EM DEBATE

Meio a festas, discursos e, desencontros municipais, estaduais ou nacional; meio a beijos e bofetadas, entre confraternizações, desavenças e trombadas, ou mesmo sorrisos cordiais e iras divinas - muitas vezes bipóctitas e outro tanto sinceras, o PT completou 15 anos em 1995.

De qualquer modo, os 15 anos funcionaram como um rito de passagem. Agora, é um outro momento. Melhor ou pior, o tempo dirá. São outros seus dilemas, suas encruzilhadas. Novas escolhas de conduta feitas como desdobramento do último Encontro Nacional são provas desses dilemas e encruzilhadas de que falamos. Por outro lado, a transversal da linguagem poética muitas vezes tem feito parte da prática apostólica ou profética - da política. Assim já prenunciava São João sobre Babilônia, a Grande - "mãe de todas as abominações". Metáforas, parábolas e outras figuras de linguagem têm acompanhado o tratamento das diversas contemporaneidades da História. Às vezes, ditadas pela lucidez. Outras pelo desatino - o que é quase a mesma coisa em certas circunstâncias.

De qualquer modo, foi essa transversal da linguagem poética a trilha escolhida por dois dirigentes petistas - Hamilton Pereira e Luiz Dulci - para tratarem desses 15 anos. Além desse traço comum de escolha de linguagem, ambos se identificam em outro ponto: Dulci teve seu nome cogitado internamente à articulação para disputara presidência do PT com José Dirceu, e Hamilton disputou-a efetivamente com Dirceu, na plenária do último encontro.

Quem viver, verá.

Quem ler, lerá. (A.F.)

Conversa sobre luas com um militante

Política como grande arte

Conversa sobre luas com um militante

"No osso da fala dos loucos tem lírios..."

Manoel de Barros

Rogério, companheiro

Não se espante. Nem você, nem o leitor de T&D que por acaso pousar os olhos sobre estas páginas. Devo-lhe há alguns meses, essa conversa. Dentro do PT fomos ao longo do tempo tecendo, com nossos silêncios e palavras mortas, uma nação de mudos. E quando ousamos - cada vez menos... - rompê-los, esbarramos numa nação de surdos. Aqueles a quem o alarido da discussão diária tornou os ouvidos impermeáveis à palavra dos militantes comuns.

A vida me levou a muitos lugares e pessoas. Algumas conhecidas, outras nem tanto. José Porfírio, líder da revolta dos camponeses de Trombas e Formoso, em Goiás, lia na cela um único livro: a Bíblia. Preferia o livro do Apocalipse. Elizabeth Teixeira, entrevistada por T&D, neste número, acende fogo em cada palavra ao desfiar o rosário impossível de suas vidas incontáveis. Milton Nascimento não gasta palavra.

Olha o mundo e canta. Desconstrói o labirinto de atalhos onde exilamos nossa infância. E nos comove a medula da alma. Pedro Casaldáliga, místico e profeta, que você encontrou certa vez em Nicarágua, foi tomado pela paixão das águas do Araguaia, um rio pagão a quem os índios Karajá chamam Berokã. Como vê, chego até você carregado de raízes e ventos, pântanos e sombras e relâmpagos raros que guardei nos bolsos e incorporei aos olhos e aos sonhos. Estas coisas lhe digo porque recolhi parcela de sua vida, nas muitas vidas que carrego.

Retomo, para começar essa conversa sem compromisso que infelizmente nunca pôde ocorrer em Nova Prata, uma reflexão sem dor - cara porque profundamente verdadeira - que me acompanha há muitos anos. Quando me encontro entre dirigentes do partido e destôo, invariavelmente ouço o comentário complacente: "É um poeta...". Quando me encontro por acaso entre os artistas e divirjo vem a contra-face: "É um político...". No PT, não alcançamos compreender ainda que a ação política é dimensão da cultura. Não nos demos conta de que cada gesto nosso revela em que medida somos capazes de ser a oficina do novo ou o quanto "o passado pesa o cérebro dos vivos". O quanto somos capazes de liberdade e do exercício da democracia ou o quanto reproduzimos, como uma condenação, os valores da sociedade que julgamos combater.

