EM DEBATE

Quais são os principais desafios do governo Lula? Como concretizar o programa de governo, apresentado na campanha, num quadro econômico e social adverso herdado dos oito anos do governo Fernando Henrique? Qual deve ser o papel dos movimentos sociais e do PT no futuro governo? Essas questões são tratadas, nas páginas a seguir, por expoentes do Partido dos Trabalhadores: o filosófo Carlos Nelson Coutinho, o líder sindical Paulo Skromov - um dos principais fundadores do PT - e os dirigentes partidários Carlos Henrique Árabe e Joaquim Soriano.

O estreito fio da navalha

Os desafios da esperança

Novo tempo, nosso tempo

O estreito fio da navalha

A recente eleição de Lula foi, certamente, a maior vitória política da esquerda em nosso país. E não tanto porque um membro das classes subalternas, retirante nordestino e ex-operário, ascendeu à Presidência da República, mas sobretudo porque esta ascensão se deu em estreita ligação com o crescimento e fortalecimento de uma das mais importantes instituições da sociedade civil, ou seja, um partido político. Estou me referindo, é claro, ao Partido dos Trabalhadores, o único partido brasileiro de esquerda a se tornar efetivamente um partido de massas, não só por dispor de uma forte e crescente presença nas instituições, mas também por contar, desde suas origens, com um sólido vínculo com os movimentos sociais. Para além do extraordinário simbolismo representado pela vitória de um ex-operário numa eleição presidencial, simbolismo tantas vezes ressaltado, cabe sobretudo lembrar que esta vitória – longe de ser o mero triunfo de um líder carismático, messiânico, como alguns sociólogos apressados o têm definido – foi a vitória de um projeto político, representado sobretudo por um partido que soube crescer nos quadros de um processo de democratização do qual foi, de resto, um dos maiores protagonistas. A maioria esmagadora dos que votaram em Lula sabe que ele se auto-identifica expressamente não como um "messias", um "pai dos pobres", mas como líder e parte integrante de um partido político e, mais amplamente, como expressão – por meio deste partido – de uma sociedade civil rica, complexa e participativa. Nas bandeiras vermelhas que tremulavam nas comemorações da vitória, não se viam fotos de Lula, mas a estrela do PT e a foice e o martelo de partidos aliados.

Cabe lembrar, porém, que o governo Lula não será o primeiro governo de esquerda na história do Brasil. Pelo seu programa político reformista, pelos vínculos que buscou manter com os movimentos sociais (em particular com o movimento operário), o breve governo João Goulart (1961-1964) foi certamente um governo de esquerda. As condições em que isso se deu, contudo, eram bem diversas das atuais: além de Jango não ter sido diretamente eleito para a Presidência e de não contar com o respaldo de um partido como o PT (o que fez sua ação ser freqüentemente caracterizada por práticas populistas), seu curto e tumultuado governo se deu num contexto em que ainda eram débeis no Brasil, em comparação com nossos dias, tanto a cultura política quanto as instituições democráticas. Tampouco se pode dizer que o governo Lula será o primeiro governo de esquerda eleito democraticamente em nosso continente: Salvador Allende venceu as eleições no Chile em 1970 e governou por quase três anos, com o apoio de uma coalizão (a Unidade Popular) constituída por partidos (o comunista, o socialista) que, pelo seu enraizamento na sociedade, tinham muito a ver com a fisionomia do nosso PT. Mas, também neste caso, eram bem outras as condições: Allende recebeu apenas um terço dos votos populares, tendo sido confirmado num segundo turno em que votavam apenas os congressistas. Assim, nem Jango nem Allende chegaram ao governo legitimados pela extraordinária votação – quase dois terços dos eleitores! – que deu a vitória a Lula. Mas, de qualquer modo, analisar e avaliar estas duas experiências, tragicamente derrotadas, é obrigação de todos os que pretendemos que seja outro o destino do governo Lula.

Na avaliação das perspectivas que se abrem para este governo, não se deve esquecer um fato decisivo: esta extraordinária vitória da esquerda brasileira ocorre num contexto internacional adverso, marcado pelo refluxo e pelas sucessivas derrotas da esquerda, em todas as suas vertentes, até mesmo as mais moderadas. Não apenas os Estados Unidos estão hoje sob o governo de uma direita conservadora e belicista, mas também na Europa – onde sempre foi forte a presença da esquerda – predominam atualmente governos de centro-direita, quando não mesmo simplesmente de direita. Na América Latina, apesar de fortes indícios de mal-estar diante do neoliberalismo, tampouco se pode dizer que seja brilhante a situação da esquerda ou mesmo da centro-esquerda.

