EM DEBATE

Os transgênicos são hoje tema de debate em todo o mundo. Estão em jogo questões éticas, científicas, tecnológicas, sociais, ambientais e principalmente econômicas. Que posição o Brasil deverá adotar sobre o plantio de transgênicos? Para proporcionar ao leitor os diversos enfoques sobre a adoção dos transgênicos e desdobramentos de seu uso, reunimos aqui a posição da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, da deputada federal e agricultora Luci Choinacki (PT-SC), do deputado estadual e médico Cândido Vacarezza (PT-SP) e do assessor do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Carlos Guedes de Guedes.

Fatos e responsabilidades

Decisão pela soberania

A evolução do conhecimento

Opções que vão além de uma safra

Fatos e responsabilidades

Na década de 1960, uma grande mudança tecnológica e metodológica marcou a história da agricultura no mundo. Os resultados prometidos eram tão significativos que ficou conhecida como “revolução” – a Revolução Verde. Até hoje há discussões e polêmicas em torno de seu custo-benefício social, econômico e ecológico. Mais de quarenta anos depois, ela nos faz lembrar que, diante de inovações tecnológicas que num primeiro momento se mostram extremamente atrativas do ponto de vista da produção, há sempre um conjunto de outros fatores que nos remetem a avalia­ções e cuidados que devem ir além do curto prazo. Esses fatores envolvem questões sociais e ambientais cuja complexidade demanda atitudes indispensáveis de mediação por parte do Estado, frente à lógica própria do mercado.

Nestes tempos de polêmica sobre os transgênicos, nunca é demais pensar nas responsabilidades do Estado frente a estratégias mercadológicas alavancadas por tecnologias novas e importantes, porém em estágios de desenvolvimento que, se apontam horizontes muito promissores de um lado, de outro mantêm uma razoável zona de incertezas sobre os efeitos de sua aplicação.

A história da luta socioambientalista no mundo mostra inúmeros exemplos de danos praticamente irreparáveis causados pelo açodamento na obtenção de resultados de curto prazo, à custa de forte intervenção nos processos naturais, sem as devidas medidas acauteladoras. Sabemos também que, muitas vezes, números e promessas de lucros num primeiro momento enchem os olhos de segmentos interessados, mas depois redundam em enormes custos sociais e ecológicos, pagos por toda a sociedade.

Faz parte do papel do Estado, assim, assumir o ônus de ser aquele que contraria interesses imediatos e preserva sua capacidade de avaliar determinadas situações de previsível impacto ambiental significativo, mesmo que não totalmente dimensionado, e agir autonomamente. A análise das vantagens e desvantagens efetivas de determinadas tecnologias e metodologias produtivas não pode se restringir ao horizonte de um governo ou daqueles segmentos que pressionam com base em demandas que podem ser legítimas, mas não são únicas. Para o Estado, até mesmo as futuras gerações devem ser sujeitos de direito hoje, devem estar também “presentes” à mesa de negociações.

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Essa é a responsabilidade inalienável que está em jogo quando o governo do presidente Lula constrói sua política para os transgênicos a partir de cautelas necessárias. Não se trata de uma suposta atitude ideológica ou obscurantista diante de conquista científica e inovação tecnológica. Inexistem razões para sermos ideologicamente contra os transgênicos. Mas existem razões de sobra para avaliarmos com cuidado todos os componentes que devem informar a decisão de adotá-los ou não no país.

Diante da magnitude do interesse social, econômico e ambiental envolvido, não há por que nos curvarmos à ansiedade do mercado. E nem podemos manter a estratégia de dubiedade que marcou o trato do problema no governo anterior, gerando impasses que estão sendo enfrentados neste primeiro semestre da gestão do presidente Lula.

Coerente com uma de suas diretrizes – a transversalidade –, o governo criou, em 21 de fevereiro, a Comissão Interministerial encarregada de, à luz do Princípio da Precaução, avaliar e apresentar propostas para tornar efetiva a ação governamental, harmonizar a legislação que trata das competências dos órgãos e entidades federais e examinar outros temas relacionados à bios­segurança da manipulação e uso de organismos geneticamente modificados (OGMs), também chamados de transgênicos.

O Princípio da Precaução tem quatro componentes básicos, que podem ser assim resumidos: 1) a incerteza passa a ser também considerada na avaliação de risco; 2) o ônus da prova da avaliação de risco cabe ao proponente da atividade; 3) na avaliação de risco, um número razoável de alternativas ao produto ou processo deve ser considerado; 4) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e ter a participação dos interessados no produto ou processo.

Dada sua importância e alcance, este princípio foi incorporado no decreto de criação da Comissão Interministerial que avalia a questão dos transgênicos. Tal princípio deverá, a partir de agora, nortear as ações políticas e administrativas do governo neste tema.

A Comissão Interministerial apresentou ao presidente da República propostas encaminhando várias questões relativas aos OGMs, há muito pendentes: comercialização da safra da soja 2003 (resolvida pela Medida Provisória 113); garantia da informação da natureza transgênica nos rótulos ou etiquetas de alimentos (resolvida pela edição do Decreto 4.680); adesão do Brasil ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (mensagem encaminhada ao Congresso Nacional); elaboração da Política Nacional sobre Biossegurança e harmonização da legislação que trata das competências dos órgãos e entidades federais (ambas em andamento).

Essa é uma nova estratégia para abordar e resolver os inúmeros desdobramentos do caso transgênicos. Ela supõe coragem para enfrentar ataques e pressões e seriedade para negociar abertamente, levando em conta todos os interesses legítimos envolvidos. E se baseia, além de no já citado Princípio da Precaução, na formação de consenso entre os vários ministérios que se ocupam do tema.

A Comissão Interministerial ainda tem muito a fazer, a exemplo da elaboração da Política Nacional de Biossegurança, os ajustes necessários à harmonização da legislação, sobretudo aquela relacionada às competências dos órgãos federais e a capacitação de técnicos, em especial os vinculados aos órgãos de registro e fiscalização, nas esferas federal e estadual.