Fuenteovejuna

"De quê nos van a perdornar?"

Sub-Cmte. Marcos

Enquanto te escrevo, resolvo abrir essa impressionante Palabra de los Armados de Verdad e Fuego que reúne as entrevistas, cartas e comunicados dos subcomandante Marcos e EZLN, até março de 94. Tenho comigo um exemplar fotocopiado, que meu caro companheiro Gilberto Carvalho certamente deve andar procurando sem sucesso há muitos meses entre seus papéis... Na página de rosto está estampado o nome "Editorial Fuenteovejuna". Para mim, um nome desprovido de qualquer significado especial até uma semana atrás. Até me calar diante da aterradora e deslumbrante Paixão Andaluza criada por este operário da dança e da beleza Antonio Gades, no Teatro Nacional, em Brasília.

Gades foi buscá-la no drama Fuenteovejuna escrito por Lope de Vega, seu compatriota espanhol. Conta uma revolta de camponeses desse pequeno Fernán Gómez, comendador Ordem de Calantrava que havia exercido o antigo direito dos senhores feudais à primeira noite, violando Laurencia, noiva prometida a Frondoso, camponês pobre. Epílogo do drama. No julgamento quando o magistrado inquire: "Quem matou o comendador?". Ouve-se o coro:

"Fuenteovejuna, senhor."O juiz irritado: "E quem é Fuenteovejuna?" Resposta em uníssono: "Todos!" Vitória do sonho coletivo de justiça. Essa emoção que nos comove, não importa o tempo que tenhamos vivido. "A idéia central de Paixão Andaluza é a solidariedade em contraponto ao crescente individualismo", diz Gades, no poetfólio de onde recolho essas informações.

Ninguém vive um espetáculo como esse, impunemente. O flamenco é uma dança vulcânica. Durante aqueles noventa minutos, o sangue que nos corre nas veias é música líquida marcada pela força dos tacones. Saímos dele mais espanhóis, mais brasileiros, mais revolucionários, mais humanos. Imaginei que efeito teria aquela música, aquelas imagens, aquele ritmo se a Paixão Andaluza fosse apresentada ao Congresso dos Sem-Terra...

Fuenteovejuna, Espanha, 1476. Editorial Fuenteovejuna, Chiapas, México, 1994. A cultura, Rogério, é esse fio de luz com que os homens e as mulheres que lavram a terra, produzem o pão, transformam a natureza com suas mãos, costuram sua história no mundo e acendem em nós essa vontade permanente de justiça. Fecho o parênteses, demasiado longo, para nos devolver à conversa que iniciamos.

Julgo que não é possível estabelecer paralelos entre o México e nós, sem pôr o pé em muitas armadilhas. Somos tão distantes e tão distintas são as realidades que vivemos que as comparações servem mais para obscurecer que para elucidar. Ainda assim, creio que não custa nada fazer uma reflexão. Sobre a autoridade de quem contesta. A esquerda brasileira tem vivido nos últimos anos sob o signo da necessidade de propor. Companheiros, dizem alguns entre nós, não podemos mais ser o partido. Não. Temos que oferecer alternativas. A bem da verdade temos trabalhado com afinco para responder a este desafio. Em cinco anos apresentamos dois planos globais de governo ao país, durante as campanhas presidenciais. E entre uma e outra, alguns programas setoriais: Educação, Nordeste, Reforma Agrária, Política Agrícola, Segurança Alimentar. E nada. Collor nem quis saber. Fernando Henrique, idem. Eles não precisaram apresentar alternativas viáveis para nos vencerem nas eleições. Para bom entendedor, mil palavras bastam... O problema não reside aí. Embora alguns companheiros permaneçam empenhados em encontrar as formas mais criativas de sermos conservadores e garantirmos nosso lugar no canto do salão para legitimarmos a pluralidade da festa.

