EM DEBATE

Encerrando a discussão sobre estratégia política que o partido deve adotar, publicamos artigos de integrantes das tendências Força Socialista, Nova Esquerda e O Trabalho/Na Luta pelo Socialismo

Cara a cara com a realidade

Limites da estratégia

De volta para o futuro

Cara a cara com a realidade

É difícil descrever em poucas páginas uma proposta estratégica de modo globalizador e com detalhes muitas vezes fundamentais para uma melhor compreensão dos seus diversos aspectos. Procuraremos, assim, abordar apenas alguns pontos da questão.

O conceito de estratégia do Acúmulo de Forças Prolongado (AFP) tem sido identificado com um processo pacífico, que precede uma ruptura revolucionária, mais ou menos rápida em relação ao período anterior de um acúmulo. Diferente, por exemplo, da Guerra Popular Prolongada (GPP), que prevê a luta armada por um longo espaço de tempo. Diferente também de uma estratégia reformista. Neste caso, os avanços políticos, organizativos e institucionais não seriam "acúmulo de forças", mas a própria transformação social.

A insurreição não é incompatível com a GPP ou com o AFP. A insurreição não é uma estratégia em si. Ela pode fazer parte de uma estratégia de GPP ou AFP, como o momento decisivo de derrubada de um poder e constituição de outro. Portanto, o conceito de Estratégia Insurrecional não define muita coisa.

A denominação de uma estratégia não determina, por si só, todas as características e formas de luta utilizadas ou excluídas. Por exemplo, na GPP, em determinado momento, o mais importante pode não ser fazer a guerra propriamente dita, mas a tarefa de prepará-la. E, estando ela em andamento, é possível combiná-la com inúmeras ações legais, de massa, institucionais, pacíficas, econômicas, culturais, parciais, regionais etc., que permitam enfraquecer o inimigo e fortalecer as forças revolucionárias.

Da mesma forma no AFP. Se este se dá hoje principalmente através de lutas amplas, de massa, legais, da ocupação de espaços institucionais, do exercício de parcelas do poder estatal, isto não implica que será assim até que ocupemos todo o Estado burguês, ou sejamos hegemônicos nele e na sociedade o suficiente para impedir qualquer tentativa de golpe violento da burguesia.

Que legalidade?

Hoje não há razão para nos limitarmos a formas e instrumentos legais, reconhecidos pelo Estado e legislação burgueses. Inclusive porque, em muitos casos, é até polêmico saber o que é legal ou não. É legal fazer greves em setores essenciais? É legal ocupar um terreno urbano ou rural? Sempre? Nunca? É legal ir à praça pública com foices, enxadas e picaretas nas mãos? É legal reprimir esta manifestação?

É legal atirar em legítima defesa da vida. Mas e em legítima defesa da posse da terra? E usar violência para defender a moradia e os filhos? É legal a ocupação da fábrica? E a demissão de dirigentes sindicais que têm estabilidade, é legal? Institucional ou engorda? Engorda quem? Quem passa fome?

Sempre encontraremos alguém que diga sim e que diga não. E se não é legal?... É legítimo, justo, correto politicamente? Sempre? Quando? Na realidade, o AFP é um conjunto de ações múltiplas, diversificadas, às vezes até aparentemente contraditórias. Aliás, o que temos feito (a militância do PT e dos movimentos sociais mais combativos) é isto. Desde a luta contra a ditadura. Participamos de sindicatos e entidades estudantis atrelados ao Estado, em determinado momento votamos no antigo MDB; fizemos autocrítica do militarismo. Mas também realizamos greves ilegais, implodimos a estrutura sindical e construímos a CUT ilegalmente. Fundamos o PT na hora certa, com estatuto legal e tudo o mais. Porém, não esquecemos de definir uma estrutura interna mais democrática, não prevista na lei. Ocupamos terras, empresas e prédios públicos ou privados, negamos o Colégio Eleitoral, dissemos não à nova Constituição e à maioria dos candidatos do 2º turno de 1990.

Assim, a chamada "Guerra de Posições" no AFP não pode ser confundida, em nenhum momento, com uma luta meramente institucional e muito menos com "guerra de cargos" no parlamento, nas administrações, nos sindicatos etc. ("Vamos ocupando trincheiras - cargos - e um dia chegaremos lá."). Não é verdade, portanto, dizer que "o PT escolheu a via institucional" e pronto. Não é esta a nossa história. A guerra de posições, a luta que temos travado pela hegemonia é muito mais ampla e complexa que isto. Não podemos castrá-la tornando-a meramente legalista e institucional.

E nosso acúmulo de forças não está começando agora. O povo tem avançado na luta econômica, social e política. Estão aí a CUT e o PT, grandes mobilizações e greves nacionais, a multiplicação das entidades de massa. E, não esqueçamos, "quase" elegemos um operário socialista para a Presidência da República. O fato de alguns companheiros só recentemente, depois do acúmulo mais prolongado de erros, ter assumido a estratégia do acúmulo prolongado não lhes dá o direito de pensar que só agora as coisas começam...

<--break->Que ocidente é este?

Porém não basta ser combativo e atuar em todas as frentes. A conquista do poder político passa por enormes avanços no sentido de nos tornarmos força hegemônica, mas a consolidação da hegemonia política passa pela conquista do poder e o seu exercício, crescentemente a serviço, apoiado e com a participação direta das massas populares. Com a burguesia detendo os recursos econômicos, um poder estatal de tradição e atualidade autoritárias, os meios eletrônicos de comunicação de massa, como podemos pensar em ser hegemônicos na sociedade? E no Estado? Digo hegemonia de nosso projeto alternativo de sociedade, o socialismo. Não seria aconselhável pensar na possibilidade, pelo menos em nosso país, de uma força revolucionária chegar ao governo já com hegemonia consolidada, ou seja, o apoio consciente e consistente da maioria da população ao seu projeto global. É comum dizer-se que os bolcheviques eram uma força minoritária que se aproveitou de um momento de crise para, com o apoio de uma população trabalhadora cansada do czarismo e sem confiança na burguesia, dar um "golpe" e tomar o poder. Exageros à parte, perguntamos: e no Brasil, caso tivéssemos ganho as eleições em 89, poderíamos dizer que já éramos força hegemônica na sociedade? Ou seria mais coerente dizer que "aproveitamos a insatisfação do povo com tudo e demos um golpe eleitoral?"