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Essa tarefa do Estado se justifica e se impõe tanto pelo potencial advindo da capacidade da engenharia genética em modificar drasticamente características genéticas das espécies e reprogramar a vida dos organismos quanto pelos riscos inerentes aos produtos originados dessas tecnologias, em sua grande maioria, de conseqüências ainda desconhecidas.

Em relação às plantas transgênicas, é possível afirmar que o conhecimento científico, em seu estágio atual, não possibilita prever os efeitos de sua utilização na saúde, no meio ambiente e nas diferentes facetas da cadeia produtiva. Isso significa que estamos longe de entender adequadamente todas as implicações do uso dos transgênicos, fato que, por precaução, nos induz a uma posição de redobrada responsabilidade.

As preocupações relativas à segurança da liberação no meio ambiente de transgênicos são pertinentes e não podem ser ignoradas ou subavaliadas. Se, por um lado, o uso dessas técnicas acena para a resolução de problemas e para o desenvolvimento de inúmeros produtos, por outro traz embutidas questões que precisam ser corretamente dimensionadas, tendo em vista o interesse da sociedade brasileira presente e futura.

Por esse motivo está consolidada, no âmbito do governo, a necessidade de licenciamento ambiental dos transgênicos, requisito indispensável para atividades ou empreendimentos potencialmente causadores de significativo impacto ambiental. O Licenciamento Ambiental, conforme previsto na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/81), foi especificamente normatizado para organismos transgênicos pela Resolução 305/02. Aprovada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente, após ampla consulta aos diversos setores da sociedade, a resolução está ba­seada nos dispositivos legais e nos Princípios da Precaução, da Participação Pública, da Publicidade e da Garantia de Acesso à Informação.

Os Termos de Referência e as demais diretrizes de licenciamento ambiental foram elaborados e já estão disponíveis, bem como as normas de registro para que empresas e instituições públicas possam obter licenças para a realização de pesquisas.

O MMA defende que, na análise e discussão das solicitações encaminhadas aos órgãos públicos, devam ser considerados os princípios acima mencionados e ainda a qualidade dos dados científicos, a biossegurança das atividades e/ou empreendimentos com OGMs e a relevância dos avanços no conhecimento científico nesse campo.

Nesse contexto, os Estudos de Impacto Ambiental, um dos instrumentos do Licenciamento, apresentam duas importantes características. De um lado, permitem que a análise de risco tenha caráter técnico-científico, com base no qual o órgão ambiental toma decisões; de outro, promovem o avanço no conhecimento.

Conseqüentemente, o cumprimento da legislação propicia a realização de novas pesquisas.

A análise de risco ambiental, conduzida pelo órgão ambiental competente, é realizada caso a caso e passo a passo. As características de cada organismo transgênico e a fase de pesquisa do produto são determinantes na definição dos estudos a ser conduzidos e nos níveis de contenção aplicados.

A precaução do MMA em relação aos transgênicos decorre, também, das lições do passado. Uma vez mais, os maiores prejudicados pelo uso e manipulação desses produtos são aqueles que não participam da tomada de decisões, notadamente os pequenos agricultores e os consumidores. Os custos dos impactos adversos da utilização desses produtos são pagos pela sociedade, e não pelos detentores da tecnologia.

Avançar na liberação indiscriminada no meio ambiente de produtos resultantes da engenharia genética sem as devidas precauções, já previstas na legislação, é uma temeridade, uma vez que o cultivo de plantas transgênicas poderá provocar a disseminação de transgenes, cujos efeitos, particularmente sobre os componentes da biodiversidade, são difíceis de estimar e podem tornar-se irreversíveis.

O foco da discussão deve, portanto, sair da questão da tecnologia e se concentrar na biossegurança, já que o problema real aparece após o transgênico ser produzido. A discussão levada a efeito, atualmente, contém inúmeros equívocos. O plantio de transgênicos no Brasil vem sendo associado mais uma vez, como já ocorrera na Revolução Verde e em outras ocasiões, à eliminação da fome. Ora, sabemos que temos aí duas ordens de problemas. A eliminação da fome e da situação de miséria que afetam milhares de brasileiros será feita por meio de políticas públicas determinadas a atingir esse fim, que, por sua vez, só será alcançado com o apoio de toda a sociedade. E, mais uma vez, as empresas interessadas na referida liberação – dispensando a necessária precaução que o atual estágio de conhecimento sobre os efeitos da tecnologia impõe – não se pautam por essas causas, seja aqui, seja em outros países.

O Estado existe para fazer a mediação. Se de um lado os interesses de mercado são legítimos, dentro de um conjunto de regras, de outro, em seu propósito de maximização do lucro, podem vir a ser destrutivos a ponto de se tornarem fator de dano e desequilíbrio social. Isso tende a ocorrer sempre que o Estado se omite e não cumpre seu papel.

Entendemos que os cultivos transgênicos poderão ser adotados futuramente em nosso país; não há contra eles, de parte do governo, uma posição ideológica, que poderia ser vista como obscurantista. Ao contrário, somos favoráveis à pesquisa sobre OGMs no Brasil, dentro da realidade ecológica de nossos biomas. O que não pode acontecer é um açodamento que nos leve a introduzir aqui um cavalo de Tróia que traga em seu ventre problemas ambientais e perda de autonomia e potencialidade de mercado independente para nossa agricultura.

Quando há motivos para suspeitar de ameaças de sensível redução ou perda de biodiversidade ou, ainda, de riscos à saúde, a falta de evidências científicas não deve ser usada como razão para evitar a tomada de medidas preventivas ou para se curvar ao fato consumado. Estudos conduzidos em outros países, cuja biodiversidade é profundamente diferente da nossa, em geral mais pobre, devem ser utilizados com a devida cautela.

Assim, por se tratar de nova tecnologia e considerando as incertezas em face do reduzido conhecimento científico a respeito dos riscos dos OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas transgênicas para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa de risco e licenciamento ambiental, respaldada em estudos científicos, conforme prevê a legislação vigente. Além disso, a decisão deverá levar em conta a pertinência do ponto de vista econômico, da dimensão social, da diversidade cultural, e o contexto geopolítico global. Essa é a posição do governo brasileiro e, caso não fosse esse seu comportamento, poderia e deveria ser questionado pela sociedade por negligência e omissão.

