EM DEBATE

A nova realidade brasileira transformada, principalmente, pelo projeto de governo protagonizado pelo PT, coloca para seus militantes desafios urgentes como a ação política de esquerda no cotidiano da população, não apenas nos períodos eleitorais. Questão abordada nas contribuições de Monica Valente, Rodrigo Cesar e Eliezer Pacheco para os debates preparatórios ao V Congresso.

Menos recuo, mais ousadia

Nascemos com a vocação para mudar o país

Esquerda Brasileira: renovar-se ou perecer

Menos recuo, mais ousadia

Não se sustenta o raciocínio de que é possível repetir em 2015 a estratégia aplicada em 2003-2005, de que basta melhorar nossa capacidade de aplicá-la. Mudaram completamente as condições da luta de classes

Entre os petistas, parece consenso que o PT encerrou um período de sua história, ensejando a necessidade de mudanças para encarar e construir o período seguinte. Mas, como a história de um partido não se separa da história de seu país e do mundo, devemos entender este momento da trajetória partidária como um aspecto da história brasileira e mundial.

Quem luta pelo socialismo e observa a realidade em perspectiva deve reconhecer que duas variáveis se combinam desde o final do século 20: a defensiva estratégica do movimento socialista e a hegemonia sem precedentes do capitalismo. Hegemonia esta que, não por acaso, está na base da crise sistêmica de acumulação de capital que afeta toda a humanidade e ainda não tem perspectivas de superação.

Parte das transformações pelas quais passaram as diferentes correntes de esquerda nas últimas décadas, inclusive no Brasil, decorre dos impactos objetivos e subjetivos da ofensiva neoliberal. Algumas substituíram a luta pela superação do capitalismo pela tentativa de torná-lo compatível com a ampliação da democracia, da soberania e do bem-estar. Outras colocaram como seu horizonte estratégico o desenvolvimentismo com vistas à superação do neoliberalismo. Consequentemente, perderam força aquelas que seguem lutando pela superação do capitalismo e pela construção do socialismo.

No caso das esquerdas latino-americanas, tais transformações permitiram (ou não impediram) que obtivessem sucessivas vitórias eleitorais e garantissem mais democracia, soberania e bem-estar para seus povos.

No entanto, desde a irrupção da crise capitalista em 2007-2008, uma das ações do imperialismo estadunidense para enfrentar o recrudescimento das disputas intercapitalistas e o declínio relativo de sua hegemonia no mundo é a tentativa de retomar seu domínio na América Latina e Caribe. Para isso, conta com o apoio das burguesias e oligarquias locais, que passaram a radicalizar sua oposição aos governos progressistas e de esquerda.

Nesse sentido, a crise política e econômica que vive o Brasil está vinculada ao deslocamento de poderosas forças internacionais, que se manifesta com intensidade também na Venezuela e na Argentina.

Crise que revela um impasse: ou bem regressamos ao desenvolvimento conservador de viés neoliberal, com dependência externa, restrições às liberdades democráticas e aprofundamento da desigualdade social; ou bem avançamos em direção a um desenvolvimento de novo tipo, democrático-popular e articulado ao socialismo.

Tal impasse decorre principalmente das transformações que realizamos nos últimos anos e das reações que as diferentes classes sociais têm dado a esse fenômeno.

Enquanto a grande burguesia não suporta mais distribuição de renda, mais democracia e mais igualdade, os trabalhadores querem mais e melhores mudanças em maior velocidade.

Enquanto o grande capital não suporta mais um sistema político que permitiu (ou não impediu) avanços e direitos à maioria do povo, os trabalhadores não aceitam mais um sistema político que impõe barreiras ao combate à corrupção e ao aprofundamento das mudanças.

Interesses cada vez mais polarizados são interesses cada vez menos conciliáveis. Nesse sentido, o impasse da sociedade brasileira também decorre do que deixou de ser feito, ou seja, do fato de até agora não terem sido criadas as condições para um desenlace favorável aos trabalhadores.