Decerto, as condições internacionais em que operaram Jango e Allende, nos anos 60 e 70 do século passado, também eram muito difíceis: vivia-se em plena Guerra Fria, o que facilitou a decisiva ação desempenhada pelo imperialismo norte-americano na derrubada dos seus governos. Contudo, malgrado estas enormes dificuldades, havia algumas margens de manobra – possibilitadas, por exemplo, por um importante movimento de países não-alinhados, que buscavam se situar entre as duas superpotências da época, bem como pelo menor grau de globalização imperialista –, as quais permitiam projetar, e mesmo implementar parcialmente, um desenvolvimento nacional relativamente autônomo e uma política externa razoavelmente independente.

Também em nossos dias, sem dúvida, existem margens de manobra. Mas é preciso não esquecer um fato óbvio: malgrado a maior legitimidade com que a esquerda brasileira chega agora ao governo, em comparação com as experiências de Jango e de Allende, não são menos difíceis as condições que o governo Lula terá de enfrentar para pôr em prática uma política efetivamente reformista. Decerto, não vivemos mais sob a ameaça de um golpe militar (como os que derrubaram Jango e Allende), mas estamos diante de um quadro nacional e internacional que limita drasticamente a possibilidade de empreender aquilo que Lula prometeu em sua campanha, ou seja, a criação de um "novo modelo econômico", diverso do modelo neoliberal atualmente vigente. Por um lado, internamente, foram desativados no governo FHC (mediante as privatizações e a chamada "reforma" do Estado) muitos dos instrumentos necessários para implementar este "novo modelo"; e, por outro, as condições de vulnerabilidade externa em que nos encontramos – também criadas e/ou ampliadas pelo governo neoliberal que o povo brasileiro acaba de derrotar – obrigam um governo de esquerda a "negociar", em condições extremamente adversas, a realização de suas metas reformistas. A isso se deve acrescentar o relativo isolamento internacional em que terá de atuar, tanto em nosso continente como no mundo, um governo brasileiro com tal coloração. Ora, uma política efetivamente reformista – que me agrada chamar de "reformista revolucionária" – dificilmente pode ser implementada nos quadros de um só país. Não só o socialismo, como o sabiam Marx e Trotski, mas até mesmo um reformismo "forte" requer hoje um espaço internacional para se desenvolver. Assim, uma das principais tarefas do governo Lula será a de gestar e implementar uma política externa capaz de favorecer a criação política (e não só econômica) deste espaço.

Como sabemos que o "mercado" não é nem uma pessoa nem uma coisa, mas sim o resultado de uma correlação de forças entre grupos e classes sociais, cabe desde já reconhecer algo desagradavelmente óbvio: a esquerda brasileira ganhou as eleições num contexto nacional e, sobretudo, internacional, em que esta correlação de forças nos é extremamente desfavorável. Foi isso, entre outras coisas menos essenciais, o que motivou a necessária política de alianças que a direção do PT resolveu adotar na atual campanha presidencial e que pretende implementar no governo Lula. Esta decisão, que rompe com o isolamento sectário que caracterizou os primeiros anos do PT (e que retoma na prática uma antiga herança aliancista do velho PCB), revelou ser – independentemente da questão de saber se todas as alianças propostas e efetuadas foram corretas e necessárias – uma das razões da vitória de Lula. Quase sempre com lucidez e bom senso, o atual grupo dirigente do PT propôs alianças que, para além dos partidos políticos, envolviam também segmentos, grupos e classes sociais, alianças que tinham como meta alterar a desfavorável correlação de forças. Definida corretamente como eixo do "novo modelo econômico" a prioridade a ser dada à produção em detrimento da especulação financeira, era natural e correto que o PT buscasse uma interlocução com a burguesia industrial, tanto com os segmentos voltados para o mercado interno quanto com os que têm na exportação sua meta prioritária. Menos justificável, ainda que eleitoralmente compreensível, é que não tenha sido deixado claro que – se se trata verdadeiramente de implementar um novo modelo – não é possível imaginar que "todos" serão beneficiados com ele: os bancos, o capital especulativo nacional e internacional, bem como os latifundiários improdutivos, ou seja, as camadas mais favorecidas pelo atual modelo terão de ser "menos beneficiadas" (se não quisermos dizer: "mais sacrificadas") do que os demais segmentos da população.

