EM DEBATE

Na Presidência da República, dirigindo um governo democrático e popular ou apenas um governo petista nos marcos da democracia burguesa, o PT estará caminhando com o país na direção do socialismo. A questão agrária é uma pedra de toque nesta estratégia. Aqui, as opiniões de José Graziano da Silva e Claus Germer iniciam a discussão.

O Roteiro

Aqui, as questões encaminhadas aos debatedores convidados

1."O PT está desenvolvendo um Programa de Ação de Governo de caráter democrático e popular. Na sua opinião, quais são as premissas básicas que devem orientar esse programa dentro da conjuntura da correlação de forças atuais?"

2."Em relação à política agrária, essencialmente à reforma agrária, qual seria o interesse da burguesia em apoiar ou impedir sua realização? Há ainda algum espaço em comum em que poderiam convergir os aspectos democráticos contidos na reforma agrária com o processo de acumulação capitalista? O que mudou em relação às teses defendidas pela esquerda até os anos 60?"

3. A política agrícola tem sido um tema pouco abordado pela esquerda. O PT se vê obrigado a aprofundar as questões que dizem respeito, assim como a própria CUT elaborou um projeto de lei apresentado recentemente no Congresso Nacional. Quais seriam os principais pontos a serem abordados pelo Programa de Ação de Governo dentro de uma alternativa democrático-popular?

4. Qual é o papel da pequena propriedade na estrutura da produção no campo? Qual deveria ser o enfoque que o PT deve dar a essa questão? Seria determinante ou trata-se de uma questão superada pelo modelo agrário industrial em que vem sendo desenvolvido?

5. Qual o papel da tecnologia num programa petista? Seria conflitante com a prioridade dada à pequena agricultura?

 

Terra para quem nela 'não' trabalha

Só os trabalhadores farão reforma agrária

Terra para quem nela 'não' trabalha

Só os trabalhadores farão reforma agrária

 

Ao tratar das premissas necessárias a um programa democrático-popular é preciso, em primeiro lugar, esclarecer que o PT não está, a rigor, neste momento formulando um programa para um governo democrático-popular, mas para um governo petista dentro do regime democrático-burguês vigente. Isto significa que a burguesia mantém o controle do poder de Estado, qualquer que seja a índole do candidato que venha a ser eleito, mesmo petista. Ademais, o programa do PT está sendo formulado sob o pressuposto de que a eventual eleição do seu candidato permitirá acelerar o processo de inversão da relação de forças de classes, abrindo portanto a perspectiva da possibilidade de acesso ao poder de Estado real e da implantação de um regime democrático-popular que possa realmente executar um programa de idêntico caráter.

Seria importante que, na campanha, se colocasse com clareza esta diferença entre o programa a ser apresentado no processo eleitoral e o programa democrático-popular proposto na Resolução Política do V Encontro Nacional. Essa explicitação permitirá esclarecer ao povo a necessidade de intensificar o processo de luta e de organização dos trabalhadores, a fim de que sejam criadas as condições políticas necessárias à conquista do poder de Estado e à realização das mudanças estruturais contidas no programa democrático-popular. Desse modo também será possível mostrar que as mudanças não poderão ser realizadas, mesmo com uma eventual vitória eleitoral, a menos que a mobilização popular provoque uma inversão na correlação de forças e subjugue o poder da burguesia e de seus aliados.

A interpretação rigorosa da Resolução Política do V Encontro Nacional requereria (e seria politicamente mais conveniente) que o PT fosse à disputa eleitoral com o próprio programa democrático-popular, utilizando o espaço político proporcionado pela campanha para divulgá-lo a todo o povo, esclarecendo o seu significado e a sua lógica, empenhando-se na formação de organismos de massas que discutam e popularizem as propostas do programa. Assim, a campanha eleitoral poderia converter-se num impetuoso processo de educação política e fortalecimento organizativo das massas e ao mesmo tempo de massificação da proposta de governo democrático-popular do PT.

O programa democrático-popular, tal como definido na Resolução Política, teria que obedecer às seguintes premissas básicas:

O programa democrático-popular propõe profundas mudanças estruturais nos planos econômico e social. Por sua própria natureza, tais mudanças abalam vigorosamente os interesses da grande burguesia e de seus aliados. Por esse motivo, sua implantação requer não apenas a conquista do governo mas do poder de Estado, o que significa que o Estado democrático-burguês deve ser substituído pelo Estado democrático-popular. Em outras palavras, somente sob um Estado democrático-popular será possível realizar as mudanças contidas no programa democrático-popular. Seria portanto inconseqüente apresentar tal programa e fazer crer que ele possa ser implantado sob o Estado democrático-burguês dirigido por um governo petista. Seria igualmente inconseqüente apresentar um programa de mudanças limitadas para um governo petista sob o regime democrático-burguês e dar-lhe o nome de programa democrático-popular, fazendo crer que ele possa promover mudanças estruturais importantes. Portanto, o caráter do programa apresentado deve ser compatível com o caráter do governo chamado a colocá-lo em prática.