Chegamos até aqui com a estratégia “melhorista”: melhorar a vida do andar de baixo sem mexer na riqueza e no poder do andar de cima; melhorar a vida do povo por meio de políticas públicas sem realizar reformas estruturais.

Uma estratégia que pressupunha conciliação de classes, concessões aos inimigos e a manutenção dos principais instrumentos de poder nas mãos de quem sempre os deteve.

Talvez pudéssemos ter chegado até aqui com outra estratégia, talvez não. É verdade que, quando nossos inimigos estão recuados, temem a nossa força e estão dispostos a fazer acordos, estes podem até trazer alguns benefícios momentâneos.

Mas, quando os inimigos estão em plena ofensiva, buscando efetivamente nos liquidar, os acordos e recuos em geral têm como resultado fortalecê-los ainda mais e facilitar esse objetivo, ao tempo que confundem e desmoralizam nosso lado.

Por isso, não se sustenta o raciocínio de que é possível repetir em 2015 a estratégia aplicada em 2003-2005, de que basta melhorar nossa capacidade de aplicá-la. Mudaram completamente as condições da luta de classes, a atitude do grande capital, dos setores médios e de parcelas crescentes da classe trabalhadora frente ao PT e aos governos que encabeçamos.

Se é verdade que a estratégia “melhorista” tinha seus ônus e seus bônus, agora os bônus estão desaparecendo e os ônus agigantaram-se. Estamos naquela situação em que uma política recuada é mais arriscada do que uma política ousada; em que a manutenção de uma estratégia que a realidade vem superando mais agrava do que melhora a situação; em que a necessidade da mudança de estratégia se torna mais evidente no momento em que o acúmulo de contradições torna mais difícil fazê-lo.

Portanto, trata-se de superar a estratégia “melhorista” adotando uma outra que vise superar o desenvolvimentismo conservador, não apenas o neoliberalismo; realizar reformas estruturais, não apenas políticas públicas; realizar alianças prioritárias com setores progressistas e de esquerda, não com frações da burguesia e do grande capital; articular mobilização social, construção partidária e luta cultural, não apenas as iniciativas nos espaços institucionais e as lutas eleitorais.

Para tanto, devemos adotar urgentemente as seguintes ações:

  • ocupar as ruas, participando ativamente das mobilizações convocadas pelas centrais sindicais e movimentos populares por mais direitos, mais democracia e reformas estruturais;

  • assumir papel destacado na construção da frente popular e democrática em torno de um programa que combata o ajuste recessivo, as pautas conservadoras, e defenda mudanças estruturais, ao lado das forças que no segundo turno de 2014 se uniram para eleger Dilma;

  • alterar a linha do governo: que os ricos paguem a conta do ajuste, que as forças democrático-populares ocupem o lugar que lhes cabe no ministério, que a presidenta assuma protagonismo na luta contra a direita, a mídia golpista e a especulação financeira.

Internamente, precisamos:

  • mudar o PT e redobrar os esforços na construção partidária com as seguintes medidas:

  • abrir mão do financiamento empresarial e substituí-lo pelo financiamento militante;

  • combater e punir sem tréguas dirigentes e militantes que fizeram uso de métodos, hábitos e costumes burgueses de atuação que ameaçam destruir ou deformar totalmente o partido;

  • fortalecer a capacidade de formulação política e análise da realidade;

  • construir uma política de comunicação de massas que articule impressos (jornais e revistas), rádio, televisão e redes sociais;

  • reconstruir a rede de organizações de base e fortalecer as instâncias partidárias em detrimento dos centros de comandos paralelos localizados nos gabinetes parlamentares e executivos;

  • organizar a atuação e a influência de massas do petismo entre os jovens, através de uma JPT militante e de massas, que supere seu profundo processo de dispersão e desorganização;

  • retomar e massificar o trabalho de formação, da base às direções, com ênfase nos aspectos político-ideológicos e teóricos indispensáveis à luta da classe trabalhadora pelo poder e pelo socialismo.

