Abrindo seu polêmico livro sobre a democracia, Francisco Weffort comenta a perplexidade de um certo diplomata norte-americano que se interessou em dialogar com o PT. "Afinal de contas, vocês em 1968 só falavam em revolução. Por que democracia agora?"
Weffort responde com muito brilho à questão, concorde-se ou não com seus argumentos. Mas a verdade é que continuam existindo, efetivamente, muitas indagações sobre qual seria o projeto de longo prazo do PT.
Uma boa parte da "intelligentsia" burguesa cabocla ("burritsia", talvez) insiste em destilar pela imprensa suas noções sobre o caráter extremista do partido. Dirigentes e militantes de base confessam profunda desorientação sobre o assunto. E podemos imaginar a voracidade com que um analista qualquer de informações, egresso do DOI-CODI (que deve ter sucessores), devora o calhamaço contendo as oito teses apresentadas ao 7º Encontro Nacional, em particular nos tópicos sobre estratégia.
Pois bem, discutir a relação que estabelecemos entre democracia e revolução, unificar um ponto de vista partidário sobre o caminho de longo prazo a ser trilhado rumo à transformação da sociedade, são assuntos que fazem parte do tema estratégia.
Ao nascer, o PT resolveu de modo satisfatório o complexo debate a respeito do programa de transformações necessário ao Brasil, imprimindo-lhe maior precisão em 1987, no processo do 5º Encontro. Nesses dez anos de existência, definiu com alguma clareza sua própria concepção orgânica. Confirmou, em diferentes conjunturas, a adoção de uma tática coerente na combatividade e na afirmação da independência de classe. Falta sistematizar, agora, suas definições sobre estratégia, para completar esses quatro pilares que costumam ser exigidos como certidão de identidade de um partido revolucionário.
Acabamos de abrir esse debate, deixando-o praticamente intocado no 7º Encontro, sob o compromisso de encará-lo de frente no congresso a ser realizado em 1991.
Urge aproveitar todos os espaços de discussão partidária no sentido de preparar a militância, desde já, para intervir com força no debate, ampliando-o e democratizando-o. Levando em conta as características essenciais do PT como partido de massa, onde é extremamente heterogêneo o nível de formação teórica, vale a pena gastar algumas linhas com um pouco de esforço didático.
Com a mesma preocupação, uma das teses apresentadas ao 7º Encontro Nacional já arriscava formular uma conceituação unificadora: "vamos entender estratégia como a linha geral, o conjunto de passos e procedimentos, a perspectiva de acumulação de forças, o direcionamento das energias de um partido, sempre num âmbito abrangente e de longo prazo, rumo à conquista de suas metas programáticas. Enquanto a estratégia aborda as definições globais, de longo alcance, a tática cuida das respostas imediatas, específicas ou de curto prazo".
Em resumo: enquanto a discussão sobre programa aponta quais transformações propomos, partindo de uma análise das classes em disputa no cenário nacional, a estratégia se volta para o como chegar lá. O nexo entre as duas questões é evidente. Na história da esquerda tem sido freqüente confundir os dois temas numa escala maior que o tolerável, embolando-se os assuntos de uma forma que só faz dificultar a compreensão. É recomendável, por isso, que no PT se procure distinguir com nitidez os dois campos de debate. No âmbito da análise de classes e das diretrizes programáticas já reunimos um acúmulo razoável. Na estratégia propriamente dita, seguimos engatinhando.
Cabe ainda focalizar, mesmo que em breve resumo, como tem evoluído ao longo da história a discussão sobre estratégia. no conjunto das forças que lutam pelo socialismo desde uma perspectiva revolucionária.
As formulações sobre estratégia ontem
Conceitos bipolares e inseparáveis que são, estratégia e tática foram emprestados à política pela ciência militar. Um dos principais teóricos da guerra, Clausewitz, é responsável por uma definição que se tornou clássica: enquanto a tática cuida da disposição de nossas forças numa batalha, a estratégia consiste em planejar uma sucessão de batalhas para se vencer a guerra.
Vindo do contexto bélico, o conceito de estratégia impregnou o debate político com alguma coloração militar, especialmente nas formulações que prevaleceram por longos anos nos movimentos revolucionários. As sólidas fundamentações marxistas sobre o caráter irreconciliável do choque de classes na sociedade capitalista logicamente ajudaram a reforçar o tom militar que tem marcado o enfoque do tema.
