EM DEBATE

Morosidade, obsolescência, ausência de transparência, difícil acesso são alguns dos termos associados à imagem do sistema judiciário brasileiro. Sua reforma está na pauta nacional como uma das prioritárias do governo Lula. Nesta edição publicamos as opiniões de alguns dos principais atores do debate que esperamos não seja mais postergado: Fábio Konder Comparato, professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco; Sérgio Renault, secretário de Reforma do Judiciário; deputado José Eduardo Martins Cardozo, presidente da Comissão Especial de Reforma do Judiciário; e Paulo Sérgio Domingues, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil.

O Poder Judiciário no regime democrático

O governo Lula e a reforma do judiciário

Uma oportunidade histórica

Colocando os pingos nos jotas

O Poder Judiciário no regime democrático

 

Na Idade Moderna, só se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular e cujo objetivo último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania do povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria. O respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável, quando o poder político supremo não pertence ao povo.

O Poder Judiciário, enquanto órgão de um Estado democrático, há de ser estruturado em função de ambas essas exigências. Ressalte-se, contudo, que, diferentemente dos demais poderes públicos, o Judiciário apresenta uma notável particularidade: embora seja ele, por definição, o principal garante do respeito integral aos direitos humanos, na generalidade dos países os magistrados, salvo raras exceções, não são escolhidos pelo voto popular.

Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas. Ora, esta, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto e os agentes públicos individualmente considerados exercem as funções políticas que a Constituição, enquanto manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder Judiciário no Brasil, devemos analisar sua organização e seu funcionamento, segundo os requisitos fundamentais da independência e da responsabilidade.

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Independência

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns em relação aos outros.

A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito de garantia institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as formas de organização dos poderes públicos, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na ConstituiçãoUnknown Object(1).

Desde a nossa primeira Constituição republicana, seguimos, em matéria de organização dos poderes públicos, o modelo original norte-americano, cujo pressuposto ideológico foi o cuidado em delimitar e restringir a competência do Poder Legislativo, o qual teria, na opinião dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, uma inclinação natural ao abuso de poder. “O corpo legislativo”, escreveu Madison, “estende por toda parte a esfera de sua atividade, e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso.”(2)Unknown Object Acrescentou que o Poder Executivo deve ser temido num regime monárquico, ou mesmo quando o povo exerce diretamente a função legislativa. “Mas numa república representativa”, ponderou, “em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão como na duração dos seus poderes, e onde o poder de legislar é exercido por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo; [...] em tal estado de coisas é contra as empresas ambiciosas desse poder que o povo deve dirigir os seus ciúmes e esgotar todas as precauções.”Unknown Object(3)

Acontece que em nosso país – como na generalidade das nações latino-americanas, de resto – a tradição colonial moldou os costumes políticos no sentido da máxima concentração de poderes na pessoa do chefe de Estado. Ao adotarmos, pois, o regime presidencial de governo, em que o chefe de Estado é, ao mesmo tempo, chefe de Governo, nada mais fizemos do que criar, sob pretexto de uma reprodução do modelo norte-americano, um presidencialismo exacerbado.

Já durante o regime monárquico, aliás, a predominância inconteste da vontade imperial sobre todos os órgãos do Estado, e até mesmo acima da vontade popular, pelo exercício do Poder Moderador, era bem conhecida. Como frisou o marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres), “o Imperador reina, governa e administra”. Sua Majestade concentrava em suas mãos todas as prerrogativas do Poder Executivo, o qual, como reconheceu Joaquim Nabuco, sempre foi onipotente, sendo esta onipotência, em suas palavras, “o traço saliente do nosso sistema político”(4).

Não era, assim, de admirar que durante todo o período imperial o Judiciário se apresentasse como fiel servidor do governo. Ele era “uma mola da máquina administrativa”Unknown Object, como reconheceu sem disfarces o visconde de UruguaiUnknown Object. Nas palavras candentes de José Antonio Pimenta Bueno, o futuro marquês de São Vicente e o mais autorizado constitucionalista do período imperial, “o governo é quem dá as vantagens pecuniárias, os acessos, honras e distinções; é quem conserva ou remove, enfim quem dá os despachos não só aos magistrados, mas a seus filhos, parentes e amigos”Unknown Object(6).

A Constituição de 1891, procurando corrigir tais abusos, determinou em seu artigo 57 que “os juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial”. Acrescentou que “os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos”. Mas, como a Constituição só se referiu, aí, aos juízes federais, alguns estados resolveram não observar essas garantias em relação a seus magistrados. O Supremo Tribunal Federal, chamado a se pronunciar sobre o assunto, julgou que as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos da magistratura deviam ser observadas, como princípio constitucional, por todos os estados da Federação; o que veio, afinal, a ser consagrado pela reforma constitucional de 1926. No entanto, como tais garantias não se consideravam aplicáveis aos juízes temporários, essa escapatória foi largamente aproveitada, não só pela União como também pelos estados federados.

Consolidou-se, com isso, o costume político segundo o qual as relações entre o Executivo e os demais órgãos estatais não são de potência a potência, mas de quase vassalagem destes para com aquele; ou, mais exatamente, de submissão geral à pessoa do presidente ou do governador de estado – o que representa, de certo modo, a transposição na esfera estatal do tradicional relacionamento do coronel do interior com seus agregados e capatazesUnknown Object(7). Da mesma forma, entre o povo e o Estado, personificado na figura do chefe do Executivo, quase nunca se estabelece uma relação de cidadania, mas sim uma situação de dependência ou proteção pessoal, análoga à que existe entre pais e filhos, ou entre padrastos e enteados. O povo não foi educado a exercer direitos e a exigir justiça, mas tem sido habitualmente domesticado a procurar auxílios e favores.

É isso o que tende a falsear completamente a posição da magistratura em nossa organização de poderes. É ingênuo acreditar que a evolução constitucional pôs, finalmente, juízes e tribunais ao abrigo da avassaladora hegemonia governamental.

Se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário, precisamos, sobretudo, protegê-lo contra as indevidas incursões do Executivo em seu território.

É nesse sentido que passo a alinhar algumas sugestões de reforma.

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Preenchimento de cargos nos tribunais

O Supremo Tribunal Federal deveria ser composto de quinze ministros, um terço dos quais por indicação do próprio Tribunal, o outro terço indicado pelo Ministério Público Federal e o último terço pela Ordem dos Advogados do Brasil. As indicações seriam sempre feitas em listas tríplices, e a escolha dos ministros competiria ao Senado Federal, em votação com o quorum qualificado de dois terços dos senadores.

No Superior Tribunal de Justiça, manter-se-ia a mesma composição prevista no artigo 104, parágrafo único, da Constituição, mas a designação dos ministros incumbiria também ao Senado Federal, deliberando com o mesmo quorum qualificado que se acaba de indicar.

Igualmente para o Tribunal Superior do Trabalho, manter-se-ia a mesma composição determinada no artigo 111, § 1º, da Constituição, mas as indicações seriam feitas em listas tríplices pelo próprio Tribunal, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Ordem dos Advogados do Brasil, com a escolha definitiva sendo feita pelo Senado Federal, nas mesmas condições acima referidas.

Quanto aos demais tribunais federais e os tribunais dos estados e do Distrito Federal, quatro quintos de seus integrantes deveriam ser escolhidos dentre juízes de Direito, alternativamente por antiguidade e por concurso público, e o quinto restante na forma do disposto no artigo 94 da Constituição. Seria, assim, abolido o critério de escolha por merecimento, o qual enseja uma inevitável margem de arbítrio por parte dos tribunais de Justiça.

