EM DEBATE

A militância de esquerda tem como uma de suas principais estratégias a denúncia da discriminação, do preconceito e do racismo existente no país. E o PT, maior partido de esquerda, teve seus avanços organizativos e também por meio de políticas de promoção da igualdade racial no governo federal, mas a relação política da esquerda com o povo negro ainda sofre significativas limitações.

Enegrecer a esquerda – o caminho estratégico da luta popular no Brasil

Entre esquerda e direita, o movimento negro brasileiro é de esquerda

Enegrecer a esquerda – o caminho estratégico da luta popular no Brasil

O mês da Consciência Negra é uma oportunidade não apenas para celebrarmos nossas lutas, mas também para aprofundarmos nossas reflexões sobre os grandes compromissos da esquerda com o povo negro, que constitui a maioria da população do país.

Não obstante todas as vitórias já alcançadas na luta contra o racismo e apesar dos avanços organizativos do PT – o maior partido da esquerda – em garantir política de cotas para negros e negras em todas as suas instâncias, a relação política da esquerda com o povo negro ainda sofre significativas limitações.

Entre essas limitações destacamos duas. A primeira e mais importante é a insuficiente compreensão de que o povo negro não é apenas vítima do racismo, mas também o sujeito ou protagonista de qualquer mudança social mais profunda do país.

A segunda limitação decorre dessa primeira e diz respeito à necessidade imperiosa da esquerda de fazer o permanente trabalho de organização da base popular – base essa majoritariamente negra.

Mas falar em trabalho de base é falar do desenvolvimento das lutas de nosso povo, compreendidas aí as lutas que se dão nos interligados campos da raça, gênero e classe, segundo a feminista e socialista negra norte-americana, Angela Davis, nossa maior referência nesse tema.

A luta contra o racismo é inseparável da luta pelos direitos da mulher e ambas são partes da luta mais geral das classes trabalhadoras contra a exploração e a desigualdade social.

Aqui, o exemplo da mulher negra empregada doméstica, a maior categoria profissional do país, é emblemático. Triplamente discriminada, por ser negra, mulher e trabalhadora de baixa remuneração, ela está na base da pirâmide social. Constitui ao mesmo tempo a maioria das mulheres chefes de família da população pobre e negra que vive nas favelas e periferias de nosso país.

Os movimentos identitários atuam como motores das lutas feministas e contra o racismo e nessa medida ocupam um importante papel na mobilização da vanguarda de negros e mulheres, principalmente dos jovens, na luta popular mais geral contra o fascismo dominante e por uma sociedade sem nenhum tipo de discriminação.

Não obstante as mulheres e os negros formarem contingentes majoritários da população brasileira, os movimentos negros e feministas têm o grande desafio de ampliar sua influência política sobre eles pois tanto a consciência negra quanto a feminista ainda são visivelmente minoritárias na sociedade.

Aí reside o grande desafio de nossa luta, pois a conquista da hegemonia política na população negra e feminina, mais do que ações pontuais dos movimentos contra o racismo e pelos direitos das mulheres, vai exigir da esquerda brasileira profundas mudanças gerais em seus enfoques ideológicas e práticas políticas e partidárias.

Historicamente eurocêntrica e predominantemente branca e de classe média, a esquerda brasileira sempre considerou as questões do racismo e do feminismo como algo secundário, questões que seriam resolvidas depois da vitória do socialismo.

No entanto, a teórica socialista do feminismo negro internacional, Angela Davis, mostrou de maneira conclusiva que as lutas da classe trabalhadora pelo socialismo e as lutas contra o racismo e pelos direitos da mulher só têm chances de vitória se andarem “juntas e misturadas”.

A nossa esquerda precisa priorizar também o estudo e a formação política com base nos teóricos do movimento negro brasileiro e internacional.

Nesse sentido é importante conhecer o livro, O Pensamento Africano no Século XX, organizado por José Rivair Macedo. É necessário refletirmos profundamente sobre o trabalho de Abdias Nascimento e de Florestan Fernandes, e ler a obra de Jessé Souza, em particular seu último livro Como o Racismo Criou o Brasil. Devemos incorporar mais amplamente o estudo do filósofo Silvio Almeida sobre o racismo estrutural e o pensamento das feministas negras Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Djamila Ribeiro, entre outras, apenas para ficarmos entre as teóricas brasileiras.

Para cumprir com o seu papel de liderar o povo brasileiro majoritariamente negro, a esquerda tem de mudar muitos de seus parâmetros de atuação política seguidos até o presente. Precisa incorporar em sua teoria transformadora do Brasil os teóricos negros e negras da luta contra o racismo e das lutas de libertação social e nacional.