Rodrigo Cesar é membro do Conselho da Escola Nacional de Formação do PT

Nascemos com a vocação para mudar o país

“Queremos a política como atividade própria das massas, que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade. O PT quer atuar não apenas no momento das eleições, mas, principalmente, no dia a dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias.

(...)

É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões dos seus rumos. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto no plano econômico quanto no plano social.”

(Manifesto de fundação do PT, fevereiro de 1980)

A partir das lutas sociais em nosso país, nascemos como um partido de massas e com vocação para assumir o poder para mudar a sociedade, à luz de princípios de um socialismo democrático e em construção. Nos últimos doze anos realizamos uma revolução democrática que colocou milhões de brasileiros e brasileiras que estavam às margens da sociedade no centro do cenário nacional: politicamente, economicamente e socialmente. Nem é preciso mencionar os exemplos dessa revolução democrática. Também desnecessário mencionar o imenso êxito dessa experiência no campo internacional. É claro que muito ainda há por fazer. Mas o que é central desse último período é a constatação de que mudamos o país, mudamos a sociedade, trouxemos à cena nacional muitos setores sociais antes marginalizados política, econômica e socialmente.

Dessa constatação, até mesmo como uma reação à revolução democrática, empreendida pelo PT e por esse bloco social, surgem duas novas e complexas contradições. A primeira é a ação de nossos adversários: estamos nesse momento sob um profundo ataque daqueles que não se conformam com esses “novos atores sociais” que “entraram em cena”, parafraseando o intelectual  Eder Sader. A tentativa de criminalização do partido e de nossas lideranças, o ataque diuturno por meio da grande mídia, a tentativa de nos igualar a eles nos sucessivos e históricos casos de corrupção perpetrados por uma elite através do saque ao Estado, a tentativa de interdição de nosso governo e de nossa presidenta, a campanha do ódio contra nosso partido e contra os milhares de militantes e simpatizantes por todo o país. É como se dissessem: “Se deixarmos esse pessoal continuar governando, cada vez mais distante estaremos do poder e do governo. É preciso impedir o governo Dilma de governar e é preciso destruir o instrumento que lhe dá essa força e condição, o PT”.

A outra contradição que surge são os tais novos atores sociais que entraram em cena: famílias que através do acesso ao Bolsa Família saíram da miséria e podem hoje almejar e sonhar mais, jovens que tiveram acesso às universidades através do ProUni e do Fies, ou acesso ao ensino médio por intermédio do Pronatec, famílias que passaram a viajar e frequentar os aviões e aeroportos “deles” e os shoppings “deles” (lembrem-se dos “rolezinhos”); trabalhadoras domésticas que estão saindo do regime de semiescravidão em que viviam; os novos empreendedores e batalhadores sociais; os militantes das causas libertárias e dos direitos humanos, como as pessoas LGBT, por exemplo. Ao mesmo tempo, os avanços das novas formas de socialização, diálogo e comunicação através da internet e redes sociais também mudaram a cara, os costumes, as experiências e a vivência de organização social.

Um partido de massas

Na minha opinião, é necessário aprofundar o caráter de massas de nosso partido, tal como está em seu Manifesto de fundação, mas agora à luz desse novo cenário. Além da necessidade do contínuo aprofundamento das relações com os movimentos sociais, que fortemente defendo – isso não basta –, é preciso, por exemplo, acompanhar, buscar inserir e organizar esses chamados novos atores sociais surgidos da revolução democrática empreendida. Abrir cada vez mais o partido, buscando novas formas organizativas que continuam a surgir inclusive após as eleições de 2014, como núcleos de discussão, debates, atividades culturais. Hoje muitos grupos sociais com inspiração de esquerda, ou libertária, intelectuais, entre vários outros, se organizam de maneira mais horizontal através de redes.