O como chegar lá teve como primeira resposta a via da insurreição. A experiência das revoluções européias do século passado, e particularmente da Comuna Paris, em 1871, e da Revolução Russa de 1917, serviu para firmar um primeiro consenso em torno do caminho insurrecional para a derrota da burguesia.
Nessa estratégia, o aguçamento a níveis extremos de uma crise econômica e social profunda - às vezes coroada pela derrota do país numa guerra externa destruía abruptamente a coesão política e a força repressiva do Estado burguês, tornando possível a explosão revolucionária num rápido intervalo de tempo.
Os agentes sociais interessados na revolução tinham reunido forças para o assalto ao poder após um longo período de acumulação por vias não-armadas: manifestações de rua, mobilizações sindicais, greves, debates doutrinários e construção partidária, alguma ação parlamentar etc. A acumulação não-armada se converte em luta armada com enorme velocidade e desfecho rápido, decidido basicamente em alguns poucos centros urbanos que servem de sede à burocracia civil e militar do Estado. São protagonistas principais da ação revolucionária, nessa via, a classe operária, setores identificados com ela e integrantes das bases das Forças Armadas.
Durante um bom tempo, o caminho estratégico da insurreição foi adotado como paradigma único por forças revolucionárias de vários países. A Terceira Internacional se encarregou, por sua vez, de padronizar essa via como obrigatória para todos os socialistas identificados com a Revolução Bolchevique, até mesmo ali onde a classe operária nem possuísse consistência numérica, abrigando os centros urbanos apenas uma parcela ínfima da população.
O êxito da Revolução Chinesa, em 194X fez subir para dois o número de paradigmas: insistir na via insurrecional, vitoriosa em 1917, ou adotar os princípios estratégicos sistematizados por Mao Tsé-Tung.
Dirigente do Partido Comunista da China. Mao já havia rompido com os preceitos estratégicos da Terceira Internacional na década de 20, sustentando que, na realidade chinesa, o como chegar lá passava pelo desenvolvimento de uma guerra popular prolongada, tendo o camponês como protagonista principal. O enfrentamento militar já se daria desde os primeiros passos de um longo processo de acumulação de forças que previa a liberação gradual de parcelas do território, implantando-se nelas novo sistema político e novas relações de produção, sem que o aparelho central de Estado estivesse ainda sob controle dos revolucionários.
Na China, esse processo demorou pelo menos 22 anos. Muitos outros países percorreram um caminho estratégico semelhante, com maiores ou menores variações: Vietnã, Coréia, Cuba (onde a guerra foi mais rápida) e países africanos.
Oscilando entre os dois referenciais, a discussão sobre estratégia desenvolvida no Brasil na década de 60 e início dos anos 70 não conseguiu formular uma teoria própria sobre os rumos do processo revolucionário brasileiro que se demonstrasse consistente e conseqüente.
Carecendo de formulações próprias, brotadas das próprias raízes históricas do país, alguns prosseguiram defendendo a melhor adequação do caminho insurrecional ao Brasil, argumentando com o ritmo acelerado de seu desenvolvimento capitalista, sua forte industrialização e urbanização. Outros apostaram em diferentes variantes da guerra popular, seja sob a formulação maoísta do cerco das cidades pelo campo, seja sob influência do processo cubano, registrando-se aí desde a adoção literal das teorias de Régis Debray até propostas que procuravam articular campo e cidade numa estratégia guerrilheira global, mas que não conseguiram fugir do "foquismo" na questão fatal do distanciamento entre vanguarda e massas.
Um balanço efetuado na metade da década de 70 mostrou a falência dessas diferentes linhas. De início, muitos imaginaram que a derrota tivesse sido meramente tática, fruto de debilidades orgânicas ou erros na aplicação de uma teoria que seguia sendo vista como correta. Hoje, poucos mantêm tal avaliação. A derrota foi, efetivamente, uma derrota das próprias estratégias aplicadas, que se revelaram todas elas distanciadas de nossa realidade social e cultural, inadequadas ao nível de consciência e de lutas dos trabalhadores, incapazes de orientar um processo de acumulação tendente à vitória.
Não escaparam dessa derrota os agrupamentos que discordaram da ação armada naquele momento e nem mesmo o PCB, que desde os anos 50 se orientou pelas opacas formulações de Nikita Kruchev, apontando a possibilidade de uma transição pacífica ao socialismo, na medida em que o "campo socialista" (esse aí, do Muro de Berlim e de Ceausescu) havia se consolidado e atingido um nível de equilíbrio com as potências capitalistas.