Na realidade, quase ganhamos as eleições porque a burguesia brasileira e seus aliados não exercem uma hegemonia política estável na sociedade. Só isto explica que um partido frágil como o nosso ainda é, com um funcionamento precário de organismos, sem definição estratégica, sem meios próprios de imprensa e comunicação de massa regulares, pudesse dar o salto eleitoral que deu em tão pouco tempo. Quase ganhamos as eleições, porque não é possível dominar por "consenso", de forma "pacífica" e permanente quando o povo não tem salários dignos, não tem onde morar, o que comer, escola, transporte, terra. Onde falta até o "pão e circo" e dezenas de pessoas são assassinadas diariamente no que se acostumou chamar delicadamente de "violência urbana". Onde milhões de crianças estão abandonadas, carentes e se transformam em assaltantes de bancos aos onze anos de idade. Onde mais de mil crianças morrem diariamente de subnutrição, antes de completar um ano de idade. Onde o aborto é proibido e ilegal - além de ser pecado mortal - e quatro milhões de abortos são feitos por ano, dos quais 400 mil têm conseqüências fatais. Onde marginais - integrados ao sistema - mandam em muitos bairros populares e centros urbanos. Onde não se respeita sinal de trânsito. Onde não se respeita nenhuma instituição, a não ser a polícia. Mas neste caso não é respeito, é medo. Onde políticos, governantes e a maioria da oposição não são respeitados. Onde se vota mais "contra" do que "a favor" - quando se vota em alguém. Porque os "de cima" só dão exemplos de corrupção, mordomias, exploração, promessas e mentiras.

Todo mundo sabe disso. Mas é sempre bom lembrar: estamos falando de estratégia rara construir o socialismo no ... Brasil! Pois enfim descobriram que estamos num país "ocidental". Descoberta, diga-se de passagem, feita há quinhentos anos, quando Colombo saiu da Espanha em busca do caminho marítimo para as índias e descobriu que entre a Europa e seu destino havia algo mais do que o mar, tubarões e monstros mitológicos: havia as "índias... Ocidentais". Talvez por isso muitos nos chamem de "Belíndia", mistura de Bélgica com índia.

Certamente, por sermos este Ocidente "meio oriental", ou, quem sabe, um Ocidente "em cima do muro", é que as classes dominantes brasileiras construíram tantos muros, tantos obstáculos ao avanço das conquistas democráticas por parte das camadas populares. E, se conseguirmos ultrapassar estes muros, lá estará, no banco de reservas, uma grande muralha.

A burguesia faz isto, porque não confia nas suas instituições. Não confia, pois sabe que elas ainda não são capazes de "dominar por consenso" e que são incapazes porque não têm condições de exercer a hegemonia política legal e pacífica de modo estável em nosso país, enquanto as condições gerais de vida do povo forem características de um capitalismo monopolista dependente como o nosso. Por isto a fraqueza de nossas "instituições democráticas".

Este é o motivo de as Forças Armadas tutelarem o Estado, inclusive legalmente, através da própria Constituição do país, que, praticamente, institucionaliza a possibilidade de um golpe militar legal. Forças Armadas com tradição de intervenção violenta na vida nacional e único instrumento permanente de dominação política em nosso país que elabora estratégias de longo prazo, disputa hegemonia, tem disciplina e hierarquias respeitadas, preserva interesses próprios, está espalhado por todo o território nacional, investe em tecnologias de ponta e age como verdadeiro partido das classes dominantes. O capitalismo em geral desenvolveu o exército (industrial) de reserva. Já o nosso capitalismo foi adiante e criou o seu partido de reserva: o Exército. Forças Armadas dirigidas por generais conservadores e em cujo corpo de oficiais foi inculcado um profundo pensamento anti-socialista e onde houve, principalmente a partir de 64, uma verdadeira "limpeza" dos setores de esquerda, democráticos e nacionalistas. Sem falar de outros instrumentos paramilitares; da utilização ilegal (abuso do poder e arbitrariedade) de órgãos policiais civis ou policiais militares; esquadrões da morte e quadrilhas de repressão e crimes contra o movimento e lideranças populares.

Democracia: potencialidades e limites

Todo este quadro mostra as grandes potencialidades da luta democrática e por reformas no Estado e na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, mostra os limites de seus avanços dentro da institucionalidade e sem uma ruptura global com ela.

Qualquer estratégia que não leve isto em conta será suicida, pois não utilizaremos taticamente formas de luta, espaços de intervenção e formas de organização coerentes com o tipo de acúmulo necessário. A continuar supervalorizando-se os espaços institucionais e aumentando o descompasso entre o acúmulo eleitoral e a base política e social revolucionária organizada capaz de dar sustentação à conquista efetiva de poder, a transição ao socialismo, em vez de derrubar muros, apenas provocará a sua queda sobre nossas cabeças. Seria aventura. E de aventureiros o céu está cheio. Aliás, há algo no céu além dos aviões de carreira, algo no mar além de baleias em extinção e perigos na terra além de motoristas bêbados: céu de brigadeiro, mar de almirante, terra de generais. Que a paz esteja conosco!

Um partido revolucionário não pode esquecer isto. Não se trata de seguir modelos, ortodoxias, repetir jargões ou aplicar cópias de experiências estranhas à nossa realidade. Nem antigas, nem modernas, nem neo-arcaicas. Mesmo porque já copiamos demais o que se fez lá fora e não conseguimos fazer aqui. Quanto mais no que diz respeito ao que não deu certo nem lá fora. Trata-se de ver, com humildade e realismo, que: se a estratégia é um caminho geral para o socialismos ser construído; se sua elaboração é coletiva e em permanente relação prática e teórica com as massas; se isto só pode frutificar se for feito de forma organizada, então esta elaboração coletiva-teórico-prática-organizada só pode ser feita de modo coerente e globalizador por um partido dirigente. Um partido que tenha a memória de sua história e dos setores populares que busca representar, e que sistematize a história da luta dos trabalhadores no plano internacional. Um partido capaz de traçar táticas, coordenar forças e definir prioridades. Um partido capaz de, a partir das condições objetivas e subjetivas existentes, potencializar a luta do proletariado e outras classes e camadas populares. Não a tática imediatista do "é dando que se recebe" de massas, tipo pacto ou entendimento nacional. Não o sindicalismo de negócios de esquerda, o parlamentarismo de resultados e administrações de resultados.