Não nos apercebemos dessas novas maneiras de organização social do povo e da sociedade, e assim, até o momento, não preparamos ou não mudamos nossa organização partidária de maneira a dar espaço, voz e protagonismo partidário a esse contingente de pessoas. As juventudes têm inúmeras maneiras de se encontrar, de compartilhar ideias, de agir na sociedade. Ainda não fomos capazes de nos sintonizar com essa moçada e trazê-la para “protagonizar” no seio de nosso partido. Precisamos ter mais ousadia. Um bom começo é o V Congresso do PT ter aberto a possibilidade das Etapas Livres, mas muito insuficiente para a complexidade do desafio.

Sobre o tema da participação e organização internas, é preciso mencionar ainda que devemos manter e aprimorar o Processo das Eleições Diretas no PT. Algumas pessoas e tendências apontam deformações no PED: cumpre-nos combatê-las com vigor, mas nunca diminuir o colégio eleitoral interno partidário. Aliás, quanto menor o colégio eleitoral em qualquer processo eleitoral, maior o risco de distorções, por óbvio. Também deveríamos aprofundar o debate entre nós sobre a ampliação das eleições diretas para as Secretarias Setoriais, como a sindical, da juventude, de mulheres, entre outras.

Um partido que disputa valores na sociedade

Outro desafio importante é a disputa de valores. Não consigo me conformar com a campanha do ódio contra o PT sem que tomemos nenhuma providência. Esse tema já apareceu fortemente na campanha eleitoral de 2014, e infelizmente não soubemos aproveitar o horário eleitoral para desconstruir esse estratagema dos adversários. Somos um partido de esquerda, e, como tal, um de nossos valores mais importantes é a solidariedade. A ideologia neoliberal leva ao limite a noção do individualismo, do sucesso devido ao esforço próprio, e contamina os corações e mentes de nossa sociedade. Disputar na sociedade esses valores, com campanhas públicas, nas redes sociais, em defesa da democracia, contra o ódio e pela solidariedade, é uma tarefa que não é menor, e erramos ao não nos apercebermos disso.

Um partido que formula propostas e utopias

Sabemos que o partido não se confunde com o governo, mas, por outro lado, é impensável e até relativamente contraditório que o PT não se ocupe de formular propostas e utopias que incidam sobre sua gestão. Para nós, da esquerda, não há governo democrático-popular sem um partido de massas forte e atuante do ponto de vista da formulação. Até nossos adversários se deram conta disso.

Se é verdade que a crise econômica internacional se aprofundou e hoje não são mais suficientes as medidas contracíclicas no campo da economia, ainda estamos, partido e governo, a dever uma formulação mais apurada do futuro de nosso país no atual cenário mundial, sempre sob a premissa da democracia, do desenvolvimento econômico nacional, da inclusão social, da soberania e da integração regional.

Sabemos que nosso povo e a sociedade brasileira compreendem profundamente os desafios e os constrangimentos econômicos que esse mundo globalizado impõe a um país como o nosso, mas nos cobram com justeza qual é nossa visão de futuro para o país e nosso povo nesse cenário complexo. Essa não é uma tarefa simples, evidentemente. Para dar conta dela, penso que é necessário que o PT, em conjunto com a Fundação Perseu Abramo, busque rearticular o grupo de economistas do PT e outros economistas desenvolvimentistas para discussões sistemáticas dos cenários e propostas possíveis, que convoque os ministros petistas para esses debates, possuidores que são de muita informação devido ao fato de estarem na gestão nesse momento, além de nossas bancadas de parlamentares federais. Uma espécie de think tank, como são chamados os grupos que produzem e difundem conhecimento sobre assuntos estratégicos, com vistas a influenciar transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas.

Também é verdade que o PT deve defender o governo e nosso legado dos últimos doze anos, além da defesa das bandeiras com as quais a presidenta Dilma foi eleita: salto de qualidade na educação, serviços públicos de qualidade, desenvolvimento industrial com soberania, integração econômica regional e mundial, criminalização da homofobia, não à redução da maioridade penal, reforma política, regulação da mídia de acordo com a Constituição Federal, entre outras.