É importante que fique claro, de resto, que – se a desfavorável correlação de forças impõe a um governo de esquerda a aceitação dos "contratos" feitos pelos governos anteriores – é impossível construir um "novo modelo econômico" sem criar as condições para que "contratos" deste tipo se tornem desnecessários. Se Lula e o PT centram suas propostas na necessidade de retomar o paradigma da produção, de tomar como eixo central a geração de empregos e a distribuição de renda, e, ao mesmo tempo, se enfatizam que o modelo neoliberal é responsável pelas mazelas que nos atormentam, então não é possível deixar de dizer, com toda clareza, que o respeito aos "contratos" (por exemplo, com o FMI) não passa de um mal necessário. Não podemos de modo algum sucumbir à tentação de fazer da necessidade (temporária!) uma virtude (permanente!). Se isso desgraçadamente ocorresse, o que nos parece improvável, o risco com que se defrontaria hoje um governo de esquerda no Brasil não mais seria o de ser derrubado por um golpe militar: seria o risco – talvez ainda mais grave! – de ser cooptado objetivamente (ou seja, independentemente da vontade e da intenção subjetiva de seus componentes) pelo modelo neoliberal dos setores mais reacionários das classes dominantes nacionais e internacionais. Em outras palavras: se esta cooptação ocorresse, teríamos entre nós uma enésima "revolução passiva", isto é, mais um movimento no qual – com pequenos e inessenciais retoques "sociais" – seria conservado essencialmente o atual status quo.

Diante de todas essas dificuldades, cabe uma pergunta: que atitude devem ter, em face do governo Lula, não só movimentos sociais radicais como o MST, mas também aquelas correntes que uma imprensa deliberadamente maliciosa costuma chamar de "esquerda do PT"? O que é precisamente isso, a "esquerda do PT"? Ainda que correndo o risco de uma definição sumária, creio que fazem parte desta "esquerda do PT", com a qual de resto me identifico, todas aquelas correntes ou personalidades que – ao contrário de importantes setores do partido, talvez hoje majoritários, os chamados "moderados" – vêem no socialismo não um "movimento ético" que busca maior justiça social no interior do capitalismo, mas sim um novo modo de produção e uma nova forma de sociabilidade alternativos ao próprio capitalismo. Temos aqui, decerto, uma significativa diferença político-ideológica entre os membros do PT, diferença que já nos tem empenhado e certamente continuará a nos empenhar em acirradas discussões programáticas no interior de nosso partido.

Seria inteiramente impertinente, contudo, evocar tais discussões para definir a atitude a tomar em face do governo Lula, que evidentemente não pode (e não deve!) assumir o socialismo como ponto prioritário e imediato de sua agenda política. Isso nos obriga a ter em conta algo que, para além das identidades, diferencia os componentes da "esquerda do PT", ou seja, o modo pelo qual cada componente desta "esquerda" concebe o como e o quando chegar ao socialismo. Neste terreno, as diferenças entre nós da "esquerda" também são substantivas. De minha parte, tenho dito que – em sociedades complexas como a brasileira – não há outro modo de se chegar ao socialismo que não seja por meio do "reformismo revolucionário", ou seja, mediante um longo processo de lutas que, por reformas que alterem de modo gradual a correlação de forças, nos permitam superar progressivamente a lógica individualista do capitalismo e criar uma sociedade solidária, fraterna e igualitária. Uma sociedade que – como Lula disse numa entrevista ao Jornal Nacional da TV Globo, durante a campanha – é sinônimo de uma sociedade socialista.

Em minha opinião, a "esquerda do PT", bem como movimentos sociais como o MST, deve apoiar enfaticamente o governo Lula, dele exigindo nada mais do que dar os passos iniciais, que serão necessariamente modestos – dada a desfavorável correlação de forças! –, neste longo processo de reformas que apontam para uma nova ordem social. Para dar tais passos, o governo Lula terá de se equilibrar num estreitíssimo fio da navalha. Por um lado, deve evitar a cooptação pelo atual status quo, à qual já me referi; por outro, não pode sucumbir às tentações voluntaristas (contra as quais Lula parece estar suficientemente vacinado!) de ir muito além do que nos permite a atual correlação de forças. Uma inteligente e razoável pressão à esquerda, vinda dos movimentos sociais e da "esquerda do PT", será importante para impedir a possibilidade de cooptação; mas um radicalismo insensato, um voluntarismo principista e alheio às exigências das condições objetivas (radicalismo e principismo que, infelizmente, já foram manifestados publicamente por alguns de nossos companheiros) devem ser enfaticamente evitados. Não hesitaria em dizer que, diante da atual correlação de forças, este radicalismo "esquerdista" seria um gravíssimo erro político, talvez o maior de todos os que possam ser

cometidos.