Como já dissemos, não se trata de negar a importância dos espaços institucionais em geral e estatais em particular. Devemos saber quando radicalizar, quando negociar e como combinar as coisas. A disputa de hegemonia pressupõe que mostremos ao povo a nossa capacidade de melhorarmos sua vida quando temos nas mãos meios para fazê-lo - conquistar melhores salários e condições de trabalho através do sindicato, melhorar as condições de vida nas cidades que administramos, tendo atuação séria, honesta e votando no interesse dos trabalhadores no parlamento. Quanto mais conseguirmos, melhor. Seremos mais respeitados como bons, honestos e competentes, aumentando, assim, nossa influência na sociedade. Mas se fizermos isto sem o correspondente avanço da consciência e organização popular, este avança pode ser apenas eleitoral, podendo nos levar a vitórias neste campo muito acima das condições de enfrentarmos prováveis "desobediências cívico-militares" das classes dominantes.

Precisamos, portanto, de um partido e de um movimento proletário, camponês, popular e democrático que se prepare para o momento decisivo, de ruptura global, quando uma alteração radical da correlação de forças políticas passar pela transformação de uma maioria ou "hegemonia temporária" em hegemonia consistente, o que, em todo caso, pressupõe força militar. E não podemos empurrar esta questão indefinidamente com a barriga, ou melhor, com idéias metafísicas ou torcendo para que tudo, enfim, "acabe bem". Ou deixar para resolver na última hora, pois a solução aparecerá "quando se colocar o problema". Não teremos tempo. E o problema já está diagnosticado. Eles já têm a solução deles. Não esqueçamos, trabalham com estratégias e previsões de longo prazo.

Se quisermos, podemos ser ingênuos, mas não temos mais este direito. A burguesia brasileira não é burra. Não é à toa que consideram a sua democracia como de poucos, "dos mesmos", tática e não universal. Não é por acaso que ao lado de seus partidos fisiológicos-eleitorais para os tempos de dominação ditos pacíficos, mantêm o seu partido para a época da "ditadura": as Forças Armadas, com o permanente papel de pensar estrategicamente a função de guardiãs "da lei e da ordem", mesmo nos tempos de "democracia". Só esperamos que, depois, não apareçam os "profetas do acontecido" para dizer que "nós avaliamos que esta era uma hipótese que não poderia ser descartada", enquanto outros não terão mais tempo de ouvir o recado dos astrólogos: "Ei, Lampião, dá no pé, desapareça, pois eles vão à feira exibir sua cabeça."

<--break->Força predisposta

Como diria o velho Gramsci: "O elemento decisivo de cada situação é a força permanente organizada e antecipadamente predisposta, que se pode fazer avançar quando se manifestar uma situação favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e esteja carregada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em cuidar sistemática e pacientemente da formação, do desenvolvimento, da unidade compacta e consciente de si mesma, desta força."

A crença de que o nosso caminho fundamental é a reforma do Estado pela "via institucional", começando por idílicas reformas constitucionais em 93 - quando serão discutidas modificações que dificultam a disputa política dos trabalhadores e facilitam a dominação "pacífica" das classes dominantes, como o voto distrital e misto (frio) e o parlamentarismo, que deformam ainda mais a representatividade do voto universal - é "Plunct, Plact, Zum: não vai a lugar nenhum!"

Mas estratégias baseadas em rupturinhas ou no discurso centrado no pacifismo juramentado, que acredita na possibilidade de a burguesia passar a respeitar as instituições democráticas, parecem coisa de avestruz: fecham os olhos para a realidade ou cobrem o rosto com as mãos e ficam olhando pelas frestas dos dedos.

Uma estratégia não precisa definir os detalhes do processo nem pode adivinhar o que vai acontecer. Mas trabalha com previsões e procura dirigir esforços para questões essenciais e para o enfrentamento de situações mais prováveis. É verdade que prever significa apenas ver bem o presente e o passado em movimento. Isto é, identificar com exatidão os elementos fundamentais e permanentes do processo. Mas é absurdo pensar em uma previsão puramente "objetiva".

Quem prevê, na realidade tem um "programa" que quer ver triunfar, e a previsão é exatamente um elemento de tal triunfo. Isto não significa que a previsão deva ser sempre arbitrária e gratuita ou puramente tendenciosa. Ao contrário, pode-se dizer que só na medida em que o aspecto objetivo da previsão está ligado a um programa esse aspecto adquire objetividade: 1) Porque só a paixão aguça o intelecto e colabora para a intuição mais clara. 2) Porque sendo a realidade o resultado de uma aplicação de vontade humana à sociedade das coisas (do maquinista à máquina), prescindir de todo elemento voluntário, ou calcular apenas a intervenção de vontades outras como elemento objetivo do jogo geral, mutila a própria realidade. "Só quem deseja fortemente identifica os elementos necessários à realização da sua vontade" (Gramsci).

Não há caminhos "mais fáceis" para construir o socialismo no Brasil. Há, apenas, caminhos mais prováveis. A realidade está aí. Não há porque temer. Ela pode nos morder, é verdade. Mas nós também podemos transformá-la.

Jorge Almeida é membro da Comissão Executiva Nacional do PT e do Conselho Editorial de Teoria & Debate.

Limites da estratégia

O desmoronamento do comunismo no Leste Europeu não atestou somente o fracasso de uma tentativa de construção do socialismo. Foi também conseqüência dos impasses da concepção marxista da história e da própria idéia de um futuro "reino da liberdade", ilusão e engano ideológico que o suportava. Incapaz de perceber a contingência do tecido histórico e a fortuidade de que a realidade é feita, o marxismo cavalgou sobre o universalismo absoluto e o determinismo. Tentando dar uma resposta à questão legítima do sentido da nossa existência concreta, respondeu-a ilegitimamente, ao pretender ter descoberto o sentido da história.

