EM DEBATE

Sessão extraordinária na Câmara, sob a presidência do deputado Eduardo Cunha

Créditos: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Uma ofensiva conservadora tem se manifestado na sociedade e no parlamento do país. O resultado de décadas de luta das mulheres está sob ameaça, conquistas podem ser subtraídas pela nociva mistura entre poder e religião.

A Câmara mais reacionária do mundo

Terra em transe

A Câmara mais reacionária do mundo

A Câmara dos Deputados em 2015 consegue bater seus próprios recordes. Na contramão dos avanços da sociedade brasileira, faz prevalecer o atraso, o compadrio, o populismo penal. Por trás de um pretenso “choque de gestão” no comando da Casa, o retrocesso se expressa pela busca equivocada de uma produtividade fabril em favor das pautas mais conservadoras e, muito grave, na repressão de todas as reivindicações progressistas.

Grande parcela das ações dessa agenda do atraso objetivam arrasar, destruir e arruinar as recentes conquistas da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a redução da maioridade penal para 16 anos (PEC 171/1993) é ilustrativa da extensão e profundidade dos prejuízos que experimentamos.

Em vez de instaurar um debate sério sobre a questão da juventude para protegê-la da violência e garantir seus direitos, a Câmara faz avançar a descabida proposta da redução da idade penal. Precipita, assim, o encarceramento da juventude em um sistema prisional dispendioso, insalubre, superlotado e controlado pelo crime organizado. O resultado será o agravamento do problema.

No rastro de pólvora da redução da maioridade, começam a caminhar propostas de diminuição do limite de idade para o trabalho dos adolescentes e de alterações no Estatuto do Desarmamento no sentido de facilitar o porte de armas. O desastre que se avizinha é fácil de antecipar.

Mas a redução da maioridade penal é apenas a face mais visível dessa agenda de retrocessos. A regulamentação da terceirização do trabalho (PL 4330/2004), inclusive das atividades-fim, também ameaça os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores. Essa proposição andou na Câmara a passos largos por ação das forças plutocráticas que, no atual arranjo da Casa, agem para cercear o acesso aos direitos dos trabalhadores.

Na mesma toada vai a PEC 215/2000, que transfere da União para o Legislativo a aprovação de demarcações de terras indígenas, dos territórios quilombolas e das áreas de preservação ambiental.

O texto volta à cena depois de quinze anos tramitando, enquanto o Estatuto da Família (PL 6583/2013), uma proposição obsoleta e em óbvio conflito com a realidade social, recebe guarida na Casa dois anos depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter reconhecido a legitimidade das uniões homoafetivas. A própria diversidade dos arranjos familiares no Brasil (40% dos lares chefiados por mulheres…) é desrespeitada nessa enorme confusão estabelecida entre o sagrado e o profano.

Todo o estardalhaço sobre a reforma política não produziu nenhuma mudança substantiva. Ao contrário, por meio de manobras, conseguiu-se aprovar na Casa o financiamento empresarial de campanhas, fator de encarecimento dos custos das campanhas e elemento  radioativo nos processos de corrupção do Estado brasileiro.

Nenhuma possibilidade de aumento da participação popular nas decisões políticas ganhou repercussão e a diversidade de representação ficou ainda mais prejudicada com a obstrução da expressão das minorias ideológicas. Em suma, a minirreforma eleitoral é uma clara aplicação da Lei de Murphy: o que é ruim sempre pode piorar.

A atual Câmara assume hoje sem críticas todas as reivindicações corporativas, recusando quaisquer compromissos com o equilíbrio do Estado. Parece que a responsabilidade fiscal, de que a oposição tanto se jacta, só vale quando o governo não é do PT. Visão distorcida de quem só consegue encarar a República a partir de um viés militantemente partidário.

A composição extremamente fragmentada e personalista do corpo de deputados favorece pactuações fisiológicas, patrocinadas por grupos econômicos e religiosos. Ou seja, a Câmara segue como uma casa de velhos senhores, eleitos ou com base em sua própria riqueza, ou com o compromisso de favorecer a riqueza alheia. Distancia-se, assim, da sua função maior, a de ser a Casa do Povo para além das fronteiras partidárias.

Eduardo Cunha é a expressão máxima deste momento. Sua força nasce da própria deformação do sistema eleitoral, que lhe permite exercer sua influência. Sua capacidade de articulação política alimenta-se da fragmentação da Câmara em bancadas informais, organizadas segundo interesses econômicos, corporativos ou religiosos.