Precisamos formar nossa juventude no conhecimento da história das lutas do povo brasileiro, como corretamente recomendou Lula. Rever criticamente as experiências das lutas do passado contribui muito para os ensinamentos das lutas do presente. Destacamos do passado a resistência secular do heroico Quilombo de Palmares de Zumbi e Dandara, e as revoltas iniciadas em 1835 na Bahia, dos negros libertos e escravizados Malês, que sabiam ler e escrever; e em Belém do Pará, com a revolta chamada de Cabanagem, na qual os negros escravizados, índios e mestiços conseguiram tomar o poder, mas foram traídos por seus aliados da classe média branca.

É com esse novo enfoque e unindo a teoria à prática, que a esquerda tem de partir, sem vacilações, rumo ao Brasil real, ao país que foi criado pelo trabalho do negro escravizado; rumo ao povo que, depois de liberto dos grilhões, se tornou maioria da população, mas foi submetido a um regime de exclusão social, de discriminação racial e de gênero e que é diuturnamente vigiado, reprimido e morto por violência policial impune.

Falando agora do Partido do Trabalhadores, que nasceu e cresceu não apenas sob o impulso sindicalista, mas também dos movimentos negro, feminista e comunitário, temos de dar um salto de qualidade na nossa visão das questões do combate ao racismo e de gênero, no sentido de entendê-las como algo mais amplo, como partes integrantes essenciais da libertação social e nacional de nosso povo.

O objetivo maior é o de “enegrecer” a esquerda e seus movimentos sociais. No caso do PT, devemos cobrar de nossas de direções, secretarias e setoriais o enraizamento de nossa política e organização por meio do trabalho de base permanente nas favelas e periferias, onde está a maioria das mulheres e negros oprimidos e discriminados.

Sabemos que é por meio de políticas públicas que a esquerda pode efetivamente se ligar às grandes massas do povo pobre e negro. Quando fomos governo não fizemos isso o suficiente, não transformamos cada conquista social em consciência política e trincheira de luta do movimento popular. Essa lição virou cicatriz em nosso corpo para nunca mais esquecermos.

Lutamos agora não apenas para derrotar o racismo fascista de Bolsonaro, mas para libertar o Brasil e usar todo o ensinamento do passado para reconstruirmos nosso país sobre o chão firme da justiça social e da superação do racismo e da opressão da mulher.

Benedita da Silva é deputada federal (PT-RJ)

Entre esquerda e direita, o movimento negro brasileiro é de esquerda

“Uma segunda vaga de ebulições conduz o negro ao protesto coletivo, em certos momentos da década de 1960 e a partir do fim da década de 1970. Então, o negro ativista chega à consciência de um racismo institucional e, aproveitando estratégias vinculadas à luta de classes, combate as mistificações da “democracia racial”, as versões da “história oficial” sobre a fraternidade das raças ou da democracia racial, correntes entre os brancos e mesmo entre grupos negros. Apresenta-se, assim, como o pólo radical do que deve ser a democracia e uma sociedade civil aberta no Brasil. Ambas têm de ir além da pobreza, na negação e superação das iniquidades e das desigualdades raciais”.

 Florestan Fernandes no jornal Folha de S. Paulo no dia 13 de maio de 1988-Acervo da Soweto Organização Negra.

 

Entende-se como movimento negro contemporâneo um conjunto de grupos e organizações, mulheres e homens que ousaram desenvolver a luta e o combate ao racismo, em meados da década de 1970, em plena vigência da ditadura militar em nosso país, uma das mais longas ditaduras do continente latino-americano (1964-1985).

Durante esse período, nosso país viveu sob intensa repressão e censura. Graves violações de direitos humanos foram realizadas contra aqueles que discordavam politicamente do regime. A violência contra a população negra também é ampliada nesse período em que as violências praticadas por um regime autoritário se intensificam.

É nesse contexto em que a luta de combate ao racismo no Brasil se reorganiza.

Uma brilhante pesquisa desenvolvida por Karin Sant’Anna Köslling, “As lutas antirracistas de afrodescendentes sob vigilância do Deops/SP (1964-1983)”, que utilizou a documentação do acervo do Fundo do Departamento Estadual da Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), preservada no Arquivo do Estado de São Paulo, mostra a vigilância e a repressão da ditadura militar frente as mobilizações de negros e negras durante esse período. Segundo essa pesquisa “os movimentos negros tornaram-se, assim como outros movimentos sociais, subversivos sob a ótica do regime militar ao denunciar o racismo no Brasil”.

Essa militância, de esquerda, tem como uma de suas principais estratégias a denúncia da discriminação, do preconceito e do racismo existente no país e o desmascaramento da farsa da democracia racial alardeada pela ditadura militar – no Brasil não existia racismo!