Emendas constitucionais reguladoras da organização, das prerrogativas e do funcionamento do Judiciário

Em se tratando de emendar a Constituição para regular a organização e o funcionamento dos poderes públicos, bem como para a fixação das prerrogativas de seus agentes, a proposta deveria ser submetida a referendo popular. Nada é mais característico da consolidada usurpação da soberania do povo, estabelecida entre nós, do que a facilidade com que o impropriamente chamado poder constituinte derivado se atribui a prerrogativa de decidir, em definitivo, assuntos de tanta relevância para a vida democrática.

Em relação ao Judiciário, porém, essa exigência ainda não é bastante. É que, ao contrário dos demais Poderes, ele tem estado, pela tradição constitucional, alheio ao procedimento de emenda ou reforma da Constituição. Entendo que, dada a posição relativamente inferior do Judiciário em relação aos demais Poderes do Estado no equilíbrio constitucional de competências, é indispensável estabelecer a regra de que toda e qualquer proposta de emenda à Constituição, relativa ao Poder Judiciário e à magistratura nacional, seja de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, analogamente ao que estabelece a Constituição no que concerne ao Estatuto da Magistratura (artigo 93).

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Autonomia financeira do Poder Judiciário e fixação dos subsídios da magistratura

A Constituição Federal, em seu artigo 99, estabeleceu a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Isso não impediu, contudo, que o Executivo, pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, e com a cumplicidade do Congresso Nacional, promulgasse a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4/5/2000), que fixou limites intransponíveis para as despesas de pessoal do Judiciário, sem que este houvesse participado oficialmente do processo de elaboração da lei.

O adequado funcionamento da Justiça para a proteção efetiva da dignidade humana, princípio supremo da ordem jurídica, não se compadece, claro está, com essa visão fiscalista da coisa pública. É indispensável e urgente iniciar uma vigorosa campanha nacional para a fixação, por lei complementar, de um número mínimo de juízes de primeira instância, na União, nos estados e no Distrito Federal, em função do número efetivo de habitantes, e de uma correspondente proporção mínima de magistrados dos tribunais de segunda instância, em relação aos juízes de primeira instância, bem como de um número mínimo de membros dos tribunais superiores, em relação aos integrantes dos tribunais de segunda instância. Nunca é demais lembrar que a prestação de justiça é a mais nobre das atividades-fim do Estado, não podendo, portanto, em hipótese alguma, subordinar-se à regra instrumental de balanceamento das contas públicas.

Quanto à fixação dos subsídios da magistratura, dever-se-ia partir, no plano federal, da regra de que os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal, do presidente e do vice-presidente da República, bem como dos deputados federais e senadores, seriam estabelecidos conjuntamente pelos representantes desses três Poderes.

Competiria, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal fixar os subsídios dos magistrados dos tribunais superiores, dos tribunais regionais federais, dos tribunais e juízes eleitorais, dos tribunais e juízes do trabalho e dos tribunais e juízes militares federais. No plano estadual, haveria análogo procedimento, respeitados os limites máximos fixados pela Constituição.

Isenção política dos magistrados

Ultimamente, tem-se vulgarizado a prática de magistrados, sobretudo dos tribunais superiores da República, fazerem pronunciamentos públicos sobre assuntos de governo, sem nenhuma ligação com os interesses da magistratura nacional. Entrevista concedida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa, a uma revista de circulação nacional, bem ilustrou esse abuso.

Será ainda preciso relembrar que tais atitudes contribuem fortemente para destruir o prestígio público e a necessária aura de imparcialidade que é apanágio dos magistrados? Quem não percebe, afinal, que, depois de pronunciar-se publicamente, fora do contexto de um litígio judicial, contra ou a favor da atuação de governantes ou parlamentares, o magistrado perde a isenção para julgar, eventualmente, causas em que esses governantes ou parlamentares se achem, direta ou indiretamente, envolvidos?

Faz-se mister, portanto, acrescentar à vedação constante do artigo 36, inciso III, da atual Lei Orgânica da Magistratura Nacional(8)Unknown Object, mais uma, concernente a pronunciamentos públicos, feitos por magistrados fora dos processos judiciais, sobre políticas de governo ou atos de quaisquer agentes públicos, ressalvada a crítica impessoal manifestada em obras doutrinárias ou no exercício do magistério.

<--break->Responsabilidade

A essência do regime republicano, como a etimologia indica, é o fato de que o poder político não pertence, como um ativo patrimonial, aos governantes ou agentes estatais, mas é um bem comum do povo. Res publica, res populi, dizia-se em Roma(9)Unknown Object. É só neste preciso sentido que se pode falar em poder público.

Ora, o corolário lógico desse princípio fundamental é a necessária correlação existente entre poder e responsabilidade. Quanto maior o poder, maior a responsabilidade, entendida esta como o dever que incumbe ao detentor do poder, em nome de outrem, de responder pela forma como o exerce.

A responsabilidade desdobra-se, na verdade, em duas relações: a correspondente ao dever de prestar contas (que na língua inglesa denomina-se accountability) e a relação de sujeição às sanções cominadas em lei pelo mau exercício do poder (liability).

Numa república democrática, os controles institucionais de abuso de poder pelos órgãos do Estado são de duas espécies: o horizontal, ligado ao mecanismo da separação de Poderes, e o vertical, fundado na soberania popular. Na verdade, a democracia é o regime político no qual ninguém, nem mesmo o povo soberano, exerce um poder absoluto, sem controles. O poder soberano do povo só pode ser exercido, legitimamente, no quadro da Constituição. E é, justamente, ao Poder Judiciário que incumbe a magna função de interpretar os limites constitucionais dentro dos quais há de ser exercida a soberania popular.

Se assim é, se o próprio povo soberano tem sua ação limitada nos termos da Constituição, com maioria de razão deve a atuação do Judiciário ser submetida a uma fiscalização permanente de sua regularidade. Ora, é forçoso reconhecer que os controles institucionais da ação do Judiciário, em nossa sociedade, são muito frouxos e mesmo, em certos setores, praticamente inexistentes.

Comecemos pelo controle horizontal. Se se exige, com razão, total independência do Judiciário no julgamento dos demais poderes públicos à luz dos mandamentos constitucionais e legais, não se compreende por que o corpo de magistrados não deva se submeter, por igual, a um controle externo de seu comportamento por outros órgãos, para efeito de apuração de suas responsabilidades, tanto no nível penal quanto no civil e no disciplinar.

É falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e de seu poder disciplinar interno. Em primeiro lugar, porque esse exame não implica, em hipótese alguma, uma revisão das decisões processuais ou de mérito, dadas por juízes e tribunais. Ele tem por objeto, de um lado, o modo como os magistrados se desempenham no exercício dessa sua função privativa e, de outro lado, sua conduta pessoal fora dessa atuação funcional. Em segundo lugar, porque o controle externo não pode jamais abranger a competência de julgamento, assim como a censura judicial dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo não significa a assunção pelo Judiciário das funções privativas desses ramos do Estado. Em terceiro lugar, porque um mecanismo de exame externo do funcionamento do Judiciário não acarreta a abolição do poder disciplinar interno dos órgãos judiciais, mas o complementa.

