual estará paralisada a transição para a sociedade humano-universal. Tal subjetividade é libertaria: Marx chamou o comunismo de "associação dos indivíduos livres". A "democracia" já não será uma instituição do Estado e da sociedade civil classistas. Será uma legalidade desalienada, no interior do não-Estado e sem particularidade de classe. Aí sim, um valor universal, mas constituído pela práxis do Homem real.

Nessa perspectiva, como conceito histórico-social, a liberdade se converte em não-democracia política, pois o direito já não será o parâmetro do monopólio de uma coerção e uma hegemonia de classe, nem mesmo da ditadura proletária: ou seja, deixará de ser "o direito da desigualdade." Melhor é falar em uma sociedade verdadeiramente democrática e suas instituições autônomas, nas quais o gênero humano poderá se reconhecer. A propriedade universal é a não-propriedade, a democracia universal será a não-democracia. Este é o valor que os socialistas devem cultivar enquanto projeto histórico.

Por que orar para a divindade desta nossa pré-história política, que no templo da pós-modernidade dissolve as fronteiras entre esquerda e direita, se a democracia socialista é a mediação profana da mais bela de todas as imaginações?

Ronald Rocha é membro do Diretório Nacional do PT e do Conselho Editorial de Teoria & Debate.

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