De todo modo, o resultado é sempre o mesmo: pressionar a base governista e, de todas as formas, desgastar o PT e o governo da presidenta Dilma. É triste dizer que a Câmara, pela sua direção, aproveita-se do contexto específico em que o governo federal se encontra: fragilizado, pressionado pela crise internacional e colhendo o desgaste de doze anos de mandatos consecutivos. Encurralada por contas fiscais no limite, com dificuldade de renovar expectativas e políticas públicas e constrangida pelo fisiologismo de algumas alianças, a Presidência da República tem limitadas possibilidades de compor uma base compromissada com a pauta que a elegeu.

Do lado de cá, vivemos um recuo dos setores progressistas. Isso deriva da própria exaustão provocada por tantos terceiros, quartos e quintos turnos eleitorais a serem novamente vencidos. Deriva também da incapacidade de colocarmos em discussão a nossa própria pauta: por que, ao invés de votarmos a redução da maioridade penal, não conseguimos votar a lei que elimina o auto de resistência?

Reconhecer tal conjuntura não é ratificar o que suspeitos cronistas vêm sentenciando. Não, o PT não perdeu as ruas, não matou sua própria base. Mas, sem direção, e com participação confusa num governo que não consegue hegemonizar, não tem conseguido manter a contento a relação com essa base, oxigenando-se.

Inverter essa situação depende da própria retomada da capacidade de dialogar, absorver as críticas e avançar em conjunto com as forças sociais de vanguarda.

É tempo de atribuir à aliança com os setores populares e portadores de futuro – a nova classe trabalhadora, a juventude, as mulheres, os negros, os povos indígenas e quilombolas – o protagonismo para enfrentar a artilharia adversária.

Isso significa admitir que a conciliação com a direita nos levou para onde estamos e sustentá-la será insistir em ter mais do mesmo – o que, sejamos francos, já ninguém aguenta mais.

Nosso caminho passa por recuperar pautas e bandeiras que ficaram perdidas nessa avalanche de alianças precárias. Fazer uma verdadeira reforma tributária, que desonere a produção e o trabalho e grave os rentistas. Fazer uma verdadeira reforma federativa, aumentando a capacidade dos governos locais, cujos rumos a população poderá democraticamente definir. Democratizar a mídia para que este possa ser um país em que todos tenham voz. Tornar realidade o Plano Nacional de Educação. Garantir a nossa maravilhosa diversidade cultural através de políticas públicas que priorizem a livre expressão e o respeito aos direitos humanos.

Será em torno de temas como esses que poderemos nos fortalecer na disputa de uma nova agenda, resgatando a identidade democrático-popular do Partido dos Trabalhadores pela ação cotidiana comprometida com os valores fundadores do PT.

Nosso partido é peça fundamental para a construção democrática do Brasil mas o momento requer trabalho, ousadia e imaginação. Nas palavras do poeta comunista Khlebnikov, “é do futuro que sopram os ventos do verbo”. Sem discurso e sem esperança, não conseguiremos estar à altura da grandeza de nossa tarefa.

Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG)

Terra em transe

O Brasil vive um momento muito delicado e conturbado do ponto de vista político. O que estamos presenciando não é o transcorrer normal do rio da democracia, com seus pontos e contrapontos nas diversas correntes do debate público. Não é a discussão razoável, entre esquerda e direita, em busca de saídas produtivas e engrandecedoras para nosso país. O que o Brasil vive hoje é um ataque à democracia e às conquistas sociais, que se esconde por trás da cortina de fumaça da ética seletiva e do falso moralismo.

É uma onda conservadora que extrapola o campo republicano da crítica e da diferença ideológica; é um vômito reacionário que, de modo insensato, tenta desconstruir direitos e interditar nosso processo democrático. Não por acaso, defensores da ditadura e da tortura são hoje aplaudidos nas manifestações que pedem o impeachment da presidenta Dilma. Cartilhas misóginas ensinam como estuprar estudantes em universidades. Jovens homossexuais são brutalmente assassinados. Adolescentes negros são amarrados em postes. A juventude pobre da periferia segue sendo exterminada. Cartazes pedem a volta do regime militar...

Esse momento histórico vai exigir muita maturidade de nossas instituições e de nossos principais líderes políticos, à esquerda e à direita. Do contrário, insistiremos num debate de surdos que pode nos levar a retrocessos graves em nossas conquistas democráticas. Poucas vezes se viu um ataque tão frontal a direitos sociais e direitos fundamentais previstos em nossa Constituição. Pautas medievais estão voltando à tona no Congresso Nacional, num processo de intolerância que quer anular o diferente, que não sabe conviver com nenhum tipo de alteridade.