Atualmente, existe um poder censório geral do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional da Magistratura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar 35, de 14/3/1979). Mas esse órgão, constituído por sete ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sido de todo inoperante, pois não dispõe, como é óbvio, da menor condição de exercer a fiscalização do desempenho funcional de todos os juízes e tribunais do país.

Sem dúvida, o mais adequado, numa democracia, é ter a fiscalização não judicial dos Poderes do Estado exercida por um órgão de representação popular. Entre nós, porém, nenhum dos órgãos legislativos existentes apresenta condições aceitáveis para desempenhar essa função. O Senado Federal não representa o povo brasileiro, mas sim os estados federados e o Distrito Federal. E, quanto à Câmara dos Deputados e às assembléias legislativas, elas mal dão conta das funções que lhes foram atribuídas pela Consti­tuição, e não suportariam, como é evidente, assumir mais outra, de tão grande complexidade.

O ideal seria instituir outro órgão de representação popular, tanto no nível federal quanto no estadual, com a competência exclusiva de exercer todas as funções de fiscalização e inquérito atualmente atribuídas aos órgãos legislativos, além da supervisão permanente do funcionamento do Poder Judiciário.

A segunda melhor solução seria instituir, na União, em cada estado e no Distrito Federal, um órgão de controle, composto de agentes das funções essenciais da Justiça, a saber, o Ministério Público e a advocacia (nesta incluídas a advocacia e a defensoria públicas). Esse órgão teria a incumbência de verificar o cumprimento, por todos os magistrados, inclusive os ministros do Supremo Tribunal Federal, dos deveres funcionais declarados em lei (atualmente, artigo 35 e seguintes da Lei Orgânica da Magistratura) e encaminhar a conclusão de seus inquéritos às autoridades competentes para a aplicação das sanções legais.

Nessa ordem de idéias, não parece adequado que, em matéria de crimes comuns, os ministros do Supremo Tribunal Federal mantenham o privilégio de ser julgados por seus pares. Poder-se-ia, assim, cogitar da criação de um órgão judiciário especial para tais casos, composto de cinco ministros mais antigos em atuação no Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao controle vertical da atuação da magistratura, convém recordar que a Carta Política do Império, em seu artigo 157, instituiu uma ação criminal contra os juízes de direito, “por suborno, peita, peculato e concussão”, a qual poderia ser intentada “dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecida na lei”.

<--break->Sem dúvida, essa espécie de ação popular criminal, limitada exclusivamente à hipótese em que o réu é magistrado, não mais se justifica nos dias atuais. Conviria, no entanto, criar uma ação popular criminal subsidiária, mediante adaptação do disposto no artigo 5, inciso LIX, da Constituição Federal, toda vez que o réu seja um agente público. Em tal hipótese, a ação penal subsidiária deveria ser admitida, ainda quando o representante do Ministério Público se recusasse, expressamente, a oferecer a denúncia.

Por outro lado, não se deve nunca esquecer de garantir cumpridamente a todos os jurisdicionados o respeito ao direito fundamental de obter, no Judiciário, um julgamento isento.

Nesse sentido, proponho a adoção de uma providência processual simples, a fim de resolver o problema – assaz freqüente, aliás – de os jurisdicionados se encontrarem efetivamente privados do direito de ser julgados de forma imparcial na comarca em que são domiciliados. Suponha-se a hipótese de um juiz de direito que, em região de agudo conflito agrário, coloque-se objetivamente – de modo intencional ou não, pouco importa – do lado dos proprietários rurais e se empenhe em distribuir, mais a torto que a direito, condenações criminais a mancheias contra todos os que atuem, direta ou indiretamente, a favor da reforma agrária; além de julgar sistematicamente improcedentes as ações possessórias e reipersecutórias intentadas por essas mesmas pessoas. As regras processuais concernentes à suspeição não têm aí aplicação, em princípio, pois não se consegue provar nenhum interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas a sua decisão.

Para a solução de casos dessa natureza, poder-se-ia cogitar de atribuir a qualquer parte em juízo, em qualquer espécie de processo, o direito de obter o desaforamento do feito para o juízo que vier a ser designado pelo tribunal de segunda instância. Seria um direito potestativo, exercitável, portanto, sem que seu titular tenha de alegar motivo algum. A freqüência com que for exercido esse direito, em determinado juízo, serviria como indício de que o magistrado já não goza da indispensável confiança dos jurisdicionados, havendo perdido sua auctoritas funcional.

Eis aí as sugestões que me pareceu importante e oportuno oferecer à consideração geral, como subsídio aos trabalhos de aperfeiçoamento da organização do Poder Judiciário em nosso país.

Notas:

(1) Sobre o assunto vejam-se, na doutrina brasileira, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7a. ed., Malheiros Editores, capítulo 15; e doutrina alemão contemporânea, Klaus Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, tomo III/1, Munique, Verlag C.H. Beck, 1988, §68.

(2) The Federalist, ensaio nº 48, The Modern Library, New York, p. 322

(3) Ibidem, p. 322-323.

(4) Um Estadista do Império, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p.239

(5) Ensaio sobre o Direito Administrativo, t.II, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862, p.261

(6)Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1857, p.39

(7) Relembre-se o já clássico ensaio de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, cuja 1ª edição é de  1949

(8) "É vedado ao magistrado:...III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério."

(9) Cícero, De re publica, livro I, XXV, 39.

Fábio Konder Comparato é doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito da Universidade de Paris e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

 

O governo Lula e a reforma do judiciário

A reforma do Judiciário é tema de uma discussão já antiga no Brasil. A morosidade da Justiça, a obsolescência, a ineficiência e a pouca transparência da máquina pública a serviço do Poder Judiciário são alguns dos problemas apontados aqui e ali a justificar a necessidade da reforma. Na Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição Federal de 1988 e nas diversas oportunidades surgidas no âmbito do Congresso Nacional a partir de então, temas relacionados ao aperfeiçoamento do Poder Judiciário são freqüentemente colocados na agenda política do país. Há certo consenso, entre os que se ocupam em refletir sobre o tema, de que o Poder Judiciário precisa passar por uma reforma. Mas que reforma é essa de que tanto se fala?

Desde o início do governo Lula – aliás, desde a campanha eleitoral para a Presidência da República – a reforma do Poder Judiciário foi identificada como uma prioridade. O discurso de posse do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, foi marcado pela ênfase que ele atribuiu ao tema.

A identificação da reforma do Poder Judiciário como tema prioritário para o país não representa propriamente nada de novo. Há muito se fala sobre o assunto. O que há de novo é o fato de ter sido ele apropriado pelo Poder Executivo e definido como prioridade de governo. A avaliação é de que a formulação de uma política pública para o Poder Judiciário é, sim, assunto que cabe ao Poder Executivo, ou melhor, a um governo que, eleito democraticamente pela população, pretenda se dedicar às questões nacionais mais relevantes para o aperfeiçoamento da nossa democracia.

A inexistência de um órgão central com condições e competência legal para articular e coordenar as discussões acerca da reforma do Judiciário como um todo fortaleceu a convicção do governo quanto à conveniência de criar um órgão para exercer, a partir do Executivo, este papel.

A criação da Secretaria de Reforma do Judiciário, no âmbito do Ministério da Justiça, suscitou discussão no meio jurídico e críticas de parcela da magistratura, principalmente de representantes das cúpulas dos tribunais superiores, que alegavam que a reforma do judiciário é assunto que interessa somente a este Poder – é questão interna corporis que não deve fazer parte das preocupações do governo. Houve, dos mais exaltados, a afirmação de que a simples criação da secretaria era uma intromissão inaceitável. Logo ficou claro que a resistência ao posicionamento do governo e à criação da secretaria decorria da própria resistência à reforma em si. Nossas preocupações iniciais, portanto, foram direcionadas ao esclarecimento sobre o papel que quería­mos desenvolver.