O projeto comunista estabeleceu-se, assim, como uma utopia escatológica da qual derivaram "leis" e um "sujeito" capaz de realizá-la, segundo o "dogma" do desenvolvimento histórico. A história foi transformada em objeto, apreensível "cientificamente", e ao mesmo tempo em sujeito. A progressividade do seu desenvolvimento seria assegurada pelo paradigma da produção, que estabeleceria o encadeamento necessário de determinados modos, a cada um correspondendo um sujeito. Estes sujeitos seriam as classes e a operária seria a última - teria a missão e a condição de realizar o fim da luta de classes, da história. Pois bem, este edifício teórico é insustentável. Estilhaçou-se ao não perceber que nós, a humanidade, é que constituímos a historicidade. Seus argumentos, transformados em blocos de concreto, pedras e ferro, foram despedaçados com o derrubamento do muro de Berlim.

Parece, contudo, que muitos estilhaços dos blocos escatológicos permanecem encravados nos cérebros da esquerda. Se não, o que dizer de um Juarez Guimarães que ainda supõe que os trabalhadores têm uma missão messiânica? Guimarães (e muitos outros) certamente não percebe que toda a argumentação baseada em uma suposta transcendência não consegue fugir à auto-referencialidade.

E o que dizer de um Ronald Rocha, que por meio de mirabolâncias dialéticas quer levar a democracia a um misterioso suicídio, fazendo com que ela se jogue no precipício da não-democracia? Ronald professa fé e certeza inabaláveis em seus argumentos: "A democracia universal já não será..." Esta forma de expressar-se denota a pretensão de já saber como será o futuro. Tamanha certeza só é comparável à de Santo Agostinho em relação à Cidade de Deus.

Somente as falcatruas da dialética permitem que Ronald fale em legitimidade, pois não pode haver legalidade na dissolução do direito na ação ou na "práxis do Homem real". Qual é o sentido de uma legalidade em um "não-Estado"? E por falar em dissolução de fronteiras entre esquerda e direita, a noção de "não-Estado" como a da dissolução entre o formal e o real corresponde exatamente à idéia de Estado total dos movimentos e regimes totalitários nas suas versões nazista e comunista (stalinista), que acabaram com a diferença entre Estado jurídico e sociedade civil. Aliás, Hitler até tem uma formulação teórica sobre o assunto: "O Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre lei e ética, porque, quando se presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de todos, então não há mais necessidade de decretos públicos." Ora, isto corresponde exatamente a uma síntese do real e do formal. Os seus resultados foram experimentados cruelmente por milhões de homens, massacrados em nome de uma práxis totalizadora emanada tanto do "Estado total" de Hitler, como do "Estado sem classes" de Stalin.

<--break->De modo geral, as concepções das correntes de esquerda sobre o poder estão ultrapassadas e inoperantes nas sociedades atuais. No fundamental, o concebem como um objeto que pode ser tomado, acumulado e guardado em algum baú de surpresas para ser utilizado no dia do "momento decisivo". Adotaremos, aqui, os pontos de vista básicos de Luhmann acerca do poder, concebendo-o como uma relação de interdependência que forma cadeias complexas de relações humanas nas várias esferas de ação: política, cultural, econômica, afetiva etc. Esta concepção pressupõe que em ambos os lados da relação - dirigentes-dirigidos, poderosos-subalternos, comandantes-comandados - exista uma situação de dupla contingência, em que as duas partes tenham alternativas de escolha. O poder ocorre quando se verifica uma transmissão de resultados seletivos do poderoso, por meio de códigos generalizados simbolicamente, implicando a reprodução de resultados seletivos por parte do subalterno. A função do poder consiste na regulação (e não eliminação) da contingência. Ele não é resultado da instrumentação da vontade ou de uma imposição de um agir mecânico, mas é resultado de uma relação em que o subalterno dispõe sempre da possibilidade de recusa dos resultados seletivos do poderoso.

O que se recusa com isto é a idéia de que o poder seja um complexo objetivo autárquico ou que seja simplesmente emanado da riqueza material. A propriedade é apenas um meio disposicional do poderoso.

O poder não surge por si só e também não é subproduto da evolução social. O seu fundamento é contingente e ele está numa relação de proporção com a possibilidade de agir. Quanto mais o sistema social se diferencia, quanto mais corpos plurais existem na sociedade, mais o poder aumenta. E podemos acrescentar: mais tende a ser democrática a sociedade.

Como bem observa Luhmann, o poder tem um fundamento universal que não depende exclusivamente da diferenciação social. Este é o "o fundamento do poder violência física". Contudo, violência física é coação, e coação não é poder porque ela reduz as possibilidades de escolha do coagido a zero. Poder significa transmissão de seletividade e restrição de alternativas do parceiro. A coação revela falta de poder porque abandona a orientação da seletividade do parceiro.

O Estado moderno não se funda no monopólio da violência física, mas no monopólio decisório sobre a utilização da violência física. Luhmann observa ainda que não há uma polaridade unidimensional entre legitimidade e poder, ou entre consenso e coação. "Nem legitimidade nem violência surgem sem mediação de processos simbólicos. Os conceitos não caracterizam nem uma oposição simples nem dois pólos de uma dimensão unitária, de modo que se pudesse dizer: quanto mais violência tanto menos legitimidade e inversamente."

Destas visões sucintamente expostas podemos tirar uma primeira conclusão: disputar o poder em uma sociedade, do ponto de vista da transformação da relação dominantes-dominados, significa a criação de alternativas para os dominados e a afirmação de sua autonomia no processo seletivo. Esta conclusão nos oferece uma abertura para discutirmos o conceito de hegemonia.

O conceito de hegemonia adquiriu vários significados. Limito-me, aqui, a assinalar qual dos significados encontrados em Gramsci me parece o mais fecundo. Em uma passagem dos Cadernos do Cárcere, ele indica que o recurso às armas e à violência limita-se apenas a uma hipótese metodológica. A única possibilidade concreta que existe é a do compromisso entre as forças que lutam pela transformação histórica, para a fusão orgânica de um novo bloco histórico". Neste compromisso, as questões culturais e morais têm um peso decisivo na formação da nova hegemonia.