O eventual êxito do governo Lula será, para a esquerda em geral, uma vitória de alcance histórico-universal. Com tal governo se abre, para todos nós da esquerda brasileira, independentemente de onde estejamos situados política e partidariamente, um enorme desafio. Temos uma grande responsabilidade, não apenas diante do povo brasileiro – que deu uma esmagadora aprovação a Lula, ao PT e aos partidos aliados, na expectativa de resultados concretos –, mas também diante de todas as forças internacionais que saudaram nossa vitória e a sentem como sua própria vitória. Quanto maiores forem os obstáculos, tanto mais teremos de lutar para avaliá-los corretamente e para superá-los com paciência e tenacidade. Mais uma vez, cabe recordar a lição de Gramsci: se é necessário o pessimismo da inteligência, não é menor a exigência do otimismo da vontade!

Carlos Nelson Coutinho é professor titular de Teoria Política na UFRJ e autor, entre outros, de Gramsci - Um estudo sobre seu pensamento político (Civilização Brasileira, 1999) e Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo (Cortez, 2000).

Os desafios da esperança

O categórico rechaço popular ao domínio do capital financeiro expressado pelos brasileiros nas eleições de outubro areja o cenário político internacional marcado, sobretudo após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, por arrogâncias bélicas, avanços da direita e retrocessos nos direitos humanos e democráticos.

A maré popular que conduziu Lula lá não foi apenas uma onda lulista. A performance eleitoral do PT e de seus aliados atesta que a vontade de mudança da grande maioria do eleitorado produziu realmente uma onda vermelha. O crescimento do voto petista nos parlamentos e nas disputas para os governos estaduais foi impressionante, ainda que não se traduzisse na efetiva conquista de governos. O fato concreto é que o voto petista dobrou tanto para presidente como para governador.

Os noventa dias da campanha eleitoral, com milhares de comícios, carreatas e debates públicos que envolveram e apaixonaram milhões de pessoas em todos os recantos do país, representaram um dos maiores episódios da luta política de classes de nossa história.

O fato de contarmos nas fileiras populares vitoriosas com importantes líderes empresariais não elimina o caráter essencialmente proletário e de esquerda desse amplo movimento, claramente hegemoneizado pelo Partido dos Trabalhadores, que é obra genuína dos trabalhadores e dos socialistas brasileiros.

Como todo grande movimento de potencial transformador, a Coligação Lula Presidente ganhou um forte poder de atração que penetrou todos os segmentos sociais. Esse foi um dos fatores mais decisivos para a vitória alcançada.

Lula proclamou compromissos contraditórios, como o de respeitar os contratos do governo FHC e o de distribuir efetivamente a renda nacional, ou como o de promover uma inserção soberana do país no mercado mundial e de negociar a participação na Alca etc. Mas ao reafirmar esses compromissos, também após a vitória, deixou claro que isso nada tinha de oportunismo eleitoreiro, apenas o reconhecimento de que ante a delicada situação do país a renegociação dos contratos não começará por nenhuma moratória unilateral, e, no caso da Alca, o que pretende é apenas reconhecer o grande interesse do país em aprofundar o intercâmbio comercial com os EUA, mas sob condições tais que preservem os interesses do Brasil, inclusive sua soberania, para estabelecer tratados comerciais com outros parceiros de outros continentes.

A aliança com o PL durante o processo eleitoral não impediu a liberdade de movimentos do PT e da esquerda, até porque, além do próprio vice-presidente José de Alencar, foram pouquíssimos os pelistas que participaram efetivamente do esforço pela eleição de Lula. Mas agora, no governo, não tenhamos dúvida de que a postura do PL será bem mais ativa. O Partido Liberal deverá inchar bastante com a chegada de adesistas oriundos dos demais partidos do centro e da direita. Para o PT vale o critério clássico de que aliança boa é aquela que não nos tolha os movimentos na implementação escrupulosa do plano de governo consagrado nas urnas. É preciso reconhecer que a presença de José de Alencar contribuiu para construir pontes inéditas entre o PT e setores mais arejados do empresariado.

Particularmente notável é o desarmamento ideológico de parte expressiva do empresariado industrial e de setores do empresariado rural, que finalmente resolveram prestar atenção no conteúdo das propostas contidas no Programa de Governo defendido por Lula. Em 1989, o conjunto do empresariado estava cego e ensurdecido pelo mais extremado sectarismo classista. As diferenças entre Lafer Piva e Mário Amato são emblemáticas. Os líderes mais esclarecidos da Fiesp percebem agora que o compromisso de Lula é totalmente sincero e confiável quando propõe a retomada de uma nova política econômica assentada nos setores produtivos da economia.