Marina Silva é ministra do Meio Ambiente

Decisão pela soberania

A liberação, por exceção, da atual safra de soja transgênica para a comercialização só ocorreu por conta da omissão e da irresponsabilidade do governo FHC, escoltado por grupos de grandes produtores do Rio Grande do Sul. Estes, por meio da Assembléia Legislativa daquele estado, proibiram o governo do petista Olívio Dutra de fazer cumprir a lei, o que reduziria o impacto do crime, apesar do descaso do governo federal da época. O governo Lula, por outro lado, demonstrou grandeza ao compreender a situação socioeconômica daqueles milhares de agricultores; foi sensível com os que a cultivaram ao não queimá-la ou apreendê-la, livrando-os da cadeia e suas famílias da fome. O “milagre dos transgênicos” anunciado nos argumentos de seus defensores, no entanto, não se confirma nos números.

Nos EUA da tecnologia transgênica gasta-se 1,06 dólar a mais para produzir uma saca de soja do que no Brasil dos grãos convencionais. A produtividade brasileira cresce na média de 1,91% ao ano, enquanto os norte-americanos viram o índice despencar para 0,04% negativo. Nossa produção aumenta cerca de 8,8% ao ano, e a norte-americana estancou em 1,8%, retrocedendo aos níveis de 1997. Os EUA cultivam soja transgênica em 39 milhões de hectares e, com Argentina, Canadá e China, respondem por 99% da área com cultivo de transgênicos no mundo.

No Brasil, o Rio Grande do Sul dos transgênicos produziu menos, por hectare, no ano passado do que em 2001 e aumentou o uso de veneno em 47,6%.

A produção de soja brasileira superou a dos EUA, até o ano passado primeiros no ranking. O desempenho do Brasil sem transgênicos fez a produção de grãos crescer 19,3%, por conta da ampliação da área cultivada e também do aumento da produtividade, que é de 2,6% ao ano, com picos de até 5,2%, verificado no Mato Grosso do Sul, onde os transgênicos foram banidos.

Na safra brasileira, a soja transgênica representa pouco: 3,4% dos grãos e 7,9% da soja. Considerando o aumento de 6% (2,5 milhões de hectares) na área plantada e que são Pedro ajudou como nunca, está claro que superaríamos a produção de soja dos EUA e te­ríamos uma grande safra mesmo sem a malfadada soja modificada. Talvez até melhor, tendo em vista os números da produção gaúcha.

Fica patente, no entanto, que naquele estado o debate resulta de uma disputa político-ideológica entre um modelo agroeconômico falido e excludente e um novo modelo de agricultura de inclusão. Debate este que, se tratado irresponsavelmente como ocorre, terá reflexos negativos graves em toda a política agrícola do país, já que está calcado numa visão de curtíssimo prazo, no socorro desesperado fincado no imediatismo e, tão ou mais grave, na ilegalidade das ações, restando ao Poder Público a anuência aos atos ilícitos.

A medida provisória do governo é uma brecha diplomática para a comercialização dos grãos transgênicos. Evita que os agricultores que cultivaram soja transgênica – uns por má-fé, outros por má informação – sejam condenados pelo crime que cometeram, o que prejudicaria emocional, financeira e social­mente suas famílias. Evita que o governo tenha de gastar cerca de 1 bilhão de reais para adquirir a safra, numa espécie de indenização aos que desrespeitaram a lei, o que geraria um desconforto ainda maior ao se explicar o benefício por uma ação ilegal. A pura e simples apreensão, multa e bloqueio ao crédito provocaria, por sua vez, uma crise sem precedentes, ao menos no Rio Grande do Sul, com conseqüências graves à economia daquele estado durante, no mínimo, meia década. E, talvez, um desgaste social e econômico àquela população muito maior que o desgaste político do governo se, em vez de optar por uma ação diplomática, tivesse seguido à risca a lei.

De certa maneira anistiados pela MP, os grupos pró-transgênicos sentiram-se livres até para argumentos como creditar o aumento da safra de grãos à soja modificada. Se para os mais informados pode parecer ingenuidade, prefiro ser realista e incluir tal crédito na estratégia para disseminar os cultivos transgênicos – como fizeram ao afirmar menor uso de veneno, menor prejuízo ao meio ambiente, maior produção e maior lucratividade –, submetendo agricultores, governos, política agrícola e soberania alimentar aos interesses dos EUA, por meio da Monsanto. Aliás, não seria fato novo na história do Brasil.

Não consigo ver, na comparação dos números, indícios de evolução tecnológica, viabilidade financeira ou ambiental. Até porque o mercado consumidor da soja brasileira não aceita nenhum argumento pró-transgênico nem nenhum produto que inclua em seu cultivo, criação ou industrialização algum insumo transgênico. Por conta disso, os EUA perderam espaço no mercado mundial, justamente para o Brasil sem transgênicos (a exportação brasileira de soja convencional cresceu 27,5% ao ano de 1996 a 2001), e seus agricultores querem livrar-se do “abacaxi”, apesar dos subsídios de seu governo.

Com uma visão de mercado de longo prazo e alguma preocupação com os impactos no meio ambiente e na saúde do consumidor nacional ou estrangeiro, na política agrícola e na soberania nacional, algumas empresas, como a Cooperalfa, em Santa Catarina, ou a Federação da Agricultura do Paraná, não estão comercializando ou sequer armazenando a soja transgênica, prevenindo-se contra represálias futuras, ou da própria lei – já que a comercialização atual é exceção –, ou, pior ainda, do mercado, que tem forte rejeição aos transgênicos, seja in natura, seja industrializado, seja insumo na cadeia de produção de carnes. São questio­náveis, portanto, a análise e a “visão de mercado” de alguns capitalistas nacionais.