Trouxe junto com essas estratégias para o conjunto dos movimentos sociais em luta um debate importante: um projeto alternativo de poder não poderia ser construído sem a compreensão de que um ideário transformador, de cunho socialista, tem de incorporar a eliminação de todo e qualquer tipo de opressão, seja ela de classe, raça ou gênero. Nos primeiros debates sobre esse projeto, principalmente entre aqueles que iniciavam a construção do Partido dos Trabalhadores, destacava-se que o racismo praticado contra a população negra ao longo de nossa história é um dos principais aspectos das contradições existentes entre a sociedade e o Estado no Brasil.

As influências do ideário socialista

Fortes influências dessa geração foram as ideias socialistas presentes nos movimentos de resistência ao regime ditatorial vigente, incorporadas pelos  militantes da luta negra que se apresentaram através do jornal Árvore das Palavras, que se organizavam pelas ações do Núcleo Negro Socialista, por meio da seção Afro Latino América do jornal Versus e que contribuíram para  o surgimento do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), transformado depois no Movimento Negro Unificado (MNU).

Essa geração se diferencia das demais vertentes que surgem no movimento negro brasileiro contemporâneo principalmente porque compreendia o racismo como instrumento da exploração de classe e desmascarava os setores dominantes que insistiam em afirmar a farsa da existência de uma democracia racial em nosso país.

Relembrar essa história de resistência e luta nas ruas mais a reflexão sobre as diferenças que já estavam presentes no ressurgimento das ações de combate ao racismo em meados da década de 1970 pode explicar o que é o movimento negro hoje e, sem dúvida, pode contribuir para projetarmos o futuro da luta de combate ao racismo em nosso país e no mundo.

Reconhecer as diferenças de estratégias na condução da luta de combate ao racismo, que estiveram presentes na gênese do que denominamos de Movimento Negro Contemporâneo, também será fundamental para podermos estabelecer na conjuntura atual pontos de unidade entre as forças do movimento negro, de esquerda.

Alguns desafios e perspectivas, do movimento negro, do PT e da esquerda brasileira para a luta de combate ao racismo

O movimento negro, o PT e a esquerda brasileira precisam atualizar suas missões políticas para a luta de combate ao racismo.

No cenário de crise sanitária, ambiental, cultural, política e econômica que estamos vivenciando no Brasil e no mundo é preciso ser radical e ir além na avaliação positiva que temos dessa trajetória de lutas aqui relatadas.

Nessa conjuntura em que nos aproximamos de uma importante disputa eleitoral para a Presidência da República no Brasil, de eleição de governos estaduais, da necessária renovação na composição do Congresso Nacional e das assembleias legislativas mais do que defender os legados dos governos Lula e Dilma nas políticas de promoção da igualdade racial para a sociedade e a população negra brasileira precisamos de uma agenda que aprofunde o combate ao racismo, à discriminação, ao preconceito e ao genocídio do povo negro. A hora é de lutar, sonhar e almejar o impossível!

Novos anseios econômicos, políticos, culturais, materiais e simbólicos passaram a motivar a participação política da população negra brasileira, principalmente entre a juventude negra e as mulheres negras. Nossa população pela ação de nossos governos, dos nossos vereadores, deputados e senadores, do PT e demais partidos do campo da esquerda e, principalmente do movimento negro brasileiro, tem maior acesso à educação e saúde, à universidade e aos direitos trabalhistas. Tudo isso impulsionou uma nova agenda política que mescla raça, classe, gênero e que é impossível de ser atendida pela política conservadora e de direita em curso no país.

Nas próximas eleições e no cotidiano da construção partidária, essa política conservadora e de direita, se não for enfrentada e vencida com muita coragem e luta na sociedade, nos partidos, nos sindicatos, nos movimentos populares, no movimento negro e de mulheres negras, significará a ampliação da opressão sofrida por negras e negros no Brasil, onde o racismo além de permanecer pode até mesmo tornar-se mais cruel e violento.

Os problemas atuais da luta de combate ao racismo no Partido dos Trabalhadores

Além de uma avaliação crítica dos problemas internos da organização da luta antirracista que estão em debate nesse momento de renovação das secretariais municipais, estaduais e nacional, minhas reflexões indicam que há um retrocesso também no conteúdo do debate teórico de nosso partido: a questão identitária.

O racismo e a questão racial não podem ser considerados, nas nossas análises, nos nossos documentos e nas falas de muitos de nossos dirigentes apenas como expressões ou manifestações identitárias.

O combate ao racismo no Brasil passa pela mudança radical nas estruturas políticas e econômicas. Continua a ser estruturante em nosso projeto político partidário de país.

No momento em que estamos debatendo um Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil essa compreensão é fundamental: o racismo continua a ser um elemento fundante do projeto de nação das classes dominantes e da elite branca do país: no Brasil, na América Latina, no continente africano e no mundo o racismo mata!

Flávio Jorge Rodrigues da Silva é ativista da Soweto Organização Negra na cidade de São Paulo e da Executiva da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen). Foi secretário Nacional de Combate ao Racismo do PT (1995-1999)

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