Sem esse mínimo de boa vontade do empresariado não haveria como haver transição entre o modelo atual – totalmente subserviente ao capital financeiro – e o novo modelo proposto por Lula. Se preponderasse a radicalização preconceituosamente classista do empresariado, no estilo Mário Amato/89, ao governo Lula só restaria a opção de um pacotaço de reformas, que incluiria necessariamente uma concordata unilateral da dívida no início do governo, medidas necessárias num cenário adverso, mas que desatariam graves e radicalizados conflitos sociais e políticos cujos impasses poderiam resultar em dramáticos e decisivos confrontos do tipo guerra civil ou golpe militar, tal como parece ser o rumo da Venezuela.

Para se entender a extrema delicadeza da tarefa de Lula nesse período de transição, durante o qual a permanência ainda preponderará sobre a mudança, é importante considerar o raquitismo das reservas, a magnitude das dívidas, a insuficiência dos saldos comerciais, os juros altíssimos que configuram a situação vulnerabilíssima do país face ao capital especulativo, situação que Lula chamou de "encalacrada". A transição anunciada visa a, no plano externo, renegociar os contratos que vencerem e, ademais, tentar obter um apoio internacional ao esforço do novo governo para alongar o perfil da dívida ou mesmo anular parte dela, visando a tirar o Brasil da rota de inexorável falência que vem se desenhando. Aos "credores", certamente, também não interessaria o surgimento de uma nova e grande Argentina um pouco mais ao norte do continente. De qualquer forma, a potência hegemônica mundial, os EUA, sob o prepotente governo Bush constitui um sério fator de risco ou, pelo menos, de imponderabilidade.

No plano interno, além dos indicadores econômicos e dos problemas sociais que se agravaram decorrentes da política tucano/pefelista de inserção internacional subalterna e nefasta ao país, agora temos um problema novo: a perda do controle do atual governo sobre a carestia e a inflação, que já se aproxima dos 15% ao ano e que deverá acarretar uma corrida corporativa pelo realinhamento de preços e salários.

Contudo, em que pese a gravidade dos constrangimentos impostos pela encalacrada em que meteram o país, um governo com a natureza que lhe confere seu partido hegemônico e depositário das grandes expectativas populares que presidiram sua consagradora eleição não pode adiar por um minuto sequer o início de um processo efetivo, ainda que de início insuficiente, de distribuição de renda.

O incentivo concreto à parcela da economia nacional ainda não diretamente dependente das vicissitudes cambiais deverá começar desde o primeiro dia de governo ou até antes. Lula estava absolutamente correto quando impôs aos redatores finais de seu primeiro discurso como presidente eleito, ênfase especial ao seu programa de luta contra a fome, que envolve muito mais que o prosseguimento, melhoria e extensão dos atuais programas do tipo Renda Mínima (Bolsa Escola, Bolsa alimentação, Vale-gás e PETI). O programa contra a fome elaborado pelo Instituto Cidadania prevê a implantação simultânea de mais de outros 20 programas-ações que concorrerão amplamente para promover a economia solidária, a agricultura familiar etc.

Esse período final do governo FHC terá que ser bem aproveitado para assegurar mudanças, sobretudo na composição das mesas da Câmara e do Senado e na legislação fisco-tributária de modo a assegurar um suporte mais estável à gestão em 2003.

Esse período que antecede a posse é essencial também para reafirmar o compromisso interno ao partido e também dos aliados políticos e sociais, de continuarmos a implementar passo a passo uma estratégia e as táticas que viabilizem a transição mais breve possível e que abra caminho à efetiva mudança do modelo econômico com ênfase especial nas atividades produtivas. Durante a campanha, o alinhamento estratégico e tático do PT e dos aliados políticos e sociais foi quase impecável. É essencial que continue assim nesse delicado início de governo. Isso não significa que as correntes políticas, os partidos e as organizações do movimento social que construíram a vitória de Lula devam abrir mão de suas aspirações; mas apenas que respeitem os ritmos e que participem ativamente dos fóruns do pacto social que forem implementados.