Mas a Monsanto quer garantir o lucro de suas “pesquisas” e os EUA, seu filão de mercado e seu domínio, não importando sobre quem recaiam os custos – sanitários, econômicos, ambientais, políticos. Aí entrou o grande potencial agrícola brasileiro. Não apenas potencial de cultivo, mas também de comercialização, que estão sendo colocados em xeque por conta das suspeitas que se levantarão sobre a produção de grãos e rebanhos brasileiros e seus derivados.

A quem caberá o ônus desse prejuízo iminente por conta da permissão da colheita e comercialização de grãos transgênicos, que, ressaltemos, preservou a dignidade de milhões de agricultores no Rio Grande do Sul ao amenizar a legislação? A quem caberão os custos pelos testes de detecção do porcentual transgênico, rotulagem, estocagem e transporte segregados dos grãos originados do cultivo ilegal? E dos royalties pretendidos pela Monsanto, sobre um grão contrabandeado, considerado ilegal e pelo qual nos acusam de pirataria?

Não pretendemos que recaiam sobre a sociedade brasileira e o governo os prejuízos financeiros, sanitários e ambientais do cultivo, comercialização e consumo dos transgênicos e seus derivados. A decisão sobre nosso futuro, nossa soberania agrícola, econômica e alimentar, no entanto, cabe a nós, brasileiros, à sociedade e ao Poder Público. A discussão precisa ser disseminada e a decisão tomada para além da medida de exceção do governo; além da ideologização falaciosa imposta pela Monsanto e por algumas entidades dos grandes proprietários de terra que viram no ato ilegal a possibilidade de “sair do vermelho”.

Mais do que o suposto lucro fácil e imediato, temos responsabilidade pela biodiversidade da natureza brasileira, uma das mais ricas do planeta. Temos responsabilidade pela saúde humana, quase sempre esquecida ou relegada a segundo plano quando se trata de mercado ou capital. Temos a responsabilidade sobre o futuro das próximas gerações. Temos responsabilidade pela “evolução tecnológica”, especialmente a apregoada neste caso, quando suas principais conseqüên­cias são a exclusão, a eliminação, o empobrecimento científico, ambiental e social. Temos responsabilidade sobre a distribuição de renda e as possibilidades de obtê-la.

Não pretendemos a estagnação, muito menos o caos resultante de análises limitadas, que interessam apenas ao acirramento das dificuldades agrícolas e comerciais impostas ao Brasil, durante décadas, em detrimento do interesse dos 170 milhões de brasileiras e brasileiros.

Não cabe aqui nenhum tipo de ingenuidade. Que interesse poderá ter a mesma companhia que vende agrotóxico num grão que supostamente reduziria seu uso? Que interesse poderá ter o país que liderou – até o ano passado – a exportação de soja em enviar-nos um grão que supostamente impulsionaria nossa produtividade, mas é rejeitado no mercado internacional? Já disseram os norte-americanos que, no mercado, não há amigos. São necessárias análises técnicas insuspeitas, comparativos sem tendência e um profundo senso de responsabilidade de toda a sociedade brasileira, principalmente dos seus representantes políticos.

Cabe ao governo Lula uma decisão construída com a grande maioria do povo brasileiro, em que não se permita barganha de nenhuma espécie. Uma decisão que possibilite o surgimento de um novo e amplo modelo de agricultura no país, com desenvolvimento e produção diversificada pela valorização da pequena agricultura e dos assentamentos rurais, com inclusão social, com cidadania, com geração de emprego e de renda na realização da reforma agrária e na produção de alimentos para o combate à fome e à miséria.

Um novo e amplo modelo que garanta nossa independência produtiva, nossa soberania alimentar e nossa participação no mercado mundial, sem alienação a este ou aquele grupo econômico ou científico. Um modelo que garanta a biodiversidade presente e futura do país e do planeta. Um novo e amplo modelo que garanta a saúde dos bilhões de seres humanos e dos milhões de brasileiros.

A discussão está sendo feita agora e nossa opção pelo desenvolvimento do país, pela preservação da biodiversidade e pela melhoria na qualidade de vida e de saúde do povo brasileiro está expressa na rejeição aos transgênicos.

Luci Choinacki é agricultora, deputada federal pelo PT-SC, titular da Comissão de Agricultura e Política Rural e vice-líder do partido na Câmara dos Deputados

A evolução do conhecimento

Os avanços alcançados pela ciência e tecnologia para melhoria da qualidade de vida são irreversíveis. Boa parte dessas conquistas deve-se aos estudos e técnicas desenvolvidos pela engenharia genética, que, por meio da transgenia, abriu possibilidades infinitas e deu um grande salto no conhecimento.

Desde que foram divulgados pela mídia, os transgênicos, ou organismos geneticamente modificados (OGMs), começaram a provocar discussões acirradas em todo o mundo. Em meio a polêmica, campanhas de oposição, especulações e desinformação, criaram-se muitos mitos na tentativa de levar a um retrocesso na aplicação das descobertas da biotecnologia.

Como todas as descobertas, o debate sobre os transgênicos ultrapassou a questão científica, para dar lugar aos interesses político, econômico e ideológico. O principal desafio hoje é explicar de forma clara e objetiva a tecnologia dos organismos geneticamente modificados. Só assim a população pode avaliar de forma consciente e crítica os OGMs.

Transgênico é um organismo que contém um gene de uma espécie diferente. Em outras palavras, um gene animal ou vegetal é transferido para outro, causando uma modificação em seu código genético (DNA), com o objetivo de alcançar determinadas características. Isso representa um salto de qualidade no que já vinha sendo feito de maneira aleatória no processo de melhoramento convencional de plantas e animais. A maioria das espécies cultivadas e dos animais domesticados, hoje, é completamente diferente de suas matrizes silvestres.

Economicamente viável

A despeito dos protestos, os OGMs são realidade na agricultura, na pecuária e na medicina e vêm ganhando cada dia mais aceitação e espaço de produção. A área cultivada com organismos geneticamente modificados, em todo o mundo, saltou de 1,7 milhão de hectares em 1996 para 52,6 milhões em 2001, e continua crescendo rapidamente.