Deixamos claro que não preten­díamos preparar e implementar, a partir do Executivo, uma reforma para e no Poder Judiciário. A missão da secretaria é articular iniciativas, elaborar propostas, provocar a indução a mudanças e, principalmente, participar do debate sobre o tema.

O plano de trabalho da Secretaria de Reforma do Judiciário compreende basicamente o desenvolvimento de três ações coordenadas entre si: diagnóstico, modernização do Judiciário e alterações legislativas. Esse planejamento de trabalho deve ser compreendido como a própria proposta do governo federal para a reforma do Poder Judiciário. Tal observação se torna necessária para que não se pense que a reforma, para o Executivo, se restringe à discussão sobre as propostas de emendas constitucionais acerca do Poder Judiciário.

Um diagnóstico profundo e global sobre o Poder Judiciário é fundamental para que se conheça melhor sua estrutura. Os operadores do direito, seja juiz, membro do Ministério Público, defensor público, advogado ou serventuário da Justiça, não conhecem globalmente o funcionamento do Judiciário. Cada um tem noção do universo com o qual se relaciona profissionalmente, mas esse conhecimento é sempre parcial e não permite a tradução num diagnóstico global. Estudos parciais existentes levam ainda à constatação de que as diversidades são muito significativas e devem ser consideradas, com suas respectivas peculiaridades, para que as generalizações não comprometam a isenção do trabalho.

O conhecimento sobre o funcionamento do Judiciário deverá possibilitar a identificação de suas dificuldades e as experiências bem-sucedidas de gestão já em funcionamento. Deverá fornecer também elementos que permitam a definição de indicadores de eficiência, produtividade e qualidade para seu funcionamento.

A modernização do Poder Judiciário, a segunda frente de ação da secretaria, constitui-se de medidas que independem de alterações legislativas. Acreditamos que a reforma do Judiciário passa necessariamente pela modernização de sua gestão. A incorporação de novas tecnologias de informação, a desburocratização, a padronização de procedimentos racionais, a simplificação de sistemas operacionais, a capacitação de pessoal, o apoio a projetos de financiamento para a modernização são exemplos de iniciativas que podem tornar o Judiciário mais eficiente e ágil. Não se pretende reinventar a roda. Pretende-se captar as melhores experiências de gestão (best practices), já desenvolvidas pelo próprio Judiciário, valorizá-las, torná-las públicas e provocar sua implementação em outras localidades e juizados, demonstrando que a reforma será feita com e pelos próprios juízes.

Nesse contexto, encontram-se também medidas destinadas a melhor capacitar os servidores do Judiciário, principalmente os magistrados, para o exercício das atividades administrativas pelas quais são responsáveis e para as quais não recebem, na maior parte das vezes, nenhum treinamento.

Vale mencionar a preocupação com a postura do Estado (União, estados e municípios) em relação ao Judiciário. O governo é o maior cliente do Poder Judiciário – algo em torno de 80% dos processos e recursos que tramitam nos tribunais superiores tratam de interesses do governo, seja ele federal, estadual ou municipal. Estamos convencidos de que se deve buscar a definição de uma nova postura do Estado em relação ao Judiciário. Foi criado um grupo de trabalho no âmbito do governo federal com o objetivo de definir nova conduta dos diversos órgãos da União, por meio da tomada de medidas que inibam a propositura de ações judiciais ou interposição de recursos sobre matérias a respeito das quais já exista jurisprudência razoavelmente pacificada.

A terceira ação da secretaria refere-se a medidas que implicam alteração legislativa, tanto as emendas constitucionais quanto mudanças nas leis infraconstitucionais, que podem trazer maior celeridade aos processos judiciais. A atualização da legislação processual civil e penal deve ser permanente, visando sempre à simplificação na tramitação dos processos. A Secretaria de Reforma do Judiciário está elaborando projetos com o propósito de, garantido o princípio constitucional do amplo direito de defesa, assegurar a tramitação mais célere dos processos judiciais.

Um desses projetos prevê a insti­tuição de procedimentos de solução alternativa de conflitos como medição e conciliação. Outro simplifica o processo de execução judicial. Estamos desenvolvendo ainda um projeto de simplificação do número de recursos e estudando o fortalecimento dos juizados especiais e a adequação do Estatuto da Magistratura aos princípios da reforma.

Há também a identificação, por óbvio, da necessidade de alterar a Constituição Federal na parte que trata do Poder Judiciário. O projeto de Emenda Constitucional que tramita hoje no Senado teve início em 1992, a partir de iniciativa do ex-deputado federal pelo PT de São Paulo Hélio Bicudo. O projeto foi aprovado pela Câmara Federal com a relatoria da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) e depois enviado ao Senado Federal, onde foi designado como relator, na legislatura anterior, o senador Bernardo Cabral (PMDB-AM). O texto chegou a ser aprovado, com alterações expressivas, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Na atual legislatura, foi designado como novo relator da matéria o senador José Jorge (PFL-PE).

No âmbito da secretaria, após sistematizar as discussões e refletir sobre as propostas delas decorrentes, definimos os princípios fundamentais da reforma, com as principais propostas pertinentes a cada um:

I) Democratização e Controle do Poder Judiciário – Várias proposições apontam para a necessidade de democratizar a estrutura do Poder Judiciário, tornando-a administrativamente mais aberta ao conjunto da magistratura, em especial aos juízes de primeiro grau. A criação de órgãos de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público (Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público), como está no texto aprovado pela Câmara Federal, é apontada pelo governo como uma das condições fundamentais para que o Poder Judiciário se torne mais transparente e esteja submetido a algum nível de controle da sociedade. A proposta aprovada pela Câmara prevê a constituição de um órgão de controle externo composto de quinze membros (nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos), com atribuições de controle sobre as atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário e sobre os desvios funcionais dos juízes, podendo determinar inclusive a perda de cargo. Faz-se necessário ressaltar que este órgão não terá nenhuma atribuição de controle sobre a atuação jurisdicional dos juízes. Há ainda, por exemplo, propostas relativas a alteração de composição do Supremo Tribunal Federal, tribunais superiores e tribunais regionais e eleições para os órgãos especiais e diretivos dos tribunais.

II) Eficiência e celeridade do Judiciário – As alterações constitucionais não trarão, isoladamente, maior celeridade à tramitação processual, mas algumas propostas que se encontram em discussão apontam para a maior racionalidade do sistema como um todo. Uma das propostas mais polêmicas é a que institui a súmula vinculante, que tem sido criticada pelo governo, pois tolhe a liberdade dos juízes de primeiro grau, impedindo a salutar oxigenação da jurisprudência de primeiro grau. Como alternativa à súmula vinculante, há a proposta formulada originalmente pela Associação dos Magistrados Brasileiros, de instituição da súmula impeditiva de recurso. Há ainda em pauta propostas referentes a transformação do Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional, alterações das hipóteses de prerrogativas de foro e federalização dos crimes contra direitos humanos.