Diga-se, de passagem. que a estratégia da transição pacífica do PCB nunca contou com uma teorização sólida, a menos que se queira levar em conta o esforço dos que tentaram ministrar Gramsci corno tônico rejuvenescedor do combalido partidão. A tentativa heróica merece respeito, mas terminou produzindo um perigoso "gramscismo de direita", confuso amálgama entre as brilhantes pistas abertas pelo marxista italiano e o burocratismo oportunista que já tomava conta dos núcleos decisórios daquela agremiação há um bom tempo.
Por paradoxal que pareça, esse momento em que as várias organizações de esquerda se encontram desmanteladas, na metade da década de 70, coincide com o início de um ciclo, que já dura 15 anos, de constante avanço das lutas e da organização popular. O paradoxo reside não apenas no quadro de derrota vivido no início desse ciclo, mas também no fato de que esse crescimento ocorreu estando a discussão sobre estratégia completamente ausente de nossa pauta ou, pelo menos, sendo inegável que o grosso de nossas energias esteve concentrado em questões imediatas.
O que significa isso? Que a discussão sobre estratégia tornou-se dispensável? É seguro que não. Significa, sim, que esse tema começa a se libertar de uma determinada camisa-de-força que o dogmatizou por várias décadas. Nesse rompimento saudável, a discussão sobre estratégia vai deixando de ser um exercício de futurologia, para converter-se em algo elaborado em concomitância com a prática, antecedendo-a em algumas definições centrais e só podendo se completar como resultado dessa mesma prática.
As formulações atuais no PT
Uma rápida leitura das oito teses apresentadas ao debate do 7º Encontro revela importantes sinais de arejamento na forma como várias correntes se aproximam do tema. Que há divergências profundas, é pacífico. Mas acima delas desponta um nível razoável de coincidência no esforço de modernização.
Há exceção, talvez, das teses apresentadas pela Convergência Socialista e por O Trabalho, que adotam pontos de vista mais ortodoxos (ainda que numa vertente trotskista), predomina no conjunto um enfoque inovador. As noções gramscianas da disputa de hegemonia, importância da sociedade civil, existência de um Estado ampliado, necessidade de se travar uma "guerra de posições" para gradual conquista de espaços políticos rumo às rupturas revolucionárias, e muitas outras ausentes nas formulações dos anos 60, aparecem em quase todas as contribuições.
Observa-se, também, uma boa "desmilitarização" do tratamento da estratégia e reiteradas afirmações de que o poder não apenas se toma, mas também se constrói no cotidiano das lutas populares.
Especialmente promissor é o caminho sugerido pela tese da Articulação, que tenta extrair da própria intuição que vem brotando nesse decênio de lutas e de construção partidária a sistematização do que poderia ser um primeiro esboço da estratégia global do partido. A tese propõe que a linha estratégica do PT seja definida, hoje, apenas em suas balizas mais gerais, deixando-se para responder de modo pormenorizado outro conjunto de questões quando já se tiverem reunido, no processo prático, condições para fazê-lo.
Na fixação de balizas delimitando a raia por onde devem avançar as definições, a Articulação indica a opção pela luta de massa, a construção do partido de massas, a noção de disputa e conquista de hegemonia. a afirmação da democracia como valor universal, a conjugação da luta de classes de modo a articular campo e cidade, a combinação de diferentes formas de luta, com peso corajoso na questão institucional, a perspectiva internacionalista e a alternativa democrático-popular como eixos de importância estratégica, que já puderam emergir de nossa própria experiência.
Mas é óbvio que temos aí apenas um começo. Restam sem resposta questões decisivas que, em termos ideais, já deveriam estar equacionadas muito antes de nosso partido ter chegado tão perto de uma vitória como aquela de 17 de dezembro.
O congresso partidário de 1991 será o momento exato de avançar em muitas das respostas que faltam. Desponta como extremamente positivo, porém, o fato de a discussão se abrir com tantos pontos convergentes, nesta época de derrubada dos muros do dogmatismo. Especialmente no aspecto em que o Estado deixa de ser visto como alvo único de todas as lutas e o conceito de ruptura foge da imagem implícita em alguns projetos tradicionais: clarão que surge no céu com hora marcada, explosão que fende a terra separando o mundo num antes e num depois, perdendo a revolução todo sentido de processualidade, para ser reduzida à canhestra idéia de um golpe ou usurpação.