Um estudo desenvolvido pelo Centro de Política Agrícola e Alimentar dos Estados Unidos em parceria com a Fundação Rockefeller concluiu que os agricultores norte-americanos estão economizando bilhões de dólares com o cultivo de plantas geneticamente modificadas, graças à redução do uso de agroquímicos nas lavouras.

Outro exemplo são os algodoais geneticamente modificados cultivados na China, que consomem 80% menos defensivos agrícolas do que os convencionais. Por causa disso, o custo de produção por quilo colhido caiu 28%.

Um dado importante levantado por recente estudo da Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO) afirma que 5% dos cotonicultores chineses da variedade Bt tiveram problemas de saúde associados ao trabalho, enquanto 22% dos produtores convencionais apresentaram problemas de saúde provocados pelo trabalho.

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O comércio de sementes transgênicas também alcançou o patamar de bilhões de dólares e já é muito mais rentável que o de sementes convencionais. De olho nesse mercado, cerca de 80% dos associados à Confederação Nacional da Agricultura querem a liberação do cultivo comercial de OGMs. O motivo é simples: diminuição de custos e aumento de produtividade. A tendência natural é que os produtos gerados pela biotecnologia substituam o tradicional e grande mercado dos agroquímicos. Países de grande dimensão territorial, como o nosso, levam vantagem porque podem definir áreas específicas para o cultivo e a criação tanto convencional como transgênica.

O argumento de que os transgênicos competem com a pequena propriedade não procede. O que compete com a pequena propriedade e com a produção familiar são a grande propriedade e, fundamentalmente, a falta de política para o desenvolvimento desse tipo de cultivo – como ocorreu no Brasil até a eleição de Lula. Mesmo no caso da cana de açúcar, que requer produção em grandes propriedades, se houvesse no país incentivo à agricultura e à fixação do homem do campo no campo, poderíamos desenvolver sistemas de cooperativas familiares ou de grandes áreas com conglomerados de cooperados para produção de cana em larga escala. Além do mais, a China, os EUA e a Argentina cultivam transgênicos, e nesses países não existe concentração de terra.

No momento, centenas de pesquisas estão sendo feitas, em vários países, para geração de produtos mais nutritivos e benéficos para a saúde, com a introdução, inclusive, de vacinas na alimentação. Um estudo para extrair substâncias (fator VIII e IX do sangue humano) do leite de porca transgênica está sendo realizado em Cuba. O cientista responsável pela pesquisa, Manuel Limonta, afirma que o resultado do trabalho pode solucionar o problema da hemofilia nos países pobres, porque o tratamento custará apenas 10% do que seria gasto com a utilização de métodos tradicionais.

Como esse caso, outros estudos, em andamento, têm como pretensão dar mais qualidade de vida às pessoas. Um bom exemplo é a pesquisa, feita por cientistas das universidades da Carolina do Norte e de Penn State (EUA), que identificou um gene que controla a retenção de água nas plantas. Essa descoberta poderá contribuir no futuro para o desenvolvimento de plantas resistentes à seca, objetivo perseguido há muitas décadas. Sem dúvida, será uma das soluções mais importantes para minimizar a fome em regiões semidesérticas.

Biossegurança

Os argumentos contrários ao consumo de produtos transgênicos – de que são prejudiciais à saúde, de que provocam danos ao meio ambiente – aos poucos estão caindo por terra. A Royal So­ciety do Reino Unido, uma das mais respeitadas academias de ciências do mundo, divulgou recentemente em seu site (www.royalsoc.ac.uk) que não há evidências científicas dignas de crédito de que seres humanos possam ser prejudicados por ingerir OGMs. A conclusão foi ba­seada em um estudo aprofundado sobre o assunto, feito no último ano.

Nenhuma outra variedade alimentar tem sido tão detalhadamente pesquisada, principalmente em relação à segurança para o consumo humano, quanto os OGMs. Só para ter uma idéia, um novo tipo de soja geneticamente modificada foi submetido a 1.800 análises para comparação com a soja convencional. Quantos testes serão necessários para certificar a biossegurança do alimento? É preciso que as autoridades ambientais definam que tipos de efeito no meio ambiente são aceitáveis e quanto de incerteza sobre seus efeitos é tolerável para comercialização. O que não se pode é impedir que os benefí­cios da biotecnologia sejam anulados.

Cientistas do Flanders Interuniversity Institute for Biotechnology, instituição belga que agrega nove universidades européias, concluíram após pesquisas que as sementes geneticamente modificadas disponíveis atualmente para comercialização são tão seguras quanto as similares convencionais. O estudo afirma que, a cada dia, são aprimorados o conhecimento e os métodos para garantir a biossegurança das plantas geneticamente modificadas. Por outro lado, as variedades convencionais não são pesquisadas no mesmo ritmo. Os autores do estudo acreditam que no futuro os OGMs podem ser mais seguros que os convencionais.

O Canadá, país com melhor índice de desenvolvimento humano do mundo, permite o consumo de alimentos geneticamente modificados. Há quase dez anos, os OGMs fazem parte da dieta dos norte-americanos e nunca foi registrado problema algum de saúde relacionado a eles, ao passo que os alimentos convencionais são responsáveis por vários casos de alergias, alguns levando à morte. Grande parte da comunidade científica compartilha da opinião de que é mais seguro comer um alimento transgênico que um convencional com alto teor de defensivos agrícolas.

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Quanto aos argumentos sobre a agressão ao meio ambiente e a contribuição para a diminuição da biodiversidade, partilho dessas preocupações, porém não podemos satanizar os transgênicos. A própria agricultura, mesmo a de subsistência, é igualmente vilã: o feijão, o milho, a soja, a cana de açúcar e outros alimentos, ao ser introduzidos na agricultura em larga escala, interferem no meio ambiente eliminando plantas e animais nas respectivas áreas agricultadas. Quando maias e astecas iniciaram a cultura do milho, este era outra planta, com características completamente diferentes, que foram melhoradas ao longo de vários séculos de cultivo; com os transgênicos poderemos escolher, com maior precisão, as características que queiramos introduzir num vegetal.