III) Autonomia e independência dos magistrados – É aspecto fundamental da reforma, para o governo, a afirmação dos princípios constitucionais da autonomia e independência dos magistrados. As principais propostas relativas a esse princípio são as que tratam da autonomia financeira do Poder Judiciário, do estabelecimento de critérios unificados para ingresso na magistratura e no Ministério Público, da vedação ao nepotismo e da instituição da quarentena para o exercício da advocacia por parte dos juízes antes e depois de exercerem essa atividade.

IV) Funções essenciais e acesso à Justiça – O fortalecimento das funções da Justiça definidas na Constituição Federal como essenciais é condição necessária para o fortalecimento do próprio Poder Judiciário. Nesse sentido, há propostas que visam atribuir autonomia às procuradorias estaduais e às defensorias públicas, bem como estabelecer critérios objetivos para a instalação de tribunais e institucionalização com maior difusão dos juizados itinerantes.

Os objetivos principais da reforma do Poder Judiciário, vista sob a ótica do governo federal, são a ampliação do acesso da população ao Judiciário e a melhoria de sua gestão. O cumprimento destes ocorrerá a partir do desenvolvimento coordenado das ações referidas, e não somente da aprovação da emenda constitucional. Há que se reconhecer, contudo, que a maior democratização da estrutura do Judiciário e a sua maior transparência são exigências fundamentais para a própria consolidação da democracia em nosso país.

Sérgio Renault é advo­gado, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. Foi secretário especial de Reforma Administrativa e secretário da Administração na Prefeitura de São Paulo (1989-1992)

Uma oportunidade histórica

“Trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui o poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites.” E “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder”. É o que afirmou, no século 18, Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, em seu célebre O Espírito das Leis. Partindo dessa premissa, formulou a teoria de que as funções do Estado haveriam de ser realizadas por três órgãos diversos, de maneira a que o poder fosse fracionado e não pudesse ser exercido de modo absoluto por uma única pessoa ou por um mesmo grupo de pessoas. Um, o Poder Legislativo, seria responsável pela criação das leis. Outro, o Poder Executivo, encarregado de executar essas leis. E o último, o Poder Judiciário, teria por missão aplicar castigos aos criminosos e julgar as querelas entre particulares.

Essa visão, conjugada a de outros pensadores do período, acabou por formar a base da concepção do denominado Estado de Direito. Um Estado que no seu agir é limitado e regulado pela lei igualmente aplicada a todos os seus cidadãos. Afirma-se então a idéia de que se, por um lado, ao poder público cabe agir com prerrogativas de autoridade na busca da satisfação daquilo que a lei entende ser o interesse público, por outro, estará ele sempre rigorosamente contido dentro dos estreitos limites por ela assinalados.

Dentro dessa concepção, é natural que se apresente como imprescindível ao Estado de Direito a instituição de um Poder Judiciário autônomo e independente que, em harmonia com os outros Poderes, garanta o cumprimento da lei, seja aplicando sanções àqueles que a desrespeitam, seja dirimindo conflitos de interesses. Por sua atuação será assegurada a manutenção da ordem e do status quo e garantido o respeito de limites de ação para o agir de agentes públicos, e ainda será garantida a previsibilidade e a segurança jurídica, tidas como valores indispensáveis para o desenvolvimento das sociedades capitalistas modernas.

Por isso, não é difícil entender a contundência com que a sociedade brasileira vem clamando, e já há muito tempo, pela necessidade da reforma do Poder Judiciário. Desde o momento da entrada em vigor de nossa atual Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ninguém nega que, no plano institucional e formal, exista dentre nós um autêntico Estado de Direito, em que se assegura a existência de um Judi­ciário autônomo e independente. Contudo, ninguém também afirma, em sã consciência, que esse Poder venha cumprindo com eficiência o importante papel que a Constituição lhe reservou. A morosidade na solução de processos e na aplicação das penas, a absoluta falta de modernidade em sua atuação, a ausência de transparência e de controle efetivo sobre sua administração interna e na imposição de sanções disciplinares sobre seus membros são realidades incontestáveis. Da mesma forma, o difícil acesso à Justiça pelos mais pobres e excluídos, a indiscutível presença de focos de corrupção na máquina judiciária e a ausência de uma distinção racional e ética entre prerrogativas indispensáveis para o exercício de competências e indevidos privilégios funcionais atribuídos a seus membros têm atingido frontalmente sua imagem, sua credibilidade e sua própria legitimidade perante os olhos de todos os brasileiros.

A desejada reforma do Poder Judiciá­rio, porém, não se traduziu, pelo menos até o início do atual governo, em atos concretos e efetivos. Há anos circulam estudos, propostas, teses, projetos de lei e de emendas constitucionais, sem que essa reforma tenha deixado o mundo das idéias. Todos concordam que a atual situação é insustentável, que sua permanência implica insegurança para investimentos, sério obstáculo ao desenvolvimento econômico, e bradam que a reforma do sistema de prestação jurisdicional do Estado brasileiro é inadiável e prioritária. Mas pouco, ou quase nada, acontece.

Há que perguntar: por quê? Por que algo que é necessário para a manutenção do próprio status quo e se soma aos interesses econômicos dominantes teimou e teima tanto em sair do papel? Por que mudanças que poderiam assegurar a efetividade social de direitos de cidadãos excluídos não são minimamente efetivadas? Por quê, enfim, um desejo comum de toda a sociedade demora tanto para se materializar?

Não é fácil responder a estas perguntas. Uma visão simplista do problema poderia nos conduzir à crença de que tudo se explicaria por uma acentuada indolência parlamentar, por uma falta de amadurecimento das propostas existentes para essa reforma, ou por ambas as situações. Não seria, porém, uma explicação verdadeira. Nos últimos anos, muitas matérias polêmicas passaram por aguerridos embates no Congresso Nacional, demonstrando que nosso Poder Legislativo, enquanto casa de representação política, freqüentemente responde, tanto para o bem como para o mal, às exigências e às cobranças da opinião pública quanto a questões socialmente vivenciadas como problemáticas pela sociedade. Por outro lado, dizer que as propostas relativas à reforma do Judiciário ainda não se encontram maduras para ser apreciadas e decididas seria incorrer em uma heresia intelectual. Todos sabem que propostas como a do controle externo do Poder Judiciário, a da instituição das nefastas súmulas vinculantes, a da transformação do Supremo Tribunal Federal em tribunal constitucional, e tantas outras que ocuparam através dos anos as páginas dos jornais, passaram por amplos debates, por variadas formulações e análises. São conhecidas e estão prontas a ser submetidas a um processo de decisão democrático, seja para sua aprovação, seja para sua rejeição.

A paralisia decisória se prende, de fato, a outros fatores mais complexos. Um deles, e talvez um dos mais importantes e decisivos, guarda relação com os interesses diretos e reflexos das diferentes corporações e pessoas que atuam no sistema de prestação jurisdicional de nosso Estado ou gravitam em torno dele.

Com efeito, quando falamos da reforma do Poder Judiciário, não estamos falando apenas de uma alteração de competências de órgãos públicos ou da estrutura de um braço orgânico do Estado. Falamos de mudanças que atingem todo o sistema de prestação jurisdicional e todo o conjunto de interesses profissionais e pessoais que com ele se relacionam. Falamos de alterações que podem afetar situações concretas de magistrados, promotores, delegados de polícia, advogados, enfim, de todos os operadores do direito e daqueles que estão de algum modo envolvidos com os serviços prestados pela máquina judiciária. Falamos de uma reforma que pode atingir as pretensões daqueles que são favorecidos pela demora da prestação jurisdicional do Estado, incluindo-se aqui o perverso interesse de governantes que, para não arcar com o ônus de decisões desfavoráveis da Justiça, preferem adiar indefinidamente o desfecho das demandas em que se envolveram, tanto em nome próprio como em nome do Estado. Falamos também do efetivo interesse de alguns em que não se alargue o acesso de uma camada da população ao resguardo efetivo de direitos que hoje só existem no plano da forma e da retórica jurídica, e não na realidade.