Que país poderá nascer disso tudo? Essa é a pergunta que os verdadeiros democratas, independentemente de posição ideológica, têm de se fazer hoje. Se toda a história “oficial” do Brasil tem 500 anos, nossa democracia mal acumula um punhado de décadas. Ainda temos um sistema político muito “jovem”, um conjunto de instituições democráticas que ainda estão alcançando sua maturação, sua consolidação. Portanto, é de fundamental importância denunciarmos o projeto golpista que está em andamento, patrocinado pelas forças da direita reacionária que perderam as eleições em 2014 e se acham maiores do que a vontade popular.

A presidenta Dilma foi eleita legítima e democraticamente, em que pesem diferenças que tenhamos com seu governo, sobretudo na condução da área econômica. Ela merece todo o nosso respeito institucional. Afinal, mais da metade do povo brasileiro deu seu voto a ela. Mais da metade do nosso povo procurou, entre as opções apresentadas durante a campanha eleitoral, aquela que representava o projeto político que quer continuar gerando inclusão social e distribuição de riquezas, que quer seguir com a política de valorização do salário mínimo e com as políticas de transferência de renda.

Importante destacar que nós entendemos que o modelo conservador adotado pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não sabe dialogar com a base social das forças de esquerda e vai impondo ao país um ajuste que combina corte dos gastos sociais com aumento de impostos para a classe média e baixa. É um modelo que não considera a urgência do debate sobre a contribuição do grande capital nesse processo – não trata, por exemplo, de medidas como a taxação das grandes fortunas e a revisão da dívida pública, com foco na redução progressiva e temporal das taxas de juros.

Ainda assim, repudiamos esse clima de terror midiático e instabilidade que se quer criar no país. Tudo porque as forças conservadoras, que estão alinhadas com o grande capital financeiro, com grandes petroleiras internacionais e com grandes conglomerados de mídia, mesmo perdendo mais uma vez a disputa nas urnas, tentam impor ao país um clima de assombro para gerar um “terceiro”, um “quarto” ou sei lá quantos turnos para sabotar a opção legítima da população.

Antes de 2002, as forças conservadoras e de direita, com pontuais exceções, sempre conduziram o trem da nossa história “oficial”. E foi assim que nossa história, diante da nossa pátria mãe distraída, nos versos de Chico Buarque, acabou por revelar um país que era, na verdade, um pântano de exclusão e de desigualdade. O Brasil oficial, criado sob a ação da direita conservadora, era o país de um vergonhoso apartheid social.

Entretanto, foi só a democracia brasileira começar a caminhar e a amadurecer, que um governo popular, de esquerda, foi eleito. E nossa história começou a mudar. O governo do ex-presidente Lula inverteu prioridades históricas, tirou das forças de direita o poder decisório sobre nosso futuro e chamou o povo para construir um novo projeto de país, com mais justiça social e solidariedade.

Lula ergueu pontes humanitárias e convocou novos interlocutores, dentro e fora do país, para construir um novo sentido de nação, mais generosa e igualitária. Com isso, conseguiu superar a chaga da fome e da miséria absoluta, conseguiu gerar milhões de empregos e tirar milhões de brasileiros da pobreza. O povo passou a ter um novo protagonismo, passou a ser dono de sua própria história. Essa autonomia, claro, incomodou a casa-grande, para usar o conceito de Gilberto Freyre. Nossa elite via e ainda vê nosso povo como uma atávica “senzala”, sem direito a oportunidades e autonomia. A derrota em 2002 ainda sangra no peito dos que queriam um país que se rebaixasse diante dos interesses estrangeiros, sobretudo os do grande capital financeiro internacional. De lá para cá, derrota após derrota, sem conseguir formular um projeto para o país, a direita aderiu à cartilha do ódio e da inconsequência do “quanto pior, melhor”. Sem admitir a derrota nos votos, se volta não apenas contra o governo, mas contra a própria democracia, que, afinal, permitiu que esses governos populares chegassem ao poder.

A sanha antipetista que vemos hoje nas ruas, na imprensa e nas mídias sociais é, na verdade, uma tentativa de intimidar e confundir a opinião pública. É, como eu disse anteriormente, uma onda de ataques da direita contra as principais marcas dos governos petistas: a defesa dos movimentos populares, o crescimento econômico com distribuição de riquezas, o fortalecimento do Estado na prestação de serviços públicos à população e, sobretudo, o modelo de inclusão social e de criação de oportunidades que sempre incomodou a casa-grande.

Luizianne Lins é deputada federal (PT-CE), foi prefeita de Fortaleza (2005-2012)

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