Essas duas tarefas serão exitosas se o PT, em conjunto com o governo federal, liderar a criação das condições políticas necessárias para viabilizar esse programa para os quatro anos e o programa mais estratégico para o país no cenário internacional. E sabemos muito bem como fazer isso: recuperar e intensificar o diálogo com os diversos atores sociais comprometidos com o crescimento e a distribuição de renda, com a inclusão social e o aprofundamento da democracia.

Um partido que luta contra a corrupção

O PT liderou entre 2003 e 2014 as maiores e mais importantes iniciativas no combate à corrupção na história brasileira. Mais recentemente a presidenta Dilma sintetizou e apresentou ao parlamento cinco novas propostas que buscam cercar a impunidade dos corruptos no Brasil. A corrupção sistêmica é um fenômeno antigo, que se configura a partir do estabelecimento da propriedade privada e chega a seu paroxismo com o ideário neoliberal de privatização do Estado. É a apropriação privada de recursos públicos, da res publica, através de diversos mecanismos, legais e ilegais. Nesse sentido, a meu ver, além das medidas jurídicas de combate à impunidade e de transparência implementadas pelos governos do PT, é essencial aprofundar a participação e o controle social da gestão do Estado, assim como, é claro, a reforma política com o fim do financiamento empresarial para todos os partidos.

Também é necessário enfrentar de maneira inequívoca a campanha de difamação ao PT e aos petistas por parte da chamada mídia golpista e da oposição derrotada nas últimas eleições. Não é à toa que a expressão “mar de lama”, cunhada por Carlos Lacerda contra o governo de Getúlio Vargas, surge de novo na boca do candidato derrotado à Presidência da República Aécio Neves. Mas esse enfrentamento não pode ser feito com medidas aparentemente “simpáticas” à sanha daqueles que nos acusam, entregando “carne aos leões”, ou ainda criando tribunais especiais de investigação internos como propõem alguns companheiros. Até porque o delito de que somos acusados é o de “roubar para manter o PT no poder”.

Essa luta é contra a criminalização do PT, é uma luta política, e como tal deve ser enfrentada. Não se trata de um “desvio” individual do tesoureiro de plantão, também porque isso não ocorreu. Devemos armar a militância com informações e dados, por exemplo, sobre a Operação Lava Jato e a Petrobras no momento atual, de maneira organizada e partidária. Devemos ter em mente que esses ataques são o que restou à oposição que perdeu quatro eleições seguidas, na ausência de propostas e de apoio popular. Se não dermos uma resposta partidária à altura, coletiva, não relegando esse combate às defesas individuais dos companheiros investigados, esse será o método predileto dos adversários do PT. Usaram-no em 2005, e o retomaram agora.

Além disso, nessa cruzada para proscrever o PT, estão sendo rasgados os mais elementares direitos individuais em sociedades democráticas, como a presunção de inocência, o direito à ampla defesa e ao contraditório. Esse preço será alto demais para a jovem democracia brasileira. É necessário e urgente que o PT crie um núcleo de juristas democratas, de composição plural, capaz de liderar uma reflexão sobre os caminhos da Justiça brasileira sobre a criminalização da política, dos partidos, dos movimentos sociais, e a questão da democracia.

Termino citando Guimarães Rosa:

“Todo caminho da gente é resvaloso.

Mas, também, cair não prejudica demais –

a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!”

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.”

Monica Valente é secretária de Relações Internacionais do PT.

Esquerda Brasileira: renovar-se ou perecer

Quatro acontecimentos históricos marcaram a trajetória da esquerda brasileira, levando-a ao estabelecimento de novos paradigmas: a fundação do PCB (1922), o golpe de 1964, a redemocratização (1988) e a vitória do PT nas eleições presidenciais (2002). Após cada um desses episódios, a esquerda teve de readequar sua base programática, sua tática e estratégia. Os dois últimos acontecimentos estão ligados entre si e seus desdobramentos ainda estão em curso.