Mesmo a agricultura rudimentar usada por hominídeos há milhões de anos ou o plantio de mandioca feito por tribos indígenas no Brasil pré-colonial agrediam o meio ambiente, pois as queimadas de florestas e a plantação de um único produto em determinada área comprometiam indelevelmente a natureza. Como na época éramos somente 4 milhões de habitantes e apenas alguns milhares eram agricultores, o dano, apesar de relativamente maior, era menos visível. É impossível, hoje, utilizando essas técnicas primitivas, alimentar os milhões de brasileiros e os bilhões de pessoas no mundo.

Desde que surgiram as primeiras pesquisas sobre transgênicos, houve a preocupação em definir parâmetros para avaliação da segurança alimentar. Organismos internacionais como a FAO e a Organização Mundial de Saúde (OMS) determinaram alguns critérios de medição de riscos.

No Brasil, os procedimentos para análise da segurança dos alimentos geneticamente modificados estão sob controle da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança/CTNBio – criada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Cabe à CNTBio, composta de dezoito representantes do Poder Executivo, da comunidade científica, do setor empresarial que atua em biotecnologia, dos órgãos de defesa do consumidor e de saúde, emitir pareceres técnicos.

A Lei 8.974/95, que criou a CNTBio, estabelece normas para uso de técnicas de engenharia genética e para a liberação, no meio ambiente, de OGMs. Mesmo assim, existe uma lacuna na legislação federal e o debate sobre o tema, no país, ainda está aquém de sua importância. Defendo a criação de uma política pública mais clara sobre a questão.

Legislação

Como deputado estadual, elaborei o projeto de lei 371/2001, em tramitação na Assembléia Legislativa de São Paulo, que regulamenta a pesquisa, a produção, a comercialização e a rotulagem de produtos geneticamente modificados e proíbe quaisquer pesquisas em seres humanos.

O projeto tem como proposta construir uma política pública sobre transgênicos para que a população se beneficie dos aspectos positivos trazidos por essa nova tecnologia. Apesar dos pontos altamente positivos, tenho uma séria preo­cupação com relação aos organismos geneticamente modificados. Uma das questões diz respeito à ética. Nesse sentido, o projeto prevê vários mecanismos direcionadores. Entre eles, manter programas de aperfeiçoamento científico, tecnológico e de formação de recursos humanos voltados para capacitação na atuação, no monitoramento, no desenvolvimento e na avaliação de organismos geneticamente modificados. Determina também que sejam estabelecidos critérios diferen­ciados para a liberação de OGMs que não possuam parentes silvestres no Brasil e se reproduzam por autofecundação, por apresentarem maior probabilidade de interferência no meio ambiente. Nas disposições sobre comercialização e rotulagem, obriga que os consumidores sejam informados, de forma clara, sobre os alimentos e outros produtos biológicos ou industrializados que possuam em sua composição OGMs.

Qualquer programa de desenvolvimento para um país terá de incorporar, como um dos elementos fundamentais, a biotecnologia. A qualidade de vida dos seres humanos dependerá cada dia mais da nova ciência.

Cândido Vaccarezza é deputado estadual pelo PT-SP

Opções que vão além de uma safra

Em entrevista à Gazeta Mercantil de 3 de junho de 2003, o ministro Miguel Rossetto expôs de forma clara os elementos que orientam as posições do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) frente ao tema da liberação ou não dos transgênicos no Brasil, sobre uma política de biossegurança para o país e o impacto da transgenia nos desafios relacionados à missão institucional do ministério – fortalecer a agricultura familiar e implementar a reforma agrária no Brasil. O ministro ressaltou que, além das questões de saúde humana, dos impactos sobre a biodiversidade e comunidades tradicionais do meio rural, três questões precisam estar devidamente resolvidas para que a sociedade brasileira possa optar por uma eventual adoção da transgenia na produção agrícola nacional:

-A contribuição adicional que a introdução dos transgênicos trará para a agricultura brasileira na conquista de novos mercados internacionais e na consolidação dos mercados já conquistados sem o uso de transgênicos;

-As conseqüências para a agricultura de economia familiar e comunidades tradicionais existentes no meio rural brasileiro da concentração de mercado na oferta do novo pacote tecnológico;

-A instituição de um marco regulatório eficaz, com regras e instrumentos que preservem efetividade, que combine o desenvolvimento de novas tecnologias e a condição de convivência com quem não necessariamente demande os produtos e processos derivados da transgenia.

O desafio dos mercados

Dificilmente o Brasil liberará os transgênicos para fins comerciais se as vantagens de mercado, em especial para as exportações, não se apresentarem consistentes. As exportações do agronegócio brasileiro – 44% do total das exportações – tiveram como principais destinos a União Européia e a Ásia, sobretudo com as vendas para a China, tornando a região asiática o segundo parceiro comercial do Brasil no setor, de acordo com a Balança Comercial do Agronegócio de maio de 2003, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)Unknown Object. O “carro-chefe” do desempenho do agronegócio brasileiro tem sido o complexo soja, que, segundo o Mapa, “explica mais da metade do aumento total das exportações do agronegócio em maio”. Os países produtores concorrentes do Brasil em soja são EUA e Argentina, que, com o Canadá, respondem por 96% da área total plantada por transgênicos no mundo – 56 milhões de hectares em 2002, sendo que 63% da área total destinada ao plantio comercial é de sojaUnknown Object.

A informação sobre a importância da soja nas exportações brasileiras confirma tendência identificada pela Assessoria Técnica da Liderança da Bancada do PT na Câmara dos Deputados, a partir de dados da Organização para Agricultura e Alimentação (FAO), que “de 1996 a 2001 as exportações do complexo soja pelo Brasil expandiram à taxa de 2,9% ao ano (sem transgênicos), para um declínio de 4,2% ao ano nas exportações dos EUA (com transgênicos)”Unknown Object. Portanto, se o Brasil pretende continuar a estimular a eficiência do setor de agronegócio, com perspectiva de ganhos mais efetivos de médio prazo, conforme ressaltado no documento “Roteiro para a Nova Agenda de Desenvolvimento Econômico”Unknown Object, é fundamental compreender como se comportam os mercados compradores dos nossos produtos.