Declarações precipitadas sobre a inviabilidade de reajustar o salário mínimo acima dos R$ 211,00 previstos no Orçamento oficial de 2003, feitas por membros da equipe de direção e/ou de transição, só prejudicam e alimentam o oportunismo da oposição sectária encetada por José Aníbal &Cia. A definição sobre o salário mínimo de 2003 deveria ser tomada na ocasião própria, com a posse dos novos parlamentares. O salário mínimo é importantíssimo instrumento de distribuição de renda, sobretudo nessa situação de grande e prolongado desemprego, em que milhões de aposentados e pensionistas tornaram-se únicos arrimos de suas famílias. É precipitado especular hoje o novo valor nominal que passará a ter o salário mínimo, até por causa da inflação que se encontra fora de controle. R$ 240,00 ou mesmo R$ 250,00 em maio de 2003 poderá significar menos que a mera correção monetária dos atuais R$ 200,00. Seja como for, para o PT é incabível o velho discurso delfiniano de primeiro fazer o bolo crescer para só depois reparti-lo.

Quando Lula diz que se conseguir garantir que cada brasileiro possa alimentar-se pelo menos três vezes ao dia terá realizado a obra de sua vida, ele expressa a essência da expectativa popular quanto ao seu mandato presidencial. José Dirceu já declarara isso de outra forma, há vários anos, ao afirmar que o problema do PT não era chegar ao governo de qualquer forma, mas sim chegar ao governo para realizar mudanças concretas na vida dos brasileiros, sobretudo dos mais carentes, e realmente se fosse para chegar ao governo a qualquer custo, por exemplo, para esquecer tudo o que escrevemos e falamos, isso já teria sido possível muito antes.

A linha de viabilização de um verdadeiro governo petista, nas condições concretas em que receberá o país em 2003, consiste basicamente em saber encontrar e trabalhar cotidianamente no preciso limite entre a necessidade imperiosa de melhorar a vida do povo e os constrangimentos impostos pelo "mercado" financeiro que parasita e tiraniza o país. Qualquer desequilíbrio nessa conduta poderá inviabilizar o novo governo pela esquerda ou pela direita. Lula está sendo sincero quando afirma que não aceitará trair a causa do povo. Mas a história está cheia de exemplos que nos alertam que os homens nem sempre conseguem governar como gostariam.

Quando se diz que Lula é bem diferente de Hugo Chávez por sua impecável tradição de luta pela democracia (foi a melhor expressão do novo sindicalismo democrático que inviabilizou a ditadura militar, o mais destacado líder do Movimento pelas Diretas Já e do Movimento pelo Impeachment de Collor de Melo) e, sobretudo, pelo fato de ter investido toda a vida na construção de um partido político que, desde a origem, em dezembro de 1978, prima pela coerência, é importante que não se perca jamais isso de vista – que Lula não pode e nem deve ser visto pelas maiorias que o elegeram como salvador da Pátria ou Papai Noel. O êxito ou fracasso de seu governo dependerá de um amplo esforço coletivo, especialmente dos integrantes de seu próprio partido, da esquerda em geral e do movimento sindical – em particular da CUT e do MST.

Um governo de esquerda não se sustenta da mesma maneira que um governo conservador. Os eleitores de Lula não podem agora se dispersar e voltar para casa para ver na TV "o que o homem vai fazer". Isso seria simplesmente desastroso. É essencial manter a militância e, na medida do possível, a população mobilizada e vigilante, disputando o conteúdo de cada uma das reformas agendadas no discurso de Lula. Para garantir que a reforma política aconteça como quer o povo, com real proporcionalidade na Câmara, com a fidelidade partidária, com o financiamento público das campanhas eleitorais. Para garantir que a reforma agrária aconteça com extensão e profundidade necessárias para gerar condições dignas de subsistência para milhões de deserdados atuais. Para assegurar que aconteça uma reforma fiscal para valer, que inverta o caráter fortemente regressivo da tributação brasileira, que taxe as grandes fortunas e o ganho especulativo; que a reforma trabalhista e da estrutura sindical sejam consentâneas com os interesses e as aspirações dos trabalhadores etc. Enfim, é essencial que os trabalhadores e demais setores populares permaneçam mobilizados para disputar os rumos do governo. Não devemos, jamais, abandonar Lula e sua equipe de governo na árida solidão da ilha da fantasia que é a Esplanada dos Ministérios, sob pena de deixá-los à mercê da ação unilateral, insinuante e agressiva dos lobbies das elites privilegiadas.