E como ficam as armas?
Um nó extremamente complicado que falta desatar, nessa modernização da estratégia, é a questão da violência revolucionária. Particularmente para os muitos petistas que já estiveram vinculados a projetos que incorporavam a luta armada, o problema se apresenta com força. Há os que se mantêm excessivamente presos às elaborações clássicas e, por isso, não conseguem sentir ampla confiança no projeto petista, alertando sempre que "as leis da história" terminarão punindo nosso espontaneísmo. E há os que assimilam melhor a dinâmica do reaprender permanente, sem esquecer a necessidade de levar em conta que uma estratégia de libertação dos explorados precisa considerar a possível e provável resistência violenta dos exploradores.
Pois é: na discussão sobre estratégia, como no futebol, existe o time adversário, com projetos diferentes do nosso. Seria mais simples traçar todo um itinerário de lutas rumo à transformação da sociedade, se tivéssemos também o condão de estabelecer qual seria o comportamento do adversário em cada etapa.
Na luta de classes cada contendor desenvolve sua estratégia levando em conta que o adversário tem projetos opostos, que buscam neutralizar ou subjugar o oponente. E, assim, nossas indagações de fundo se impõem: como ficam "los fierros"? Será que nossas armas da crítica serão capazes de substituir a crítica pelas armas?
A complexidade da resposta não reside tanto em seus aspectos ético-filosóficos. Nem mesmo a burguesia. com seu proverbial cinismo, recusa o sagrado direito de rebelião aos povos esmagados pela tirania. Por acaso algum jornal condenou a insurreição que depôs Ceaucescu, ou a farsa judicial que decidiu seu fuzilamento? E mesmo em determinadas revoluções populares, como a que derrubou Somoza em 1979, a burguesia não perdeu muito tempo em condenar a violência dos sandinistas.
A violência de que lançam mão os povos para se libertar da violência institucionalizada da exploração, ou da violência política ditatorial, ou da violência por agressores externos, tem justificativas poderosas na história do Direito, na diplomacia internacional, nos textos bíblicos e de outras religiões, em grandes pensadores.
A complexidade maior está em saber se o recurso à violência é, efetivamente, uma necessidade histórica em determinada conjuntura, se realmente seu emprego corresponde ao único meio para se garantir a evolução da humanidade para níveis superiores de convívio e de produção material e, principalmente, se a passagem de uma luta não-armada para a luta armada expressa, de fato, uma clara disposição política das massas que se erguem contra a dominação e a hegemonia impostas pela burguesia.
Como primeira baliza, a estratégia assumida pelo PT deve afirmar, alto e bom som, nossa opção resoluta pela disputa democrática, sem tomar a iniciativa da violência. Se quisessem, os trabalhadores brasileiros já teriam todas as condições para recorrer às armas, empunhando a bandeira da legítima defesa. Chico Mendes, Nativo da Natividade, Paulo Fontelles, Margarida Alves, Tião da Paz, os metalúrgicos de Volta Redonda, os milhares de torturados ou assassinados pela ditadura militar são provas materiais de que a luta armada já foi proposta pela classe dominante há muitos anos.
Optamos, apesar disso, pelo caminho da disputa pacífica, insistindo em que ele corresponde a um padrão superior de humanidade e de civilização. Somos defensores ardorosos da paz, do desarmamento e da não-violência. A conquista do socialismo sem derramamento de sangue seria, de nossa parte, desejo e sonho ardentes. Mas, na luta política, não podemos nos permitir a ingenuidade criminosa de fazer nossas fantasias ultrapassarem as paredes rígidas do real. Nem temos o direito de expor todas as conquistas populares, que custaram tanto esforço e tantos sacrifícios, a uma destruição completa assim que um general qualquer decida disparar o primeiro tiro. Que ninguém se iluda: a estratégia da disputa de hegemonia não dispensa as operações de defesa das trincheiras e casamatas que vamos erguendo na sociedade civil.
Na boa imagem utilizada na tese da Democracia Socialista, nosso movimento de longo prazo consiste no estabelecimento de um cerco à dominação burguesa sob a forma de uma pinça, onde a luta institucional e a pressão de massa representam os dois braços do instrumento.
Nesse avanço, estamos convictos na disposição de acatar as regras da disputa democrática. Mas aqui começa a ser fixada a segunda baliza, marcando a outra linha da raia: nenhuma experiência histórica, até hoje, no mundo inteiro, mostrou um só episódio em que as classes dominantes tenham acatado o jogo democrático até o ponto de aceitar a perda dos privilégios econômicos e dos mecanismos de poder, sem reagir com violência.