Em segundo lugar, o programa deve ser compatível com a situação conjuntural da relação de forças de classes. Mas a conjuntura, nesse caso, não pode ser entendida como a situação de cada semana ou mês, mas como momento histórico. Assim, a conjuntura atual é a conjuntura correspondente ao momento histórico da transição conservadora sob a Nova República, e o programa democrático-popular aprovado pelo V Encontro Nacional, leva em conta a relação de forças que lhe corresponde ao não propor imediatamente um programa socialista. Isto significa que se admite que o programa democrático-popular é, ao mesmo tempo, o programa máximo possível na atual conjuntura e o mínimo necessário para promover transformações estruturais significativas que abram caminho para a construção do socialismo.

Em terceiro lugar, o programa não pode ser encarado como um fator passivo, dependente univocamente da conjuntura. Ele constitui também um dos componentes ativos que influenciam a relação de forças e, conseqüentemente, a conjuntura. Desse ponto de vista, o programa que corresponde à conjuntura é aquele capaz de operar como fator de motivação, de educação política e de mobilização das massas para a luta. Graças à projeção política conquistada pelo PT, convertido em referência principal no campo das esquerdas, a campanha presidencial constitui hoje poderoso instrumento político capaz de acelerar a formação da frente democrático-popular de massas proposta pelo PT. Considerando-se o progressivo aprofundamento da crise econômico-social e o seu transbordamento para os campos político-eleitoral, sindical e ideológico, comprometendo aos poucos a capacidade dirigente da burguesia, é de crer que os efeitos mobilizadores de um programa abertamente democrático-popular poderão contribuir para um salto de qualidade na atual relação de forças.

Finalmente, o programa deve refletir adequadamente os interesses históricos das classes que pretende representar, segundo as particularidades da conjuntura e a estratégia adotada. Também nesse caso o programa é um agente dinâmico, pois os interesses de classe não são um dado empírico, incontrovertido, mas devem ser trazidos à luz através da dinâmica das lutas sociais. A consciência de classe, ou seja, a auto-identificação de uma camada social enquanto classe com identidade própria e interesses específicos, assim como a explicitação de tais interesses, são frutos do confronto de interesses que se revelam no processo das lutas sociais. Os partidos e seus programas fazem parte do processo de exteriorização da identidade de classe dos trabalhadores e dos seus interesses históricos.

Massa sem-terra

"Em relação à política agrária, especialmente à reforma agrária, qual seria o interesse da burguesia em apoiar ou impedir sua realização? Há ainda algum espaço em comum em que poderiam convergir os aspectos democráticos contidos na reforma agrária com o processo de acumulação capitalista? O que mudou em relação às teses defendidas pela esquerda até os anos 60?"

Se compararmos a situação atual com a dos anos 60, veremos que a interpretação da realidade agrária mudou. Mas a própria realidade agrária mudou também profundamente. A estrutura e as contradições de classe propriamente capitalistas amadureceram e se explicitaram. Independentemente do julgamento do mérito das teses defendidas pela esquerda nos anos 60, o certo é que não há atualmente qualquer interesse da burguesia brasileira na reforma agrária, entendida como um processo de redistribuição das terras e dos meios de produção em mãos dos latifundiários para os sem-terra. Não há qualquer dúvida consistente quanto ao caráter explicitamente capitalista da agricultura brasileira de hoje. Logo, a reforma agrária não cumpriria nenhum papel de viabilização do desenvolvimento capitalista, uma vez que o capitalismo já está estabelecido.

Dessa constatação correta tem-se tirado, entretanto, a conclusão infundada de que, dado o desinteresse atual da burguesia pela reforma agrária, ela se encontra historicamente superada. Essa conclusão, que para muitos parece lógica, só o é porém do ponto de vista da própria burguesia, mas não dos trabalhadores. Mesmo no passado, via-se a burguesia apenas como força auxiliar na luta pela reforma agrária. A força social principal era e é a grande massa dos sem-terra. Uma análise feita a partir do ponto de vista dos trabalhadores requer que se verifique se esta força social ainda é significativa e se a reforma agrária continua sendo uma reivindicação básica. E é fácil constatar que os sem-terra ainda constituem cerca da metade da população rural e fornecem uma parcela significativa - talvez a maioria - da força de trabalho na agricultura. Além disso, os sem-terra possuem hoje ativa organização de massas especificamente dedicada à luta pela reforma agrária, que consiste na sua reivindicação principal. Assim, se é verdade que a reforma agrária está superada para a burguesia, é também certo que ela representa o mais vivo interesse de imensa parcela da classe trabalhadora rural e conseqüentemente do conjunto da classe trabalhadora.