Atualmente, esta interpretação do conceito de hegemonia pode ser recuperada e desenvolvida se for depurada da suposição de que a estrutura sócio-econômica é base formadora de "sujeitos". Isto nos permite abandonar a idéia mítica de que a classe operária seja o sujeito histórico universal da transformação socialista. Em seu lugar podemos adotar uma idéia muito mais fecunda de sujeito, a de Habermas, entendendo-o como todos aqueles que integram uma comunidade de comunicação regida pelas regras universais de argumentação racional, procedimento a partir do qual pode formar-se um acordo. Esta razão comunicativa deve ser capaz de formar fins práticos coletivos alternativos à razão instrumental tecnocrática que se instituiu como principal fonte e forma de dominação nas sociedades modernas.

Esta noção de sujeito não se identifica com o "espírito" ou com a estrutura de um período histórico, e nem se entende como uma classe social em particular, dirigente ou oprimida. Com isso, livramo-nos do estruturalismo e do universalismo (autoritários e absolutistas) da modernidade, e podemos reconhecer o caráter plenamente contingente das sociedades e da história, sem abandonar a razão e sem mutilar os desejos. O sentido da existência histórica e o destino das sociedades serão aqueles construídos pela interação comunicativa, em que a pretensão de verdade dos projetos deve ser aquela compartida em um processo instituído de consentimentos, escolhas e seleções que ocorrem sobre um pano de fundo contraditório de uma realidade dada, uma realidade mutável e uma realidade contingente.

Neste âmbito, o conceito de hegemonia só terá operacionalidade se puder ser desligado da noção instrumental de "acúmulo de força" e da noção de dirigismo partidário. O conceito de hegemonia deve indicar um conjunto de procedimentos orientados para a construção de um consentimento. Cada indivíduo e grupo de participantes certamente formularão proposições e conteúdos com pretensão de validez na interação deste processo. (Um projeto partidário deve ter esta significação). Para evitar mal-entendidos, cabe assinalar que este consentimento não supõe a supressão das pluralidades, diferenças e potenciais conflitos. O consentimento é resultado do acordo possível e visa atualizar as dissensões.

Castoriadis observa que "o mundo histórico é o mundo do fazer humano. Esse fazer está sempre em relação com o saber, mas esta relação precisa ser elucidada". O projeto partidário diz respeito a esta relação. Nenhum projeto pode pretender o estatuto de uma teoria completa, pois a política não se reduz a uma técnica. Caso isso fosse possível, eqüivaleria rechaçar a história, domínio do fazer humano, a um nível de objeto delimitado ou delimitável por um saber qualquer.

Que a política no mundo moderno restringiu-se a uma técnica manipulatória praticada por empresários eleitorais, que esta manipulação agrava cada vez mais a passividade das massas e que os partidos (inclusive os de esquerda) transformaram-se em agências de consultaria econômica e administrativa e eventualmente em gerentes de instâncias estatais, é uma evidência que atesta uma profunda crise. A política, na sua determinação essencial, não é um fim exterior ao qual o sujeito se dirige.

O que fundamenta a política não é a satisfatoriedade ou a precariedade de um saber (Castoriadis), mas é a incomplementariedade do ser humano e do mundo. É por isso que a política, como de resto outras atividades humanas que se inscrevem na afirmação da autonomia, é um fazer positivo de descortinação do novo, de dessacralização do real e de transformação do existente. Mas ela não é caótica e desprovida de sentido. É justamente um projeto, entendido como orientação regulativa da ação e como conjunto de representações e significações, que lhe dá sentido. O projeto diz respeito ao âmbito histórico, já que ele orienta (mas não determina) como os homens devem desenvolver as suas relações na esfera do público. É evidente que a principal carência hoje do PT é a ausência disto.

<--break->Por ser um projeto de história, que não necessariamente será, mas que pode e deve ser (na auto-definição de cada sujeito), deve explicitar os problemas da sociedade como totalidade da realidade histórico-social que se reconhece no presente, mas não pode ser identificada com a totalidade da realidade histórico-social existente. Nenhum projeto será capaz de criar artificialmente uma nova totalidade, pois esta é autoprodução humana como "unidade aberta" e é teoricamente inabarcável no seu devir; só é passível de apreensão enquanto resultado, como bem percebia Hegel. O que aparece como histórico-social sempre é resultante da ação de múltiplos sujeitos e de suas interações. Nunca coincide com este ou aquele projeto traduzido no domínio total, o que implicaria o controle ou eliminação da espontaneidade como elemento essencial da liberdade. O totalitarismo, seja na sua versão nazista, seja na sua versão comunista (stalinista), pretendeu afirmar a sua superioridade em relação às outras filosofias políticas, abolindo a separação entre vida pública e vida privada, entre Estado e sociedade. Estas concepções do conceito de política aqui esboçadas apontam o limite do conceito de estratégia.

Desde os gregos, é tradição vincular todas as teorias de ação ao conceito de Teleologia. O ator elege um fim ou quer produzir uma situação desejada, escolhendo em circunstâncias dadas os meios mais coerentes. Para isto, deve decidir entre alternativas de ação mediante a interpretação e o conhecimento da situação. Habermas observa que "o conceito de ação teleológica pressupõe relações entre um ator e um mundo de estados de coisas existentes. Este mundo objetivo está definido como totalidade dos estados de coisas ou que podem apresentar-se ou ser produzidas mediante uma adequada intervenção no mundo". Na ação teleológica não há a necessidade de supor a existência de mais de um ator. A ação teleológica pressupõe um só mundo e este se apresenta como objetivo.

A ação estratégica também pressupõe um só mundo (objetivo). Ela difere das ações reguladas por normas, em que o ator orienta-se por valores e em relação aos membros do grupo social. A ação regulada por normas pressupõe dois mundos: "Junto ao mundo objetivo de estado de coisas existentes aparece o mundo social a que pertence o mesmo ator em sua qualidade de sujeito... "(Habermas). Junto com outros este sujeito pode desenvolver interações reguladas normativamente. Na ação estratégica existem, pelo menos, dois sujeitos e a ação de um deve levar em conta as expectativas de decisões do outro. Da mesma forma, os propósitos de realização dos fins de um agente têm a pretensão de influir sobre as decisões dos outros atores. Habermas observa que o resultado da ação estratégica depende também dos outros atores, cada qual agindo para alcançar seu próprio êxito. O sujeito da ação estratégica age motivado pelo cálculo egocêntrico e pelo utilitarismo articulado com os resultados a alcançar.