Tão empenhados que perderam o antigo hábito de contestar, com que nascemos. Aquele hábito de dizer Não, quando todos dizem sim. Creio que cabe aqui argüir sobre a autoridade de quem contesta. Vamos considerar, em nosso benefício, que o PT ainda contesta. Será que hoje, o Partido dos Trabalhadores poderia dirigir à sociedade brasileira perguntas equivalentes às que o subcomandante Marcos, do EZLN, dirigiu à sociedade mexicana, em 18 de janeiro de 1994, por ocasião do perdão oferecido pelo governo? Aquelas "De que nos van a perdonar?" Será que temos que pedir perdão às elites brasileiras por termos organizado nos últimos quinze anos o maior partido popular da história do país? Será que teremos que pedir licença para ocupar o espaço político em defesa dos interesses populares? Será que para sermos "modernos" temos que adotar de forma criativa - a criatividade sempre foi o nosso forte... - as teses do Estado Mínimo?

Ou, se quisermos aprofundar o debate - e abrir o alçapão do palco onde se disputam as campanhas eleitorais no Brasil -, teremos ainda autoridade para denunciar-lhe os vícios? Será crível aos olhos do militante comum, o que não tem mandato, o que não é membro de nenhum diretório, mas é quem distribui o panfleto, conversa com o vizinho, intervém na associação de moradores, fala no sindicato, que este partido - nesta frente de atuação tão importante nos últimos anos, as campanhas eleitorais - financiado pelas empreiteiras, exatamente como os partidos conservadores, guarda ainda algum interesse em operar as transformações sociais que os trabalhadores exigem? Por quem serão financiadas as próximas campanhas municipais do PT, que já se anunciam? Ou essas são questões menores, com as quais não se deve perder tempo? Já não passou da hora do partido montar profissionalmente seus mecanismos de sustentação financeira - inclusive das campanhas eleitorais - sem depender da contribuição dos parlamentares, até aqui quase exclusiva das receitas do partido? A ração mais usual a estas questões, entre nós, tem sido: "Mas essas são questões morais, companheiro". A pergunta que fica é: já pensou quando as perguntas que fizermos deixarem de ser morais, companheiro? A raiz da resposta às questões morais, que já têm sido levantadas em diferentes ocasiões, oportunamente ou não, passa necessariamente pelo investimento na montagem de uma estrutura financeira profissional que viabilize o PT e preserve sua independência frente ao poder econômico que combatemos no nosso discurso. Aqui se impõe, em nome da justiça, um registro: o companheiro José Dirceu, desde sua gestão como secretário-geral, vem defendendo essa perspectiva. E se empenhou como nenhum outro, quando deputado, pelo estabelecimento do fundo partidário e sua gestão transparente e democrática. Quero continuar a crer que temos maturidade para enfrentar esse debate. A menos que já aceitemos como resposta a essas e outras perguntas sobre o que ocorre hoje no PT, o verso de Victor Jara:

Mi padre fue peón de hacienda

y yo un revolucionário,

mis hijos hicieron tienda

y mis nieto es funcionário...

A terra invade a razão reinante

"Eu estou depois das tempestades."

Guimarães Rosa

No mês de julho último, fui alvo de uma homenagem no Congresso dos Sem-Terra. Estou convencido de ter identificado suas impressões digitais nela. Desabituado, me comovi com aquela peça de bronze e madeira em minhas mãos. Para agradecer tentei dizer um poema. Tropecei nos versos, engasguei. Um desastre. As pessoas aplaudiram por complacência.

O Congresso foi um raro momento de síntese. Como um movimento com dez anos de trajetória se converteu - com enormes dificuldades - num poderoso movimento de massas capaz de disputar na pauta do debate nacional - e ganhar - um espaço para a questão das reformas estruturais desde o ponto de vista dos trabalhadores. Foi isso. Pela primeira vez, desde a posse de Fernando Henrique, nós alcançávamos o objetivo de inverter a pauta imposta pela iniciativa do governo. Até ali tínhamos apenas reagido, sobretudo na esfera de ação parlamentar, com os resultados que todos conhecemos. Nossos parlamentares se comportaram com brilho mas não conseguiram escapar do massacre.