Durante o regime ditatorial, destroçada a resistência armada, a esquerda se unifica em torno da bandeira das liberdades democráticas. Alcançado o Estado Democrático de Direito através de uma transição conservadora, colocou-se para as forças progressistas e de esquerda apontar novos caminhos para o país. Esse campo vai passar por transformações importantes. O crescimento do PT, a fundação do PDT e a legalização dos PCs esvaziaram os setores mais à esquerda do MDB, agora PMDB. Este se transforma, inicialmente, em um partido de centro e, posteriormente, de centro-direita, cada vez mais hegemonizado por setores conservadores e fisiológicos. O PDT foi perdendo sua vertente de esquerda, principalmente, após a morte de Leonel Brizola. O PSB, após a redemocratização, não conseguiu se constituir em uma alternativa de esquerda e o PCdoB nunca foi um partido de massas, com perspectivas visíveis de poder, apesar de sua influência em alguns segmentos sociais.

O PT chega ao governo em um país com uma imensa dívida social, uma brutal desigualdade de renda e riquezas, além de segregações de todos os tipos. A fragilidade do movimento popular e sindical e a estrutura político-partidária do Brasil levaram o governo a uma saída que, de um lado, promovesse a inclusão de milhões de brasileiros e, de outro, estabelecesse uma certa conciliação com os poderosos segmentos das classes dominantes dentro das regras do processo político-eleitoral vigente. Esse “pacto” implícito envolveu, inclusive, alianças com setores da oligarquia decadente, como a família Sarney. O preço pago por isso foi que os governos Lula e Dilma foram governos de inclusão, mas não governos de reformas.

O problema é que, quando um governo de esquerda não tem um projeto estratégico, social e político, ele se submete ao pragmatismo da política liberal burguesa, ficando cada vez mais parecido com os partidos tradicionais. Esse tipo de política atingiu seu ápice e se esgotou com o governo Lula. Por isso o governo Dilma não consegue estabelecer avanços em relação a seu antecessor nem se firmar como um projeto democrático-popular. A inexistência de um projeto estratégico transforma as alianças em um somatório de interesses, e não em governo de coalizão. Um governo desse tipo só é possível com a hegemonia das forças de esquerda, vertebrada por um projeto de esquerda. A inexistência deste torna todos iguais, e a esquerda perde suas características essenciais, diluindo-se na aliança. Diante desse quadro, a esquerda brasileira, incluindo o PT, vai perdendo substância ideológica e resumindo sua atuação a mera disputa por espaços de poder sem compromisso com as mudanças de que a sociedade necessita. Foi o que ocorreu com a social-democracia europeia, situada cada vez mais à direita.

A simples inclusão despolitizada apenas constitui uma nova classe trabalhadora, conservadora, que acabará sendo nossa adversária. Essas pessoas estabeleceram novos padrões de exigências, reivindicando, agora, qualidade nos serviços públicos aos quais tiveram acesso. Como afirmou Juca Ferreira: “E se não formos capazes de ir constituindo um paradigma de solidariedade, de construção de uma sociedade de iguais, essa massa de pessoas que enriqueceram a partir de uma ação de governo vai para a direita. Ou nós somos capazes de reconstruir um projeto de hegemonia política, ou nós padeceremos pelas forças que despertamos na sociedade”Unknown Object.