É sem dúvida neste cenário, em que se alternam poderosamente desejos de mudança e de que nada se altere, em que se chocam interesses corporativos de grupos ou de pessoas que exercem parcela do poder do Estado ou que nele têm influência, que os obstáculos à concretização da reforma do Poder Judiciário aparecem e se consolidam. A distinção entre o público e o privado, entre as prerrogativas indispensáveis para o exercício da função pública e privilégios imorais deferidos a certos agentes públicos, passa a ganhar, nesse contexto, um contorno retórico, enviesado e ideológico. A discussão sobre a reforma do Poder Judiciário passa então a aparecer aos olhos da sociedade como algo complexo, obscuro, e em uma dimensão argumentativa em que não raras vezes interesses pessoais e mesquinhos são apresentados em discursos como autênticas razões de Estado.

Por isso, discutir formas de controle externo e de transparência pode ser um incômodo para muitos, especialmente para os que, pensando em seu status ou em suas vantagens pessoais, esquecem as premissas de pensamento de Montesquieu que justificam a existência dos Poderes do Estado e com cabotina desfaçatez argumentam que seria saudável a existência de uma democracia e de um Estado de Direito com a presença de uma máquina judiciária que só a si própria deva satisfação de seus atos e só a seus membros preste contas em grau definitivo. Do mesmo modo, falar de agilização da prestação jurisdicional também pode ser um incômodo para aqueles cujo maior talento é evitar o desfecho de litígios.

Além disso, não poucas vezes, há quem, na contramão de uma verdadeira reforma, se aproveite da necessidade de mudança para buscar conseguir implantar modelos autoritários ou o aumento das próprias prerrogativas e privilégios. Isso, naturalmente, implica reações adversas dos que se apercebem da manobra, que passam a fazer tudo para paralisar o andamento daquilo que lhes parece ser mais um retrocesso do que um verdadeiro avanço. E então, pelo equilíbrio de forças, as coisas não caminham. Nem para um lado, nem para outro.

Exemplo típico dessa situação é o que vem ocorrendo com as denominadas súmulas vinculantes. A pretexto de agilizar o processo de tomada de decisões judiciais e eliminar a possibilidade de interposição de recursos inúteis, pretendem seus defensores, por meio dessas súmulas, atribuir aos tribunais superiores o poder de fixação de interpretações que vinculem e forcem todos os magistrados a decidir os processos da mesma maneira. Assim, afirma-se, as decisões seriam mais uniformes e rápidas, uma vez que os litígios seriam sempre decididos de acordo com este querer interpretativo superior.

A percepção óbvia do autoritarismo e do caráter antidemocrático desse instituto levou a uma contundente reação oposta. Como se sabe, o mais importante em uma lei não é o que ela diz gramaticalmente, mas o como ela é compreendida e interpretada em seus termos, ou seja, definida em seu sentido e alcance. Uma lei é menos suas palavras do que o sentido interpretativo que delas se extrai para obrigar as pessoas. Permitir aos tribunais superiores a fixação vinculante da interpretação de uma regra legal é atribuir a um grupo de magistrados, não eleitos e vitalícios, o poder de dizer, de forma genérica e definitiva, e em substituição à manifestação dos representantes eleitos pelo povo (parlamentares e chefia do Executivo), qual é a verdadeira vontade da maioria da sociedade materializada pela lei. É permitir que as esferas superiores do Judiciário legislem, à revelia da sociedade e de seus mandatários diretos.

Em substituição a essas súmulas vinculantes, assim foi formulada a proposta das denominadas súmulas impeditivas de recursos. Por estas, os magistrados não teriam de seguir as ordens interpretativas dos tribunais superiores. Apenas se vedaria a possibilidade de interposição de recursos inúteis quando os juízes decidissem de acordo com o entendimento da jurisprudência dominante. Aos magistrados, contudo, restaria assegurado o direito de, uma vez discordando do entendimento das instâncias superiores, poder proferir sentenças da maneira que entendessem mais justas, reservando-se à parte insatisfeita a prerrogativa de recurso às instâncias superiores da Justiça para eventual revisão da decisão. Desse modo, recursos inúteis e protelatórios seriam eliminados, sem o autoritarismo de impedir que novos argumentos e novas teses possam ser levados às instâncias superiores do Poder Judiciário e sem que o peso das togas passe a se afirmar como mais poderoso que o do voto dos cidadãos. Resolve-se, dessa maneira, um problema, sem que se crie outro.

Colocou-se então a disputa, súmulas vinculantes versus súmulas impeditivas de recursos. Como a força dos oponentes é igual, o jogo permanece empatado, mas sem que o juiz apite seu fim. E assim fica pendente a disputa, paralisado o campeonato, enquanto na arquibancada a torcida impaciente espera que alguma coisa

seja feita.

Mas é necessário encarar o problema, doa a quem doer. Com a firme disposição do atual governo federal de enfrentar a questão da reforma do Poder Judiciário, talvez agora possamos ter, finalmente, em pouco espaço de tempo, alterado esse cenário. Não porque a ação governamental possa, nesse caso, alinhar facilmente uma maioria parlamentar em torno das propostas que vier a defender. Mas porque a transformação de meros estudos ou de propostas em políticas de governo haverá de trazer luz e visibilidade intensa a essa discussão, e em condições de aprofundamento e amplitude que até hoje não existiram. A única maneira de derrotar o espírito corporativo e a obstrução feita por motivações autoritárias ou pouco éticas é a transparência do debate e da discussão acerca do que é melhor para a reforma de nosso sistema jurisdicional.

Não há nada que iniba mais a ação dos que lutam por privilégios e vantagens pessoais injustificadas do que a luz do debate público. Os mais ferozes lobos se transformam em democráticos cordeiros diante da pressão popular e da opinião da coletividade.

Por isso temos agora a oportunidade histórica de fazer com que finalmente essa reforma passe do papel à realidade. Que se ampliem o mais rapidamente possível as discussões. Que se apresentem da forma mais didática possível aos cidadãos as propostas, em toda a sua complexidade e em todo o seu antagonismo. Que se parta para a decisão democrática, mesmo correndo o risco da derrota. Afinal, desta vez, não podemos deixar escapar pelos nossos dedos a oportunidade que temos de fazer do Estado de Direito não apenas uma afirmação formal da nossa Constituição, mas uma realidade histórica que avance no processo de aprofundamento e de radicalização de nosso desenvolvimento social, econômico e democrático.

José Eduardo Martins Cardozo é deputado federal (PT-SP), presidente da Comissão Especial de Reforma do Judiciário da Câmara dos Deputados

Colocando os pingos nos jotas

“Finalmente!”, comemoram alguns. Após tantos anos, a reforma do Judiciário vai sair do papel. Finalmente, a sociedade verá seus processos julgados com rapidez. Finalmente, tudo andará melhor neste país, que ficará mais justo.

Falso. Isso não acontecerá. A reforma do Judiciário transformou-se em uma daquelas coisas sobre as quais todo mundo fala, mas ninguém sabe exatamente de que se trata. Porém, comemora-se que haverá “controle externo” e “súmula vinculante”, e isso vai resolver tudo! É como se um dia se anunciasse a cura do câncer.