Por essa razão, a reforma agrária é hoje um capítulo do programa democrático-popular e não mais democrático-burguês. A pretensão dos agricultores sem-terra de terem terra própria, em caráter individual e privado, é geralmente interpretada como de inspiração burguesa, mas certamente não traduz o interesse da burguesia dominante. Pelo contrário, ela exprime fielmente o interesse imediato e vital dos sem-terra, embora expresso na linguagem da ideologia burguesa dominante. A pretensão pela terra própria está em consonância com a experiência concreta dos pequenos agricultores: a sua sobrevivência depende da terra e do trabalho individual e solitário da família. Mas, ao mesmo tempo, está em contradição com o processo visível de proletarização que atinge os pequenos agricultores. A força com que os sem-terra se inclinam, no Brasil, para o lado do movimento dos trabalhadores assalariados decorre, por um lado, da rejeição, pela burguesia, dessa pretensão de aparência tão simploriamente burguesa e, por outro lado, será reforçada na medida em que os trabalhadores assalariados souberem incorporar ao seu programa político, integralmente, a reivindicação de reforma agrária pela qual os sem-terra lutam.

O movimento dos trabalhadores pelo socialismo só será bem-sucedido, evidentemente, se estes conseguirem reunir forças suficientes para subjugar a burguesia e seus aliados. A especificidade da luta de classes na agricultura consiste exatamente no relevante papel da massa dos sem-terra nesse processo. Sem eles a burguesia agrária e os latifundiários não serão derrotados, e sem a derrota destes a vitória dos trabalhadores será impossível. A contradição principal entre os sem-terra e as classes dominantes rurais está assentada na questão da terra, e é a reforma agrária que resolve esta contradição em favor dos trabalhadores. Portanto, só a reforma agrária poderá mobilizar politicamente a grande massa dos sem-terra, permitir uma articulação das suas lutas com as dos trabalhadores urbanos e tornar a luta pelo socialismo uma possibilidade real.

Classe histórica

A colocação atual da reforma agrária como parte do programa democrático-popular implica o abandono da suposição de que a realização do socialismo, no Brasil, requereria o complemento da revolução democrático-burguesa, que constituiria uma "etapa" prévia à implantação do socialismo, e que validaria a proposição de uma aliança da classe trabalhadora com a burguesia. Mas, além disso, o grau de desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira, no que diz respeito especificamente à estrutura de classes, também altera, num sentido preciso, o caráter da luta pela terra. Na agricultura o trabalho assalariado generalizou-se. Ao lado de uma ampla camada de semi-assalariados (entre os quais se destacam os sem-terra), surgiu uma importante camada de assalariados puros, os operários do campo. A sua condição de classe lhes permite incorporar, progressivamente, os valores e as aspirações próprias do proletariado. Muito se tem recorrido a esse argumento para justificar o abandono da luta pela reforma agrária, devido ao suposto estreitamento da sua base social, sob a alegação de que os assalariados rurais não têm na reforma agrária um objetivo de luta. Seus interesses concretos seriam outros. Todavia, ao referir-se à pauta de reivindicações desses novos trabalhadores, o argumento detém-se exclusivamente às suas reivindicações trabalhistas imediatas, tais como salários, estabilidade e garantia de emprego etc. Limita-se portanto a apontar o surgimento da consciência de classe "conformada" e sua expressão reformista. Mas deixa de mencionar o necessário amadurecimento também da sua consciência de classe histórica, expressa no objetivo socialista, que implicaria a socialização dos meios de produção na agricultura, entre eles evidentemente também a terra. Portanto, o crescimento do proletariado rural teria que resultar também no surgimento de uma aspiração à propriedade coletiva, social ou estatal da terra.

Esta aspiração já fez, efetivamente, o seu aparecimento, conforme se pode constatar nos documentos mais significativos da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), da CUT e do Movimento dos Agricultores Sem Terra, nos quais, além da propriedade individual, propõem-se outras formas de propriedade e uso da terra: comunitária, condominial, cooperativa e estatal. Ao mesmo tempo, no processo de assentamento impulsionado pela pressão do Movimento dos Sem-Terra, os agricultores assentados são levados, pelas circunstâncias concretas da sua situação, a optar pela ajuda mútua, pela união de forças, pela cooperação econômica, que freqüentemente chega à aglutinação das terras e à sua operação coletiva.

Assim, a luta dos sem-terra pela reforma agrária já reflete, mesmo que embrionariamente, nas suas reivindicações e na sua prática concretas o fato de que o desenvolvimento da estrutura de classes capitalista no meio rural também está promovendo uma evolução na própria concepção camponesa da propriedade da terra. A realidade é que o proletariado, no meio rural, não existe apenas "ao lado" dos sem-terra, mas estes mesmos já são, em grande parte, semi proletários. Por isso, a aspiração camponesa pela terra em caráter individual e privado mescla-se, em diversos graus, com a aspiração proletária ao uso coletivo da terra e demais meios de produção.

Claus Germer é membro do Diretório Nacional do PT e presidente do PT Paraná.

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