O principal instrumento de sustentação do governo Lula terá que ser necessariamente o Partido dos Trabalhadores. Mas, para que o PT esteja à altura de cumprir esse indeclinável papel é imprescindível que esteja organizado pela base de forma aberta e permanente em cada bairro de todos os municípios do país. Seus diretórios e núcleos devem funcionar com regularidade, tendo como fulcro de sua atividade a discussão e implementação do cotidiano da atividade política, jamais a mera discussão ideológica. A luta política não perdoa quem deixa espaços vazios. Além de abrir e fazer funcionar sedes do partido em todos os municípios e bairros dos grandes centros, urge suprir as debilidades de seu funcionamento interno. O PT não pode continuar a ter como base mais dinâmica os coletivos de mandatos parlamentares. Os diretórios municipais nos pequenos e médios municípios, os diretórios zonais e distritais nos grandes centros urbanos, os núcleos sindicais, de mulheres, anti-racistas e de juventude devem constituir a unidade dinâmica da base partidária. Antes mesmo da vitória de Lula, muitos militantes políticos oriundos de partidos tradicionais da burguesia acercaram-se ou filiaram-se ao PT, sobretudo em pequenas cidades. É muito importante que esses militantes e os novos aderentes que acorrerão às fileiras do PT após a vitória tenham a oportunidade de conhecer e concordar previamente com o que é realmente ser petista; que conheçam nossa história de luta, nosso patrimônio ético e moral e assimilem nossos compromissos primordiais com os trabalhadores e com os demais setores sociais sem privilégios.

O PT tem crescido a cada eleição e a previsão é de que o êxito dos primeiros dois anos do governo Lula produzirá um forte e positivo impacto nas eleições municipais de 2004. Isso desperta entusiasmo, mas também preocupação, porque se tivermos um inchaço em vez de crescimento, teremos que explicar porque vários prefeitos eleitos sob a nossa sigla partidária desenvolvem práticas indecorosas, ao arrepio da nossa melhor tradição, maculando a imagem impoluta de nossa bandeira arduamente construída nesses 23 anos.

Os petistas que dirigem sindicatos e outras organizações sociais devem evitar, por um lado, fazer das respectivas entidades correias de transmissão do partido, e, por outro, imprimir orientações ultracorporativas nas entidades que dirigem. Durante o nosso primeiro governo municipal paulistano ocorreram exemplos antológicos desse desvio ultracorporativista que disseminou uma atitude sectária entre os trabalhadores municipais, sobretudo entre os condutores de ônibus, o que foi decisivo para gerar uma imagem profundamente injusta daquela boa gestão petista e as condições para a vitória de Maluf. Durante o governo de Cristovam Buarque, o mais danoso desvio foi a excessiva cooptação do movimento social pelo governo, com conseqüências igualmente prejudiciais. O compromisso partidário de sustentar o governo Lula não deve transformar nossos líderes sindicais em fura-greves e nem tampouco em corporativistas radicais.

Bem diferentemente da vitória eleitoral anterior de um presidente de esquerda no continente – Salvador Allende, no Chile, há 29 anos –, a vitória de Lula não coincide com a emergência de um ascenso do movimento social. Pelo contrário, ela acontece num cenário de prolongado arrefecimento de lutas sociais, após a dizimação de quase metade do operariado industrial do país, acarretada sobretudo pelos oito anos de verdadeira destruição do parque industrial brasileiro. Com 12 milhões de desempregados que ainda se animam a buscar emprego, afora outros tantos milhões que já não mais a isso se dispõem, o outrora forte movimento sindical referenciado na CUT já não alimenta ilusões de que possa obter a satisfação de suas aspirações pela via dos acordos coletivos salariais. Por isso mesmo, os remanescentes desse debilitado movimento sindical jogaram todas as energias na eleição de Lula e agora apostam na implementação de uma nova política econômica que redinamize a indústria nacional e permita recuperar os empregos destruídos pela política neoliberal.

Enfim, ante o fracasso histórico das elites na condução do país, as forças vivas se mobilizaram, em última instância, para conferir a Lula e ao PT esse papel dirigente. Abriu-se, finalmente, uma oportunidade inédita. Que, apesar das tremendas adversidades enfrentadas, nosso partido e cada um de nós saibamos provar que viemos para fazer a história!

Paulo Skromov é ex-dirigente nacional do PT e da CUT, presidiu o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Couro de São Paulo. Um dos dirigentes sindicais criadores da proposta do PT, ao lado de Lula, Jacó Bittar, Wagner Benevides, Olívio Dutra e Henos Amorina. Redator da Carta de Princípios do PT (maio de 1979) e das Normas Transitórias de Funcionamento do PT (13/10/1979), presidiu a Plenária Nacional de fundação do partido em 10 de fevereiro de 1980, integrando sua primeira Executiva Nacional, ao lado de dez outros companheiros.