Desde 1986, já se vão nove anos, a questão da Reforma Agrária não freqüentava de forma tão duradoura a cena política formal do país. Fora empurrada para as páginas policiais, de onde só escapava excepcionalmente para freqüentar os documentos das entidades nacionais e internacionais de defesa dos Direitos Humanos. Corumbiara assombrou o país. Mas, encontrou o Movimento dos Sem-Terra em condições de interpelar a sociedade brasileira sobre a questão da propriedade fundiária e da produção agrícola. Melhor ainda. Encontrou no Partido dos Trabalhadores a sensibilidade necessária, primeiro para a solidariedade com as vítimas do massacre, e, em seguida, a disposição de convocar outros setores organizados da sociedade para apresentar o Memorial aos representantes dos três poderes da República. Deu certo. Sensibilizou a sociedade. O PT é esse milagre quando se junta aos movimentos de massa. Carrega consigo raízes profundas fincadas nas aspirações populares. Esse processo está em marcha. Ainda não estou certo de que o partido visualiza toda a extensão do gesto e a importância que assume nesta conjuntura de resistência à ofensiva neoliberal.

Propor a Reforma Agrária no Brasil, hoje, significa apontar uma forma concreta de buscar soluções para a crise brasileira pela afirmação de um projeto de Nação. Quero poder dizer, Rogério, aos militantes do PT, o que disse aos militantes do Movimento dos Sem-Terra em 25 de julho: "... Nossa organização é esse sinal de contradição. É que lança aos trabalhadores, a cada mobilização que realiza, o desafio de enfrentar com radicalidade uma situação de injustiças radicais. Golpeamos um dos alicerces fundamentais da sociedade brasileira: o monopólio da terra. Buscamos, hoje, caminhos alternativos para fazer produzir a terra conquistada: a recriação da propriedade familiar, das cooperativas, das associações, da socialização da produção e dos bens que produzimos. Reinventamos as políticas de combate à pobreza, à fome, à miséria, ao desemprego, com eficácia. Porque são ações políticas participativas, essencialmente democráticas". Diria mais, não estamos apenas oferecendo aos trabalhadores uma cesta de alimentos que dura uma semana. Estamos oferecendo, além da cesta de alimentos, a possibilidade de lutar por terra para trabalhar. Porque não queremos produzir mendigos, queremos produzir cidadãos.

A fala da margem

Não quero terminar essa conversa sem lançar para você algumas indagações. Se bem olharmos para trás, veremos que a classe trabalhadora que nos gerou - esse rebento dela que alcançou maioridade política no final dos anos 70 - tem um perfil recente, desigual, incompleto. Desigual na consciência e na geografia. Um rosto que abriga desde o metalúrgico do ABCD, metido no macacão azul das montadoras, até a cara encarvoada e faminta de um menino que sai de dentro dos fornos de Ribas do Rio Pardo, no Mato Grosso do Sul. Alguém já disse que, nos momentos de confusão como os que vivemos, antes de saber qual a resposta, mais importante é saber formular as perguntas. Veja, essa classe trabalhadora, com as características que tem, foi lançada no caldeirão de ácido da sociedade de massas sem ter completado seu perfil diferenciado como classe e seu projeto de Nação, mais que de Nação, de sociedade. O avanço das novas tecnologias gera mais que a Desordem do Trabalho retratada no excelente livro do companheiro Jorge Mattoso, essa dissolução dos vínculos entre a classe trabalhadora e o conjunto da sociedade.

Nos setores de ponta, a insegurança, o medo do desemprego estrutural, amesquinha seu projeto social, rebaixa seu horizonte à disputa pela sobrevivência e aos limites corporativos. No extremo oposto, o desemprego e o subemprego crônicos, a terceirização, a informalização rompem o pacto baseado na CLT, que, a rigor, todos sabemos, sempre foi um pacto precário, e contribui poderosamente para dissolver os laços de solidariedade internos da classe trabalhadora. Essa tragédia no limite se expressa na "clandestinização das relações de trabalho", cuja face mais brutal é o continuado crescimento da exploração do trabalho escravo, sobretudo no campo. Se é difícil nessas condições dar contorno aos elementos componentes, formadores da classe trabalhadora, mais difícil ainda será formular e converter em ação o projeto estratégico de transformação social que essa classe oferece à sociedade.