Uma nova esquerda no Brasil, neste momento, terá de ser uma e,squerda de reformas, pois as reformas fundamentais para a democratização da sociedade ainda não foram feitas. Reforma agrária, bancária, política, tributária, do Judiciário, democratização da mídia, taxação das grandes fortunas, uma nova concepção para as forças de segurança, enfim, a reforma do Estado brasileiro tem de fazer parte de um programa de esquerda. A mudança do sistema político tem de incluir financiamento público de campanha, voto em lista, Congresso unicameral, redefinição da representação dos estados, plebiscitos, referendos etc. Entretanto, esse projeto democrático e popular tem, estrategicamente, de dialogar com a construção de uma sociedade socialista através de um processo de radicalização da democracia que avance para formas de democracia participativa, inclusive nas definições orçamentárias, através do orçamento participativo em todos os níveis.

Como disse Vladimir Safatle, existe um déficit de participação popular nos processos de gestão do Estado. Nossos governos, infelizmente, pouco avançaram nessa direção. Há boas experiências em nível municipal e estadual, mas pouco em nível federal. Esse projeto tem de retomar o tema da igualdade mais que o da inclusão, pois não basta incluir em uma sociedade desigual. Não é suficiente distribuir renda. Chegou a hora de distribuir riqueza. Outro tema estruturante de um projeto de esquerda é o dos direitos humanos. Este deve ser a argamassa a unificar todos os programas e políticas desse projeto.

Do ponto de vista ideológico, existe hoje no país um discurso de direita que, embora ainda fragmentado, poderá se unificar em uma visão homogênea que inclui costumes, política, economia, religião, etc., dando consistência a uma alternativa de direita para o país. De outro lado, não existe um discurso de esquerda, um projeto de esquerda. O resultado disso será a vitória ideológica de uma hegemonia conservadora e a consequente derrota política das forças progressistas e de esquerda. Logo, renovar-se, para a esquerda brasileira, é uma questão de sobrevivência. Entretanto, essa renovação não pode se limitar ao discurso, tendo de incluir uma nova ligação orgânica com os movimentos populares e uma disputa ideológica tanto com o “esquerdismo” como com os setores, inclusive do PT, que capitularam, ideologicamente, disputando pequenas migalhas do capital.

Este é um momento privilegiado para esse debate. É o momento em que poderemos apontar um novo rumo para o país, tendo por base a diminuição das desigualdades, a defesa de direitos humanos no sentido mais amplo e a radicalização da democracia, articulando representação com formas de participação direta.

Entretanto, é necessário reconhecer e enfrentar a crise política vivida hoje no país. Para além da crise econômica, seu epicentro localiza-se na dupla crise de direção com relação ao partido e ao governo. As novas formas de mobilização, articuladas pelas mídias sociais, expuseram a paralisia burocrática de nossos partidos, incluindo o PT. Em nosso caso, a entrega da direção para quadros internos oriundos das correntes, mais preocupadas com elas próprias do que com o partido, impossibilitou que se compreendesse a extensão e a complexidade deste momento. Nesta hora, nossa direção tem de ser integrada por quadros com representatividade e reconhecimento público, pois estes chegaram a essa condição por sua capacidade de dialogar com as massas.

Quanto ao governo, depois de não conseguir estabelecer um protagonismo propositivo no enfrentamento da crise, nossa presidenta entregou a direção da economia a um neoliberal assumido e a coordenação política ao PMDB.

Não acreditamos em superação da crise sem que a presidenta assuma a liderança do governo, com propostas ousadas em direção às reformas estruturais necessárias ao país. Portanto, o enfrentamento da crise e a sobrevivência da esquerda enquanto alternativa real de poder passam pela superação da crise de direção do PT, inclusive com sua adequação às novas formas de luta, e pela superação da crise no governo com a presidenta Dilma reassumindo sua liderança. O V Congresso do partido deverá, inclusive, avaliar a possibilidade de constituir, por consenso, uma nova direção com capacidade política e credibilidade para conduzir o PT neste momento.

Eliezer Pacheco é secretário de Educação de Canoas (RS) e ex-secretário Nacional de Educação Profissional e Tecnológica do MEC.

[fbcomments url="httpsteoriaedebate.org.br/debate/o-pt-precisa-mudar-em-que-e-por-que-4/" count="off" title=""]