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União Européia

O Conselho de Agricultura da União Européia (UE) aprovou a redução de 1% para 0,9% da limitação para rotulagem de transgênicos em alimentos humanos e animais, no fim de 2002. Por si só a medida dá a dimensão da linha política adotada pelo bloco europeu sobre os organismos geneticamente modificados (OGMs). Assim mesmo, é mais esclarecedora ainda a nota emitida pela UE em 17 de junho, “WTO Case on GMOs”Unknown Object, na qual entende que a decisão dos EUA – tendo Argentina e Canadá como co-demandantes e Austrália, Chile, Colômbia, El Salvador, Honduras, México, Nova Zelândia, Peru e Uruguai como apoiadores – de examinar o tema dos transgênicos no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) é “...legalmente mal direcionada, economicamente infundada e politicamente inútil”. Segundo o documento, para a UE a medida reduz uma matéria complexa a uma pauta de ordem apenas comercial, e o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança é a “resposta mais significativa ao desafio proposto”. A nota destaca cinco pontos que orientam o posicionamento do bloco europeu:

-O desafio da transgenia deve ser tratado como “ação cooperativa integrada entre os países”, e não simples disputa de comércio, e, nesse sentido, quatro aspectos devem ser observados: saúde humana e animal, impacto ambiental, os fatores socioeconômicos e as questões éticas, em especial a manipulação humana sobre seres vivos etc.;

-A necessidade de uma regulação rigorosa, dados o potencial e riscos intrínsecos à nova tecnologia;

-Uma aparente contradição verificada por alguns dos apoiadores, como Austrália, Nova Zelândia e Peru, que adotaram políticas restritivas aos OGMs e defendem a iniciativa dos EUA de pressionar a UE para liberação imediata dos transgênicos;

-A autonomia dos países membros da UE de estabelecer medidas de salvaguarda mais restritivas que as orientadas pelo bloco;

-A relação com os países em desenvolvimento, sejam produtores de OGMs – em especial a Argentina –, sejam beneficiá­rios de ajuda internacional, como os países africanos. O documento registra que a Argentina é o segundo maior produtor de transgênicos do mundo e continua com as exportações de milho para o bloco europeu em expansão. Em relação aos países que demandam ajuda internacional em virtude da escassez de alimentos, várias nações africanas decidiram solicitar aos países doadores que não enviem alimentos transgênicos, com base nas preocupações já salientadas pelos europeus. Segundo o comunicado, “a União Européia considera inaceitável que as preocupações legítimas desses países sejam usadas pelos Estados Unidos da América como meios de propaganda contra a política da União Européia com relação aos organismos geneticamente modificados”, visto que o governo dos Estados Unidos vem responsabilizando o bloco europeu por uma ação prejudicial ao combate à fome na África.

China

Três fatos anunciados publicamente pelo governo chinês podem mudar a compreensão inicial sobre potencialidades de exportação de transgênicos para aquele país. Em abril de 2002, o governo da China deu publicidade a seu Plano de Revitalização da Soja, enfocado no nordeste do país, destinando aproximadamente 660 mil hectares na região (20% da área plantada no Rio Grande do Sul na safra 2002-2003) para o cultivo de soja no período de três a cinco anos e incrementando o processo industrial. Em janeiro de 2003, a China apresenta ao mundo a primeira geração de sementes de soja híbrida, fruto de duas décadas de desenvolvimento da tecnologia pelos pesquisadores. Mas talvez a mais importante notícia sobre as tendências relativas ao mercado chinês tenha sido a divulgada em 21 de abril deste ano, quando o Ministério da Agricultura apresentou a meta de produzir mais 36 milhões de toneladas de soja (a produção brasileira é de aproximadamente 50 milhões de toneladas), expandindo a área plantada de 9 milhões para 13 milhões de hectares, com o objetivo de abastecer a demanda interna do produto, segundo as fontes oficiais de Pequim. O governo ainda manifestou que o plano de revitalização da soja no nordeste da China transformará a região “no maior produtor de soja não-OGM do mundo em cinco anos”Unknown Object.

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Os custos da escolha

Apesar da produtividade da soja convencional brasileira apresentar resultados até 24,7%Unknown Objectmaiores que nos Estados Unidos, há lideranças que defendem a adoção dos transgênicos pela redução de custos que a agricultura nacional pode conquistar com a nova tecnologia. Essa redução se dá no resultado da combinação do pacote semente-herbicida, que permite um gasto menor com o agrotóxico, mesmo mantendo a intensidade de uso. Porém, a análise de alguns dados pode indicar que a relação custo-benefício exigiria um cálculo mais complexo do que se imagina:

-De acordo com o Departamento de Economia Rural da Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento do Paraná (Deral/Seab), os insumos – sementes, fertilizantes e agrotóxicos – respondem por volta de 37% dos custos totais do plantio de soja no sistema de plantio direto, a preços de fevereiro de 2003;

-Segundo testemunho de agricultor que planta soja transgênica clandestinamente no sul do Brasil, a substituição para o herbicida ao qual a semente é resistente – sem redução na intensidade de uso – é até 50% mais barata “que a mistura de herbicidas que teriam que ser usados no plantio convencional” – conforme reportagem publicada na Gazeta Mercantil de 9 de junho de 2003. A aposta dos agricultores é que a ação casada semente-herbicida, ambos do mesmo fornecedor, garanta redução de custos e a mesma eficácia no controle de pragas ao longo do tempo;

-Os custos com sementes geneticamente modificadas são de 25% a 40% acima dos com sementes convencionais nos países onde o plantio é liberado, podendo chegar a 56% nos Estados UnidosUnknown Object;

-A adoção dos transgênicos demandará identificação dos produtos, por exigência dos consumidores. Segundo Kim Neal, diretor técnico da American Soybean Association (ASA), entidade de representação dos produtores de soja dos Estados Unidos, tais custos, como segregação, rastreabilidade, certificação, podem chegar a 20% do valor da soja ao produtorUnknown Object.