O Brasil poderia ser o primeiro caso? Se estamos mesmo decididos a romper com todos os dogmas, podemos admitir que sim. Mas a evolução histórica de nossa burguesia, a vocação autoritária, intolerante, inflexível e profundamente antidemocrática de nossas elites salta à vista em qualquer compêndio de história. Podemos pressionar as classes dominantes a uma conversão democrática e anunciamos que é esse mesmo o nosso propósito. Mas não podemos planejar todo o futuro histórico de um partido como o PT fiando-nos unicamente nessa hipótese.
Pelo contrário. Embora não seja ainda uma questão absolutamente inadiável na vida de nosso partido. não podemos retardar demais a abertura de discussões sobre mecanismos de organicidade superior, capacidade de sobrevivência a investidas repressivas, autodefesa em áreas de conflito agudo, estudo das experiências internacionais da luta revolucionária e das rebeliões populares ocorridas no Brasil.
De qualquer modo, precisa ficar claro, também na abordagem do problema da violência, que ao assumir o caminho da disputa de hegemonia com a burguesia num processo de longo prazo, deslocamos necessariamente nossa mira do Estado para a sociedade. É nela que agiremos como partido, para mobilizar, dinamizar, conscientizar, diversificar e torná-la mais democratizada, pluralista e exigente em sua fiscalização sobre o Estado.
Isso não quer dizer que o Estado, ao modernizar-se, tenha perdido seu caráter de síntese das contradições presentes na sociedade e instrumento de dominação de uma(s) classe(s) sobre outra(s).
A conquista do Estado ou, melhor que isso, sua radical transformação revolucionária, permanece sendo, portanto, um objetivo estratégico central em nossa luta de longo prazo. Mas essa ruptura política só possuirá real eficácia revolucionária quando for: a) resultado de uma nova hegemonia social: b) concomitante a um amplo revolucionamento da sociedade, c) capaz de produzir na esfera das relações humanas (subjetividade, normas de convívio, cultura, ética, costumes, espiritualidade, sexualidade) mudanças tão profundas quanto as propostas nos campos econômico e político.
Além disso, a conquista do Estado não pode ser vista como ruptura revolucionária final. Ela precisa ser entendida como um elo decisivo numa seqüência de rupturas que vêm de longe e já são elementos de nosso presente. Foram rupturas revolucionárias, nesse sentido. o surgimento do PT, a construção da CUT, a Teologia da Libertação, a irrupção dos movimentos populares e dos sem-terra, a explosão ecológica, as vitórias eleitorais de 1988, a memorável campanha presidencial de Lula e da Frente Brasil Popular e muitas outras.
Nessa nova perspectiva, a revolução não perde seu conteúdo angular de meta utópica posta no horizonte de todas as lutas, mas converte-se, também, em desafio da vida cotidiana.
O controle do Estado pelos trabalhadores não é o fim da viagem, nem conquista irreversível. Tanto pode significar o adeus da burguesia às suas velhas ferramentas de fraude política, manipulação parlamentar e extermínio pela repressão, quanto pode representar tão-somente um período de aprendizado superior, interrompido com uma derrota eleitoral que - a Nicarágua mostra - instala novamente no poder os setores alijados na disputa anterior.
Nas atuais condições brasileiras desponta como evolução possível o avanço do nosso movimento de pinça até o nível de superar a força das elites. Crescendo no campo institucional, amadurecendo nosso projeto nas experiências concretas de administração municipal e estadual, conquistando aperfeiçoamentos gigantescos nas estruturas democráticas e estruturando uma ampla rede nacional de organismos de poder popular a partir das bases (sindicatos, associações de bairro e movimentos), podemos perfeitamente reunir condições para vencer uma eleição presidencial.
Poderão abrir-se, dessa forma, condições inéditas para imprimir uma profunda guinada estratégica na correlação de forças entre as classes sociais no Brasil.
Nessa hipótese, ao invés de cair por terra tudo o que vem sendo sistematizado sobre a estratégia, estaremos chamados a concretizar em novos patamares nosso campo de hegemonia, distinguir com exatidão poder e governo e, sobretudo, reunir energias, recursos e mobilização social suficientes para desarmar a resistência dos exploradores.
Paulo Vannuchi é militante do PT, jornalista, assessor político e sindical.