Praticamente todas as teorias estratégicas da esquerda, de Lenin a Mao, de Guevara à esquerda brasileira, reduziram a estratégia a um jogo entre dois sujeitos cujo resultado é zero. Isto é, no jogo estratégico entre os dois sujeitos (burguesia/proletariado, revolução/contra-revolução), o que um ganha o outro perde. Mas o mais grave é que há uma tendência de reduzir a própria política à ação estratégica. Este raciocínio representa uma absurda simplificação da complexidade social, uma redução da multiplicidade de sujeitos e representa uma anulação de especificidade do agir político, apresentando-o como mero subproduto da estrutura sócio-econômica.

Cabe notar ainda que se a política, além de constituir finalidades, é um fim em si mesmo, na medida em que é afirmação da autonomia (liberdade) dos sujeitos, então ela não pode ser reduzida a uma ação estratégica. Em grande medida, a política se situa no espaço da contingência. A ação estratégica deve ser encarada como um limitado aspecto da política.

Penso que a teoria da ação comunicativa de Habermas – e, particularmente, o seu desdobramento na idéia de um "agir orientado para o entendimento mútuo" - oferece importantes pistas para repensar os procedimentos do fazer político sob novas perspectivas. Há que se notar que esta possibilidade sequer está autorizada pelos textos de Habermas. Mas se a política é "agida" pelo discurso ou se o discurso é também o acontecimento da política, alguma relação entre a teoria de Habermas e a política deve haver. Para o filósofo alemão, o "agir orientado para o entendimento mútuo" tem um sentido contrário ao "agir orientado para o sucesso" ou ações orientadas estrategicamente. A ação orientada para o entendimento mútuo visa evitar conflitos através da coordenação e acordo de seus planos de ação. As ações estratégicas dependem dos "cálculos de ganhos egocêntricos". Habermas afirma que em "ambos os casos a estrutura teleológica é pressuposta na medida em que se atribui aos atores a capacidade de agir em vista de um objetivo e o interesse em executar seus planos de ação. Mas o modelo estratégico pode se satisfazer imediatamente orientado para o sucesso, ao passo que o modelo do agir orientado para o entendimento mútuo tem que especificar condições para o acordo alcançado comunicativamente sob as quais Alter pode anexar suas ações às de Ego."

Certamente seria ingenuidade pensar que toda ação política possa se desenvolver informada pelo entendimento mútuo. Mas no mundo pós-Guerra Fria, no mundo pós-muro, no mundo pós-falência das ideologias, no mundo da necessidade radical de resolver os problemas ecológicos e os problemas da fome e da pobreza de dois terços da humanidade, parece que ganha cada vez mais sentido a mudança de paradigma de modelo de ação: passagem da ação política unicamente orientada por um agir estratégico para uma ação orientada também para o entendimento mútuo. Esta mudança assume uma maior nitidez nas relações recentes entre os Estados, nas quais se observa um significativo empalidecimento das estratégias do "Estado-nação" e da geopolítica das grandes potências. O atual conflito no Oriente Médio e o potencial de conflitos étnicos na Europa Oriental ameaçam e reforçam a necessidade dessa mudança de perspectivas.

Na realidade particular de cada país, principalmente os do Hemisfério Sul - podemos tomar como exemplo o Brasil - veremos que esta mudança de visão é muito mais difícil e complexa. Temos aqui uma realidade social, política e econômica pouco propícia à "disputa de hegemonia", dadas as disparidades e os desequilíbrios em todos os níveis. Por isso, a luta por reformas radicais em todas as esferas e a luta dos movimentos sociais para conquistas positivas e instituição de direitos, apresentam-se hoje como o âmago de qualquer tentativa lúcida para transformar a nossa sociedade e elevá-la a um nível de civilidade minimamente condizente com aquilo que há de mais universal, democrático e livre em nossa contemporaneidade. Nesta realidade, o que parece estar em vias de esgotamento é o dirigismo partidário baseado em um modelo de ação estratégica. Vocacionado para ser minoritário e autoritário, este pensamento tem dificuldade de operar com as novas exigências e com a pluralidade de sujeitos, lutas e desejos. Tem dificuldade, inclusive, de compreender que a política não é a única atividade emancipatória.

Neste texto de idéias provisórias e pouco desenvolvidas, tive pretensão de fugir ao estilo receituário. Mas não posso deixar de observar que o PT vem perdendo a capacidade de comunicar-se com a sociedade e com outros grupos políticos e movimentos organizados. A fecundidade do seu projeto, a ser definido, pressupõe esta comunicação. Sabemos que vivemos em uma sociedade brutal que muitas vezes nos faz perder não só o sentido do que seja viver bem, mas o sentido do que seja simplesmente viver. A única conclusão visível a ser apontada é a urgência de que os dominados, os excluídos da cidadania e todos aqueles que buscam alternativas para nossa sociedade esforcem-se em agir orientados pela busca de um entendimento mútuo para estabelecer fins práticos coletivos contrapostos à razão da mediocridade tecnocrática, acobertada pelo cinismo político que domina m nosso país.

Aldo Fornazieri é professor de Teoria Política na Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais e membro do DR/SP.

De volta para o futuro

Existem várias maneiras - nem sempre contraditórias - de enunciar a resolução do problema da estratégia para o socialismo no Brasil. Uma delas - certamente oposta às demais, e que parece estar se popularizando nos meios dirigentes - consiste em simplesmente negar o problema.

Para quê estratégia? Coisa mais antiga, superada, militarista. Queremos a reforma do Estado, dizem alguns, e temos que discutir que reforma apresentar para o Estado e pronto (o implícito é que as reformas deste Estado que aí está são a própria "estratégia" para alcançar algum socialismo).

O leitor não acredita? Pois saiba que na direção do partido foi o que se argumentou para que fosse retirado o ponto "Estratégia" da pauta do 1º Congresso. Assim, rapidamente. O monstro surgiu na lagoa, mas logo imergiu nas águas calmas. Não sem levar consigo o ponto da "Estratégia" agregado agora, por compromisso, com um outro ponto chamado de "Caminhos para o socialismo". Certo, não é tão grave. Há, porém, quem acredite ter visto o monstro, e jure que ele voltará a sair da lagoa antes do 1º Congresso.