Nessas circunstâncias os papéis permanentes do partido - mobilizar, educar e organizar os trabalhadores - assumem uma importância crucial. É da capacidade que o Partido dos Trabalhadores e os partidos e entidades populares tiverem de consolidar um pensamento - e uma ação - socialista de resistência contra a barbárie neoliberal, que a sociedade brasileira depende para fazer frente ao caldo gerador do fascismo.

Como se diz que perguntar não ofende, Rogério, em tempos passados quando muitos de nós acreditávamos na predestinação histórica da classe operária para a revolução e a hegemonia, cabia perguntar: será que a classe trabalhadora, dissolvida no caldeirão da sociedade de massas, abdicou de seu destino de dirigir a sociedade na construção do socialismo? Ou seria melhor perguntar se os intelectuais que se aproximaram da classe trabalhadora no período de ascenso das lutas contra a ditadura e pelas conquistas democráticas foram tomados pela fascinação da modernidade neoliberal e sucumbiram diante da necessidade de produzir ou sistematizar um pensamento revolucionário novo para responder a uma realidade concreta inteiramente nova?

Alargou-se o abismo que separa o país dos que têm, do país dos que não têm. É preciso não perdermos de vista que a energia transformadora que recolhemos o PT e o movimento social que nos gerou - veio da margem. Não podemos, portanto, permitir que se aprofunde ainda mais aquele abismo. É necessário e urgente um esforço no sentido de compreender melhor o que se passa entre os que vão sendo aceleradamente excluídos não apenas da possibilidade de ação política, mas da própria capacidade de se reproduzir economicamente. De sobreviver como trabalhadores.

Antigamente, o papel cultural de registrar, entender, interpretar, expressar esteticamente era atribuído à literatura. Hoje, está disperso entre um sem número de expressões artísticas, em geral pautadas pelos meios de comunicação social que produziu modificações tão significativas nos hábitos sociais e políticos do Brasil, não tenha conseguido produzir e costurar um movimentos cultural que lhe corresponda. Talvez não sejamos tão revolucionários como imaginamos...

O Brasil está precisando de um Gorki, Rogério. Não do Gorki da Mãe, o panfleto apaixonado. Peça de propaganda. O Gorki de Ganhando meu Pão, Minhas Universidades. Que rasgou a canivete, balalaika, vodka, e o som samovar, a alma russa. É de lá que vem a força transformadora. É da fala da margem. Por isso é que eu vou buscar na margem do mundo, no mundo sem margem - o sertão - a palavra de Guimarães Rosa com a qual quero deixar a você meu abraço por tantos anos trabalhados:

"A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: 'Toma, filha de Cristo, senhora: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...' Digo ao senhor: e menino foi nascendo. Coma as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: 'Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...' - e sai para as luas."

Hamilton Pereira é Pedro Tierra, membro do Diretório Nacional do PT.

Política como grande arte

O PT não foi, há 15 anos atrás, apenas uma novidade programática na política brasileira. Foi sobretudo - arrisco-me a dizê-lo - uma extraordinária novidade formal.

A política transformadora é como a grande arte.

A forma na arte é conteúdo.

Foi o que levou Stendhal a dizer que a grande arte, independente da mensagem que explicitamente proponha, é em si mesma uma "promessa de felicidade".

Ao figurar e transfigurar a vida que é, ao mergulhar nas contradições do que existe, ao fazê-lo com a máxima intensidade dos meios estéticos - representando amorosamente mesmo o inimigo, o algoz - a arte destila implicitamente a vida que poderia ser mas não é.

O desejo de liberdade implícito na maior opressão. O desejo de silêncio implícito na rumorosa confusão ("O imenso panorama de futilidade e anarquia que é a História contemporânea", segundo Eliot). O desejo de fraternidade implícito na compulsória solidão.