Então, afinal, de que estamos falando? O que será reformado? E por quê? O que acontecerá depois da reforma? É isso que procurarei abordar, de maneira sintética, neste texto.

O que é o Judiciário, afinal?

Por vezes esquecemos o que significa ser o Judiciário um dos três Poderes da República. O Judiciário não possui relação de subordinação com os outros Poderes; não possui atribuição de tomar a iniciativa para a execução de políticas públicas nem elabora leis. Sua função fundamental é a de julgar conflitos: entre pessoas, entre pessoas e o Estado, entre o Estado e um acusado de um crime. Por isso é preciso assegurar ao Judiciário e aos juízes condições especiais para a preservação da imparcialidade – não há quem duvide de que é preciso dar ao juiz garantia de que, mesmo se julgar uma causa contra o governo, não será despedido ou transferido para local distante. É por isso que o juiz possui vitaliciedade e inamovibilidade. Esses “privilégios” são na verdade garantias para a sociedade de que o juiz não estará sujeito a pressões em seu julgamento. Simples assim.

Alguns dizem que o juiz deve ser submetido a mais controles que os outros membros de Poder, porque não é eleito e por isso não se submete ao controle do voto a cada quatro anos. Isso também não se sustenta. Claro que o juiz também precisa de controles (tratarei disso mais adiante), mas a legitimidade de sua atuação decorre de outros fatores que não o voto. Ele é selecionado por concurso público acessível a todos – portanto democraticamente – e, em seus julgamentos, não precisa agradar ao governo ou à opinião pública para ser “reeleito” ou “reconduzido”. Ainda bem! Se não fosse assim, seria o fim da imparcialidade na atividade de julgar, instituindo-se a submissão, pelo juiz, à “opinião pública” formada pela mídia para orientar seus julgamentos, a fim de assegurar sua reeleição.

Isso não dá ao juiz poder absoluto ou arbitrário; há mecanismos para supervisionar sua atuação. Suas decisões são obrigatoriamente fundamentadas, sujeitas a recursos, e ele é submetido a controle disciplinar. O juiz julga de acordo com a lei, a Constituição e a interpretação que dá a essas normas e aos fatos que lhe são apresentados. Em sua sentença, deve explicar às partes os fundamentos que o levaram à decisão. O sistema, assim, é bom e não precisa ser abandonado; é preciso fazê-lo funcionar melhor.

Por que se fala em reformar o Judiciário?

Porque a Justiça é lenta. Apesar da alta produtividade dos juízes e servidores, ninguém contesta a existência de um déficit na capacidade de julgamento dos processos por parte do Judiciário. A falta de meios materiais e de informática, o número insuficiente de juízes, as leis processuais burocráticas, a falta de meios para que o juiz puna quem utilize o processo para postergar o cumprimento de obrigações, tudo isso contribui para que a prestação de justiça no país deixe a desejar. Mas há muito mais.

O tema “reforma do Judiciário” ressurge periodicamente das profundezas do discurso político. A reforma iniciou-se há doze anos no Congresso Nacional, mas na maior parte do tempo permaneceu no limbo em que residem os temas não-prioritários para o governo ou o Congresso. Ressurge, em geral, quando não há outra prioridade na agenda política nacional; quando é proferida alguma decisão polêmica ou que atinja algum poderoso, que adota a tática de acusar o julgador que o condenou; ou quando surge algum caso de corrupção que envolva um juiz.

Então, passamos a assistir a heróicos brados midiáticos: “Vamos reformar o Judiciário”, “Temos de fazer o controle externo”, “Precisamos da súmula vinculante”. Coisas que, com franqueza, ao que parece poucos entendem o que exatamente venham a ser. Muitos personagens políticos importantes cedem à tentação desse discurso fácil, mas falacioso, em que as premissas e a conclusão são totalmente dissociadas entre si: “A polícia é corrupta, a segurança pública não combate o crime organizado, as prisões são péssimas; logo, precisamos reformar o Judiciário, para fazer o controle externo.” Parece óbvio que essa não é uma abordagem séria da questão.

De onde vem o déficit de eficiência?

Em uma análise abrangente do problema, podemos reconhecer a existência, no país, de algo que poderíamos chamar de “sistema judiciário”, que envolve o julgamento de conflitos, a elaboração de leis processuais e a interpretação das leis e da Constituição, mas também a segurança pública, a investigação criminal, o sistema prisional, a defensoria pública, o Ministério Público, a advocacia e outros. Tudo visando à distribuição de justiça em cada caso concreto, decidindo quem tem razão em processos civis e fazendo cumprir as decisões; investigando crimes e punindo os culpados, fazendo-os cumprir a pena aplicada.

Decorrência lógica é admitir que a eficácia desse “sistema judiciário” depende da eficiência de várias instituições dos três Poderes, interdependentes entre si. A atuação falha de uma delas pode implicar na falência de todo o sistema. Abaixo, dois exemplos:

1) Se um crime foi cometido, o objetivo da atuação estatal será investigá-lo, descobrir seu autor, processá-lo e fazê-lo cumprir a pena. Teremos, então, a investigação e o inquérito conduzidos pela polícia (inclusive a técnica), a acusação formulada pelo Ministério Público à Justiça, o processo propriamente dito, perante o Judiciário, e a execução da pena – em geral, no sistema prisional. Todos esses órgãos, do Executivo e do Judiciário, agindo segundo as regras estabelecidas nas leis aprovadas pelo Legislativo.

A perícia não pôde ser feita por falta de equipamentos? A polícia não pôde conduzir adequadamente o inquérito (polícia: Poder Executivo!)? Ora, isso inviabiliza a colheita de provas no processo judicial e a futura condenação. As leis processuais exigem que caminhos burocráticos inúteis sejam percorridos no processo e admitem recursos infinitos (leis processuais: Poder Legislativo!)? O processo não termina nunca. E, se a crônica falta de funcionários, equipamentos e juízes (orçamento e “contingenciamento”: Poderes Executivo e Legislativo!) não tiver levado à prescrição do crime e o réu for condenado, o cumprimento da pena se dará onde? Em um sistema prisional falido que ou põe o condenado em condições subumanas, ou permite que continue comandando sua quadrilha de dentro do presídio, ou simplesmente permite a fuga com facilidade impressionante – às vezes, as três coisas (sistema prisional: Poder Executivo!).

2) No processo civil, a necessidade de assegurar o equilíbrio e a igualdade entre as partes leva a um certo grau de formalidade. Nossa lei processual, contudo, elevou essa formalidade a uma ritualística quase religiosa. Por medo ou desconfiança, as decisões dos juízes de primeira e segunda instâncias são totalmente desvalorizadas. A regra é que se possa recorrer sempre, de tudo, e “até o Supremo Tribunal Federal”! As penas para quem transforma o direito de defesa em instrumento de procrastinação do cumprimento de suas obrigações são brandas (leis processuais: Poder Legislativo!). O poder público é o maior “cliente” do Judiciário, com aproximadamente 80% dos processos em andamento. Esse dado já indica que há algo errado na relação entre o poder público e o cidadão, e na postura do poder público em juízo (Poder Executivo!). Tradicionalmente, os governos e autarquias, sob o pretexto da “indisponibilidade” de seus interesses, recorrem sempre, mesmo nos casos em que a jurisprudência já lhes é unanimemente contrária.