Como o fantástico integra o real, esse deve ter sido mais um lance da busca pelo PT de uma estratégia para a revolução. Talvez prenuncie a nova moda, a da reforma como pós-estratégia. Depois da "estratégia da acumulação de forças", que andou em moda entre 1987 e 1989, depois da "estratégia da conquista da hegemonia", que foi o must da maioria das teses do último Encontro Nacional, e que está enfraquecida mesmo naqueles salões europeus onde brilhava há pouco tempo, alguns companheiros buscam sequiosos qualquer coisa para apresentar desde que pareça nova. Como novo é o PT, dizem eles.

Onde está o novo

Vista de uma perspectiva histórica, contudo, a novidade do PT consiste em que ele foi um dos fenômenos mais clássicos, ortodoxos, que surgiram no panorama das organizações políticas que lutam pelo socialismo. Um partido de trabalhadores independente, sem outro programa específico que a defesa dos interesses desta classe e a recusa de outros partidos antes instituídos neste terreno, mas já organicamente subordinados aos interesses de centros de poder. A ausência de programa não era uma virtude, como alguns cantaram, nem tampouco um defeito congênito que anulasse o aleijão, como proclamaram iluminados. Essa ausência era só um momento.

A inspiração que o PT precisa encontrar na história não é a de um modelito triunfante, mas a do método que até certo ponto esteve presente na sua própria história. Integrar o "velho" no "novo". Retomar uma continuidade.

Ninguém vai fazer a revolução para as massas. Ao PT cabe ajudá-las a encontrar a ponte entre as suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Ou seja, o PT não inventa as massas, não decreta suas lutas, ele ajuda a ligá-las com a plataforma de transformações socialistas. Estando presente pela atuação de seus militantes, ele apresenta um sistema de reivindicações que aponta para o socialismo. O conteúdo desse sistema nem é máximo por fogoso, nem mínimo por prudente. Deve partir das condições em que as reais lutas sociais se dão, e das quais um componente fundamental é a consciência de classe distinta com interesse próprio que devem adquirir os trabalhadores. Isto deve conduzi-los invariavelmente a uma só e mesma conclusão: a necessidade da conquista do poder político de Estado.

Essa conquista não é o coroamento da revolução, mas apenas seu início. Porque fica por realizar toda uma série de transformações da vida social, para além da esfera política, sem as quais não há emancipação. E, principalmente, porque o triunfo da revolução é inconcebível dentro das fronteiras nacionais de um país. O capitalismo, dominante no mercado mundial por ele mesmo criado, articula uma divisão do trabalho e uma organização geral das forças produtivas da humanidade que prepara a economia mundial em seu conjunto para a transformação socialista. Ao mesmo tempo, pressiona cada retalho de território que se desprende do seu domínio (anarquia do mercado) para aí reintroduzir-se. A estratégia integra então a dimensão internacional.

Como nunca, o exercício do poder político de Estado pelos trabalhadores depende da democracia. Porém de uma democracia ativa, mobilizadora, direta. Essa apropriação radical do exercício direto do poder político, com a menor delegação representativa possível, é necessária para combater tanto a restauração da velha ordem pelas forças conservadoras, como também a usurpação que conduz a essa restauração, indiretamente. Os conselhos são a forma que a história registrou pela qual essa democracia foi exercida em diferentes países e em diferentes momentos. Em todos os casos, o pleno funcionamento dos conselhos se opôs à manutenção das estruturas de poder dos Estados existentes, com os quais estava em contradição mortal (dualidade de poderes). A estratégia destaca a construção dos conselhos, que podem ser cultivados desde o embrião.

Nenhuma forma democrática estabeleceu-se nos momentos cruciais da história por meios propriamente democráticos, sem que isso diminua sua grandeza. Um pacifismo que significasse um desarmamento antecipado e unilateral dos oprimidos, a pretexto de um padrão superior de civilização, seria uma ingenuidade de conseqüências provavelmente trágicas. A violência revolucionária dos oprimidos se impõe pelos métodos de guerra civil que os opressores utilizam contra suas mobilizações pacíficas. É quando as Forças Armadas rasgam a Constituição e as polícias ignoram as leis. Quando não - lançam mão desde antes de forças paramilitares, como fazem hoje no Acre. A estratégia integra o direito à autodefesa das massas.

Um transformação social revolucionária de tipo socialista necessita de concurso da maioria social. Sem isso não se originaria uma democracia capaz de assegurá-la. Mas os trabalhadores, os proletários, não são maioria no Brasil. Mesmo engajados em movimentos de revolução, se isolados serão derrotados. Vem daí a necessidade da chamada política de alianças, que não é mero recurso de manobra, mas fundamental, porque as camadas sociais oprimidas pela ordem imperialista e beneficiárias da transformação socialista são, efetivamente, amplamente majoritárias.

Mas a frente não é um amontoado o maior possível. Os teóricos das amplíssimas alianças (como vimos agora no 1º e no 2º turnos das eleições de 90) não vão além da primeira operação da aritmética, a adição. A soma de petistas, comunistas, socialistas, verdes, brizolistas, pessedebistas e peemedebistas é maior que o total de cada um separado. Esta é toda sua sabedoria. No entanto, em política aritmética não basta. São necessárias a física e a mecânica, ao menos. Se há forças agindo em várias direções (alguns desses partidos têm vetores completamente diversos), a força resultante depende da somatória e subtração do conjunto. Ela é tanto mais fraca quanto mais divergirem as forças entre si.

Onde está o velho

Como se vê, nesta maneira de abordar o problema da estratégia há um objetivo. Há uma experiência internacional e nacional. Há um método enriquecido pela história que devemos desenvolver à luz da conjuntura.