A dimensão transformadora da arte, sua vocação libertária, estaria menos no conteúdo explícito, doutrinário, programático - e mais na intensidade com que ela desentranha, sem dizê-lo, do real o seu avesso possível, em uma palavra: sua capacidade de auto-transcendência.

O PT não foi, há 15 anos atrás, apenas uma novidade programática na política brasileira. Foi sobretudo - arrisco-me a dizê-lo - uma extraordinária novidade formal.

Nosso programa conjugava conteúdos democráticos com itens de um projeto socialista. Era criativo, mas não inédito. Algumas organizações da nova esquerda internacional adotavam programas semelhantes. No Brasil, o PSB dos anos 50 tentara a mesma síntese de socialismo e democracia.

A surpresa maior, o encanto do partido emergente, foi a nossa forma. Forma de ser e de fazer política. Esta, sim, inédita na História do país.

Um partido-movimento, oriundo das próprias lutas sociais, capaz de evitar tentações vanguardistas e fazer com que milhares e depois milhões de não-filiados se sentissem tão petistas quanto os que mais o fossem.

Um partido-movimento cuja principal característica era a generosidade transformadora.

A superação afirmativa, veemente, apaixonada, da politicagem tradicional e de sua visão mesquinha do mundo. A nova política como aventura ética e existencial.

As pessoas e os coletivos sociais aderiam menos à plataforma do PT, à sua elaboração doutrinária ou programática (Ali, o bizantinismo ideológico das esquerdas ...) e mais à "promessa de felicidade" implícita em nossa conduta, em nosso convívio, em nosso olhar.

Aderiam não tanto à honestidade proclamada (esse gasto cacoete político) quanto à evidente, quase ridícula, e por isso mesmo convincente, negação da materialidade do poder.

Aderiam à alegria implícita em nossa indignação. À compaixão implícita em nossa raiva (a compaixão, grande virtude revolucionária: fúria que é pietas).

Aderiam - não sem uma pitada de ironia carinhosa - à nossa recusa, flagrantemente ingênua, mas nem por isso menos carnal e criadora, da "face escura" da condição humana.

Aderiam à corrente de desejo que gerou o PT.

Nossa forma emergente, diferente, irreverente, surpreendente, subversiva.

Aqueles meninos criando partido!

Aqueles moços em cima de caminhões!

Aquelas moças e mulheres, novidade histórica espetacular, forma-conteúdo, ali naqueles caminhões, no meio da praça, por onde Nossa Senhora em seu andor!

Aqueles negros, de início poucos e, aos poucos, muitos, em cima dos caminhões!

Operários ou não, camponeses ou não, intelectuais ou não, quadros políticos ou não, simples transeuntes...

Uma nova cenografia, uma nova coreografia. Mais que um novo programa, novos sujeitos sociais. Mais que uma nova plataforma conceitual, uma nova libido, outra sedução.

Sim, eu sei, tempus fugit, as condições agora são outras, o charme do nascituro já se foi, o PT hoje faz parte da institucionalidade democrática que ele mesmo ajudou gloriosamente a construir, é um partido e, enquanto tal, uma instituição. Longe de mim qualquer nostalgia indevida. Um projeto alternativo de sociedade não se constrói com os olhos postos no passado. Certo. Mas tampouco com excessiva volúpia de futuro. Importante mesmo é o presente. É pela capacidade de viver intensamente o presente, de desentranhar do presente as suas virtualidades, que um partido popular comunga com o povo e expressa os seus anseios mais recônditos.

Sem medo de ser feliz, não só no futuro, mas no presente.

"A alegria é a prova dos nove". Sob que outro signo se poderia fundar e consolidar um projeto político-cultural verdadeiramente alternativo no país?