A preocupação com a concentração de mercado e os efeitos sobre a agricultura familiar é justificável quando é de conhecimento que, em 2001, cinco empresas respondiam pelo mercado mundial de sementes transgênicas, e apenas uma delas por mais de 90% da área total destinada ao plantio comercial de transgênicos no planeta. Essa situação acompanha uma tendência mais geral de concentração no “agronegócio”, no qual poucas empresas dominam os diferentes elos das cadeias agroindustriais (insumos, máquinas e implementos, indústria, mercado). No Brasil, as quatro maiores empresas do segmento de sementes respondiam juntas por 72% do mercado em 1999.

A venda casada do pacote tecnológico, a estratégia de massificação da tecnologia e seus custos intrínsecos tornam proibitiva a adoção por parte dos agricultores familiares. Estes terão seus custos ampliados por ter de pagar pela semente, sem o direito de reproduzi-la, como fazem tradicionalmente, e contar com que as pragas não apresentem resistência adicional ao agrotóxico, pois precisarão aplicar mais do que antes para obter o mesmo efeito, gastarão mais e dificilmente conseguirão ter acesso a processos alternativos, que poderão já estar fora do mercado. Os custos unitários se tornarão bastante altos, inviabilizando a atividade em caráter comercial.

O exercício do poder de monopólio da empresa detentora do pacote tecnológico já poderá ser mensurado durante a comercialização da soja brasileira da safra 2002-2003. A proprietária da patente das sementes contraban­deadas plantadas no Brasil está exigindo royalties dos exportadores brasileiros, atendendo pressão da ASA, que se sente prejudicada pelo tratamento distinto reservado até então pela empresa detentora da patente da semente de soja OGM. A ASA chega a tratar o caso como típico de “biopirataria”, e a não cobrança dos royalties como procedimento em desacordo com as regras da OMCUnknown Object.

Marco regulatório e transparência

A opção pelos transgênicos é uma questão de caráter estratégico, sem dúvida. E a constituição de um marco regulatório que responda à altura desses desafios é um dever do Estado. As experiências recentes no Brasil sobre regulação, garantia de liberdades e concorrência têm denunciado a fragilidade do aparelho estatal em garantir essas condições aos cidadãos, de resistir a pressão e interesses de corporações, ainda mais transnacionais. O “apagão” e a formação de oligopólios em diversos segmentos produtivos, que vão impondo seu poder de barganha via preços ou por redução da qualidade dos produtos ou serviços prestados, são exemplos disso.

Nos transgênicos, a história se repete. Está para ser votado, desde 2000, o Relatório Final da Proposta de Fiscalização e Controle nº 34, de autoria do deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), com a relatoria do deputado federal Ronaldo Vasconcellos (PL-MG), que teve como objeto “fiscalizar os procedimentos adotados pelo Poder Executivo para autorizar a liberação de plantas transgênicas no país”, na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Mino­rias da Câmara dos Deputados. São dez itens que foram objeto de investigações, e as conclusões do relatório constataram a vulnerabilidade do sistema de biossegurança do Brasil. Estão registrados no relatório a autorização de importação de produtos OGM sem acompanhamento e fiscalização apropriados para evitar escape no meio ambiente, a autorização para lavouras de experimentos com mais de 100 hectares, quando o procedimento limita a área a até 1,5 hectare, e o caso da desregulamentação da soja transgênica, em que foi aceito o estudo de impacto ambiental da semente nos EUA como prova suficiente da liberação do produto no território brasileiro.

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Opções para o futuro

As incertezas e dúvidas que ainda pairam relacionadas à transgenia como tecnologia legal para pesquisa, plantio e comercialização no Brasil orientaram a posição do MDA na Comissão Interministerial, responsável por organizar os subsídios e apresentar propostas para a política de organismos geneticamente modificados no país. Em um mês, a comissão, composta de representantes de oito ministérios, sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República, gerou as bases técnicas e legais para a Lei 10.688/03, aprovada pelo Congresso Nacional, que trata da comercialização de soja da safra 2002-2003 (originária da Medida Provisória 113); e para o Decreto 4.680, de abril de 2003, que trata da rotulagem de produtos que contenham transgênicos no Brasil, em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor. Importante destacar a capacidade do governo de apresentar soluções em curtíssimo espaço de tempo, dialogando com as preocupações dos agricultores e preservando os direitos dos consumidores brasileiros, ao contrário do governo anterior, que negligenciou o assunto e é o responsável maior por esse impasse hoje constituído.

O MDA está construindo, em conjunto com os movimentos sociais do campo, uma agenda para o desenvolvimento rural brasileiro, com o fortalecimento da agricultura familiar, a implementação da reforma agrária, a geração de alimentos saudáveis, de paz e produção. Nessa agenda está prevista a elaboração de uma nova matriz tecnológica produtiva, que atenda à valorização do conhecimento das comunidades tradicionais, à redução da dependência de pacotes tecnológicos por parte dos agricultores, gerando eficiência econômica e preservação do meio ambiente. Algumas experiências já estão em curso, mas são necessários investimentos mais expressivos para validar conhecimentos, adaptar tecnologias aos diferentes biomas, construir processos participativos de disseminação das pesquisas geradas sob esse novo enfoque.

São tarefas do governo, em conjunto com todos os agentes econômicos e atores sociais envolvidos, constituir uma lei de biossegurança coerente com o Protocolo de Cartagena, e mecanismos eficazes de fiscalização e controle para seu cumprimento; evitar que a concentração de mercado inviabilize as atividades de mais de 4 milhões de famílias que vivem da agricultura de economia familiar; e organizar uma estratégia de mercado que valorize o diferencial produtivo e o respeito aos direitos dos consumidores. Tais parâmetros nos orientam a fazer as escolhas que atendam ao anseio das partes e ao desenvolvimento do país, pois as conseqüências das opções que faremos vão além de uma safra.

Carlos Guedes de Guedes é assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário

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