Mas não há um modelo para copiar ou transplantar, nem tampouco nenhum novo "paradigma" para tentar moldar a luta das massas. Nenhuma revolução, vitoriosa ou não, teve seu caminho escrito antes. Há uma que sequer tem uma história (oficial) escrita, nem trinta anos depois. O que não impediu que alguns pretendessem reduzi-la a um determinado modelo (oficial) também. A genialidade de um revolucionário não está em antecipar todas as condições nacionais e internacionais que determinam o curso que terá uma revolução. Isso nos colocaria no terreno da profecia, religiosidade, por aí. A genialidade está em aprender com a história que são as massas que a fazem, e com elas perseguir um objetivo.

A noção de Estado ampliado pode ser muito útil para aqueles que um dia conceberam (o autor se inclui entre estes) o Estado como um "reduzido" aparelho de coerção, desconhecendo os mecanismos de consenso, cooptação etc., e que, por isso, imaginavam que o assalto bem organizado da contra coerção daria cabo desse Leviatã, ou que sua conquista se daria pelo controle de suas chaves de comando.

Tremendo equívoco da guerrilha dos anos 60/70. Mas para livrar-se dele não é preciso descobrir virtudes e virilidades no podre e corrupto Estado brasileiro que - oh proeza - teria se desenvolvido e deixado de ser o que era, para ser essa potência moderna "ampliada".

O erro daquela guerrilha não foi o de fechar os olhos ao desenvolvimento do Estado que deixaria, assim, de ser um raquítico Estado a Ia Batista ou Somoza. O equívoco foi ignorar que Batista ou Somoza sustentaram-se pela força, em uma dada situação internacional, e com apoio interno de dirigentes traidores do movimento de massas, construindo assim também um "consenso". Nenhuma forma de dominação estável pode sobreviver com base apenas na "reduzida" coerção.

Lenin não tem nada a ver com o Estado "reduzido". E isso frustrará os caçadores do "leninismo-blanquismo" (invenção da social-democracia direitista do princípio do século). Aqueles que aí procuram Lenin são caça-fantasmas. Seus próprios fantasmas.

Outra novidade teórica é a de que a nova hegemonia não se concebe como produto de uma ruptura ("batalha final"), mas de uma sucessão de rupturas.

Que quer dizer isso?

Marx refutou a idéia anarquista de 150 anos atrás, que concebia a emancipação como a grande greve geral que aboliria o Estado, a "grande soirée". Mas os marxistas seguiram apreciando as virtudes das grandes greves gerais nos processos revolucionários. Marx sabia que na guerra de classes, como em qualquer outra, há batalhas secundárias e a principal. E viu na experiência da Comuna de Paris quão árdua seria a batalha pela substituição do velho Estado.

Então, isso de "várias rupturas e não uma ruptura" quer dizer o quê?

Muito tempo atrás, os reformistas abandonaram o gosto pelos efeitos revolucionários das grandes greves gerais. Preferiam o caminho da sucessão de reformas (rupturas), que em um momento quase imperceptível desembocariam no socialismo. Note-se que era um reformismo honesto. Honesto porque o capitalismo era então efetivamente capaz de ceder à pressão de reformas reais e duráveis, elevando o nível de vida do trabalhador. Foi esse reformismo que evoluiu para o culto e o embelezamento do parlamento. Uma adaptação perniciosa que gerou uma doença - o oportunismo - que continua presente. Prova são os companheiros que consideram uma inovação original do PT seu investimento "corajoso" na institucionalidade, "coragem" que é mais propriamente um vício, uma perigosa dependência.

Foi aquele reformismo honesto que levou ex-marxistas - os marxistas sempre foram adeptos da luta pelas reformas - a abandonar finalmente a revolução. Como conclui Rosa Luxemburgo, chegara-se a uma situação onde só os revolucionários lutavam por reformas, pois não tinham medo da revolução. Conscientes do limite do capitalismo no novo período, período de "reação em toda linha", os reformistas abandonaram a luta pelas reformas que o capitalismo já não absorvia. Por medo da revolução. Essa foi a base da ruptura inconciliável entre os ex-marxistas, ditos reformistas sem reforma, com os revolucionários que seguiram adeptos da luta por reformas (rupturas parciais que preparavam a ruptura revolucionária).

Mas isto faz oitenta anos. Se o capitalismo já havia esgotado materialmente suas reformas, hoje ele se nutre da reconquista daquilo que cedeu. Talvez por isso, os adeptos da teoria de que a hegemonia (antes era o "homem novo", mas não importa) antecede a ruptura escrevam que "não basta tomar o poder" - seria o leninismo, segundo eles - e persigam outras rupturas, como explicam, "sobretudo as espirituais". Há um vastíssimo campo abstrato para conquistar.

Há uma verdadeira descoberta do Brasil. Debatedores se sucedem para demonstrar que as experiências ou modelos dos bolcheviques e da "guerra popular prolongada" não se aplicam ao país. Mas como já se disse, os bolcheviques nunca conceberam um modelito de exportação. Alguns companheiros que acentuam a limitada experiência parlamentar da Rússia pré-soviética como traço distintivo da experiência brasileira excitam-se com as possibilidades do PT de "acumulação institucional"; como dizem. Quanto à tal "guerra popular prolongada", a insurreição camponesa acabou levando a direção maoísta muito, mas muito mais longe do que gostaria. O suposto modelo chinês é ainda menos "paradigmático" que as experiências positivas da Revolução Russa, embora seja mais contemporâneo. Mas alguns companheiros - ex-adeptos? - abandonam-no junto com o objetivo da destruição do Estado existente.

E então, a que chegamos?

A novidade produzida, a originalidade para o Brasil seria a "estratégia da pinça" ("combinação do avanço sobre a institucionalidade com a criação do poder popular"). "Boa imagem" para alguns companheiros, já é "demiúrgica" para outros. Mas que problema se resolveu com a "pinça"? A presença na institucionalidade estatal está a serviço de sua destruição e substituição pela República dos Conselhos, ou ela é instrumento de reforma desse Estado ao qual se encabresta o poder popular (conselhos), transformado em órgão de colaboração e pressão? Que se desculpe o antigo da fórmula, repitamos - reforma ou revolução? A estratégia da pinça lembra mais a genialidade do pragmático farmacêutico, que colocado perante o problema responde: "Bem. bem, aperta daqui, aperta de lá, e a coisa sai."

Não há dúvida que o debate deve prosseguir.

Marcus Sokol é membro da Executiva Nacional do PT.

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