Parêntese: a alegria da forma. A fúria amorosa de pensar e viver o Brasil. O nosso recente programa de TV. Esplêndido, desmesurado, o PT novamente subversivo. Não apenas na forma externa, "artística". Mas na forma de figurar e transfigurar o Brasil, como sujeito e não como objeto, como fonte de energia e desejo, e não como problema, como portador de um discurso fascinante ("pesar de todas as quedas", diria Manuel Bandeira) e não como um vazio miserável a ser salvo, redimido etc.

Um discurso, o do Brasil, anterior e posterior ao próprio PT.

Um programa de TV que recuperou a nossa capacidade de surpreender. Ao país e a nós mesmos...

E chego ao ponto: denúncia e anúncio, a equação da alegria transformadora, para usar os termos do mestre Paulo Freire, se desequilibraram em nossa forma-conteúdo, em nosso modo de ser e de agir, naquilo que a sociedade capta efetivamente de nós.

Terá sido pelas violências, sabotagens, safadezas tantas que nos fizeram?

Pela descoberta, quem sabe, de que a democracia, por si só, não melhorava a vida do povo, apenas abria novas possibilidades para a sua luta?

Pela combinatória perversa (a "década desperdiçada") de democratização com recessão econômica, de liberdade política com miséria social?

Pela situação paradoxal de hegemonizarmos politicamente boa parte da sociedade civil organizada e não conseguirmos evitar o predomínio avassalador da ideologia e dos valores neoliberais?

De falarmos em nome dos pobres sem que a maioria deles vote em nós?

Pelas duas eleições presidenciais perdidas?

Não sei...

O fato é que o nosso discurso foi se tornando crescentemente rancoroso. A um só tempo rancoroso e messiânico, duas formas complementares de negação do presente, da vitalidade contraditória e das virtualidades do presente.

E nos tornamos reféns de um árido conteudismo.

Nosso conteúdo transformador assumiu a forma de uma jeremíada, de um lamento constante.

E nos descolamos do sentimento real de tanta gente, de tanta gente humilde que não pode permitir-se a negação em bloco do presente, ao preço de se auto-negar, de extinguir-se.

Parêntese: lembro-me até hoje da impressão que me causou o "Alegria, Alegria" de Caetano, no auge da ditadura. Não só pelo conteúdo explícito da letra, mas sobretudo pela alegria rítmica e melódica da música. A crítica do existente não precisava ser necessariamente elegíaca (ainda que a época tenha sido de tão belas e lúcidas elegias), não precisávamos aceitar a divisão de trabalho espiritual: alegria deles, dos vitoriosos versus tristeza nossa, dos derrotados. A canção de Caetano era a um só tempo pungente e alegre. Como costuma ser, salvo engano, a humana condição. Continha promessas rítmicas e melódicas de felicidade. Contraditórias, dirão alguns. Sim, com certeza, resgatando a dinâmica contraditória (aberta, imprevisível) da vida em meio ao sufoco.

"Viver bem é a melhor vingança", diz o adágio espanhol.

Quinze anos depois, tanta água passada por baixo e por cima da ponte, esse talvez seja o nosso maior desafio: recuperar a alegria da luta transformadora. A alegria intrínseca, palpável, carnal, não apenas a alegria abstrata, utopística, do "dia que vai chegar".

Alegria que, em uma sociedade tão perversa quanto a nossa, com tantas mazelas e tão desesperante sofrimento inútil, há de ser com certeza a alegria da resistência, mas não de uma resistência rancorosa, auto-destrutiva, que torce (inconscientemente?) pelo fracasso da vida que é, dos homens e mulheres que são. Uma resistência, ao contrário, afirmativa, desejante, ousada, que não se limita a negar o outro, e muito menos a considerar-se impotente em função do outro...

Alegria que nega na prática o principal valor do adversário: a morte.

Alegria que destila, pela celebração crítica do que é, e deseja, e luta, a vida que muito mais poderá ser.

A melhor homenagem que se pode prestar ao PT, festejando os seus 15 bravos anos, é fazer com o partido o que ele tem feito com a sociedade brasileira: desafiá-lo à auto superação.

Luiz Dulci é vice presidente nacional do PT e secretário de Governo de Belo Horizonte.

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