Na realidade, pretendem com isso empurrar o cumprimento da obrigação ao próximo governo. Tendo em vista o enorme alcance dos atos do Executivo, sua repercussão significa a propositura de centenas de milhares de ações, sobrecarregando o Judiciário por anos a fio. Para citar exemplos recentes, somente a questão da correção monetária do FGTS significou a propositura de 800 mil ações. Uma discussão já pacificada sobre o reajuste de benefícios de aposentadoria levou à propositura de 1 milhão de ações contra o INSS em 45 dias nos Juizados Especiais Federais. Claro que a Justiça demorará para processar essa avalanche de ações. Será pela própria deficiência ou pelo desrespeito do Executivo em relação ao cidadão e à autoridade das decisões do Judiciário?

Não pretendo, com esses exemplos, eximir os tribunais de culpa pela lentidão dos processos. Estruturas administrativas arcaicas e burocráticas, com um alto grau de hierarquização e baixo grau de democratização interna, impedem por vezes que se enfrentem os problemas com a profissionalização que a boa administração exige. Mas os problemas internos ao Judiciário são já bastante conhecidos. Procurei, aqui, mostrar que há causas externas ao Judiciário que estão na gênese de sua crise.

O que mudará com essa reforma?

Na Constituição estão as linhas gerais da estrutura dos Poderes, suas atribuições e o relacionamento entre eles. No caso do Judiciário não é diferente: lá se prevêem quais os tribunais e as “Justiças”, sua competência e quem serão seus membros. Portanto, a reforma constitucional do Poder Judiciário em andamento é na verdade tão-somente uma proposta de alteração estrutural.

Ou seja, não é na reforma, nem com o “controle externo”, que se resolverá o problema da morosidade dos processos ou o da impunidade dos criminosos – pois não é em nossa Lei Maior que isso é tratado. Sou favorável à criação do Conselho Nacional de Justiça; contudo, rejeito qualquer afirmação de que ele ajudará a resolver a lentidão das ações. O CNJ deverá funcionar como órgão de planejamento estratégico do Poder Judiciário, definindo metas, planos, cuidando de encontrar prioridades e gargalos etc.

A autonomia dos tribunais, hoje vigente, é necessária para assegurar sua independência, mas alcançou níveis tais que os transformou em ilhas sem comunicação entre si. Sua integração é importante não apenas pela unicidade do Poder Judiciário do país, mas por vários outros motivos – por exemplo, porque os recursos das decisões das instâncias inferiores subirão aos tribunais superiores, que são encarregados de uniformizar a interpretação das leis e da Constituição. O CNJ poderia proporcionar certa uniformidade na esfera administrativa dos tribunais do país, como no tratamento dado a magistrados e servidores (inclusive quanto à remuneração), na distribuição de verbas orçamentárias entre os tribunais, na execução de projetos, na correção de distorções. Poderia, ainda, suplementar as corregedorias dos tribunais: os juízes de primeira instância estão sujeitos à corregedoria do tribunal a que estão vinculados, mas é comum que, na segunda instância, os desembargadores não se submetam a nenhum controle disciplinar.

A composição do Conselho Nacional de Justiça deve contemplar a presença de membros dos vários tribunais e também de todas as instâncias. Somente assim será assegurada a pluralidade de visões oriundas das várias “Justiças” e também sua democratização interna. Admite-se, ainda, a presença de membros vindos da advocacia e do Ministério Público. Uma das funções do conselho deve ser privilegiar a transparência do Judiciário, e essa presença pode ser admitida como parte do “controle social” da atuação do Judiciário, que irá se somar aos outros controles a que é submetido: controle da aprovação orçamentária (Legislativo) e de sua aplicação (“contingenciamentos” do Executivo), controle de suas contas pelo Tribunal de Contas da União (órgão do Legislativo), controle pela mídia, Ministério Público e pela própria sociedade, decorrentes da publicidade de suas decisões.

Apenas para ressaltar. Jamais se pode admitir que o conselho seja composto de uma maioria de membros externos ou possa revisar o teor de decisões judiciais: o Judiciário é poder de controle e, a se aceitar isso, teríamos novo controle, sem jamais encontrar a resposta à pergunta: “Quem controla o controlador?” As decisões judiciais devem ser atacadas pelas vias recursais próprias e, esgotadas estas, aceitas como definitivas.

O que precisamos na verdade?

Como se vê, o problema é bem mais complexo do que se gostaria e não se esgota na reforma constitucional. Para melhorar a Justiça e acelerar os processos necessitamos, no mínimo:

a) Reconhecer que é preciso fortalecer o Judiciário, e não enfraquecê-lo ou amarrá-lo, para assegurar o cumprimento de suas decisões pelos cidadãos e pelos demais Poderes;

b) Alterar profundamente as leis processuais: por exemplo, limitando o número de recursos; aumentando a força das decisões das instâncias inferiores e diminuindo as hipóteses de acesso aos tribunais superiores; valorizando as ações coletivas, para evitar a multiplicação de demandas idênticas; fortalecer os juizados especiais, levando as experiências de desburocratização e informatização neles adotadas ao processo tradicional. Os muitos projetos de lei em tramitação no Legislativo para modernizar o processo judicial precisam de atenção urgente;

c) Que haja uma mudança radical de postura do Executivo em juízo: que este Poder passe a respeitar as decisões judiciais definitivas dos tribunais superiores, abandonando a prática de recorrer de toda e qualquer decisão, mesmo sabendo inútil o recurso, para protelar seu cumprimento. Acatar as decisões judiciais favoráveis aos cidadãos e estender seus efeitos a todos pouparia muito tempo para o Judiciário e muito dinheiro para o próprio Executivo, que economizaria também em juros, multas e honorários advocatícios;

d) Que o problema da impunidade seja levado a sério: que o Executivo equipe a polícia e apresente soluções adequadas para a crise do sistema prisional, bem como ofereça condições para o bom cumprimento das penas alternativas. Não adianta dizer que a Justiça não pune criminosos. A Justiça somente julga os processos, não faz rondas, nem investiga, nem constrói presídios;

e) Que o Executivo implante efetivamente a Defensoria Pública da União, cumprindo a obrigação constitucional de oferecer assistência jurídica à população;

f) Que se torne realidade a autonomia financeira do Judiciário. Anualmente o Judiciário precisa implorar ao Executivo e Legislativo por verbas para sua modernização, informatização e contratação de mais juízes e servidores, para buscar atender à demanda. É preciso assegurar uma porcentagem mínima do orçamento da União para o Judiciário, e que sua aplicação não esteja sujeita a “contingenciamentos” por parte do Executivo;

g) Que o Judiciário prossiga em seu caminho de busca da eficiência administrativa, transparência em sua atuação e democratização interna.

O problema é dos três Poderes

Em resumo, o que realmente precisamos é do engajamento efetivo dos três Poderes no trato da questão, de maneira sincera e séria. Falar de reforma do Judiciário somente apontando os defeitos alheios é fácil. Difícil, mas necessário, é cada um assumir as próprias deficiências e demonstrar seu empenho em melhorar o que está a seu alcance.

Os juízes são tão frustrados pelo congestionamento do Judiciário e pela demora nos processos quanto as partes. Se a reforma do que chamei acima de “sistema judiciário” for tratada por todos sem acusações recíprocas e palavras de ordem, mas com a profundidade que merece, poderemos então caminhar para os resultados concretos que a reforma em andamento não trará.

Paulo Sérgio Domingues é juiz federal em São Paulo, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)

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