Novo tempo, nosso tempo

 

O resultado das eleições de outubro de 2002 representa um grande deslocamento à esquerda na correlação de forças na sociedade brasileira, inaugurando um novo e inédito período político. O Partido dos Trabalhadores alcançou a Presidência da República elegendo Lula com quase dois terços dos votos; com 91 deputados tornou-se o maior partido da Câmara Federal e passou a contar com 14 senadores. A vitória do PT foi uma vitória popular e uma importante derrota do neoliberalismo. O PT e Lula catalisaram, a partir de uma trajetória de identidade com a defesa dos interesses populares, a vontade de mudança.

É preciso ver, também, os aspectos que limitam a profundidade desta mudança. Apesar de termos disputado o segundo turno em vários estados, obtido votações importantes e ganho no Acre, Mato Grosso do Sul e Piauí, perdemos no Rio Grande do Sul. O PSDB e o PMDB ganharam a maior parte dos governos dos principais estados do país.

O deslocamento na correlação de forças representado pela vitória do PT é também limitado pelas alianças com setores de direita e por compromissos com aspectos centrais da política econômica derrotada nas urnas, expressos na aceitação, ainda que com críticas, por Lula e pela maioria da direção do PT, de uma suposta "inevitabilidade" da manutenção do acordo com o FMI e suas decorrências.

Outro aspecto importante é a ausência de mobilizações sociais de massa significativas no último período, embora a campanha tenha realizado uma ampla mobilização política.

Um novo período

As eleições abrem um novo período político no Brasil, entendendo esta caracterização como a alteração de elementos centrais da correlação de forças entre as classes sociais e não apenas elementos conjunturais de mudança. O núcleo político e ideológico do neoliberalismo no Brasil foi derrotado na disputa do governo central, instrumento, obviamente, fundamental para a continuidade do seu projeto. Os efeitos cumulativos de uma década de aplicação de políticas neoliberais no país trouxeram conseqüências econômicas e sociais desastrosas, crescimento do descontentamento popular, relativa desarticulação das elites ao longo de um período em que parte expressiva da riqueza nacional mudou de mãos e foi desnacionalizada, e desagregação do bloco montado ao redor do governo Fernando Henrique.

Desde a crise do regime militar o PT luta para dar uma saída de esquerda para os vários momentos de crise nacional pelos quais o país passou. O primeiro destes momentos foi a denúncia da transição das elites com recusa ao Colégio Eleitoral e à união nacional em torno a Tancredo Neves. É verdade que a vitória em 2002 distancia-se não só, e nem principalmente, no tempo cronológico dos termos em que víamos este momento desde o 5º Encontro Nacional até a disputa de 1994. Tem maior proximidade com o tipo de política desenvolvida em 1998. Ainda assim, o partido que organiza a vitória em 2002 é aquele que traz esta história de continuidade, embora com uma dinâmica crescentemente contraditória.

Não se trata, assim, de uma simples mudança de governo. Pode vir a consolidar uma mudança de blocos políticos e sociais no governo.

Este quadro nacional combina-se com uma conjuntura internacional adversa à continuidade das políticas neoliberais – recessão mundial, crescimento do protecionismo dos países centrais, intervencionismo e unilateralismo norte-americanos, proliferação de nacionalismos de direita. O neoliberalismo tem levado diversos países a crises profundas, com destaque para a Argentina, e vem enfrentando um crescente questionamento internacional.

A eleição já se deu em um cenário de crise aberta, decorrente do esgotamento do modelo neoliberal, e esta profunda crise nacional permanecerá ao longo do próximo período. A partir da derrota do neoliberalismo, diferentes setores, com interesses distintos, disputam saídas para a crise, sem que esteja pré-definido seu desenlace.

Perspectivas

A perspectiva de continuidade dos conflitos existentes na sociedade brasileira e o potencial renovado de mobilização dos setores democráticos e populares delineiam um horizonte de fortalecimento de perspectivas socialistas para a transformação no Brasil. A hegemonia longamente estabelecida pela classe dominante sofreu um abalo e temos melhores condições de trabalhar a construção de uma alternativa democrática e popular.

Disputas centrais para o futuro da sociedade brasileira serão travadas no próximo período. O país tornou-se muito vulnerável aos movimentos especulativos do capital financeiro nacional e internacional e a tutela do FMI tem como objetivo preservar esta situação, mantendo o governo refém dos "mercados".

Reconquistar autonomia da ação governamental face aos mercados e condições para o exercício da soberania nacional deve ser objetivo estratégico primordial. Deve ser perseguido em todas as frentes: aprofundando o deslocamento da correlação de forças pela mobilização social e política, instituindo mecanismos de democracia participativa e instrumentos públicos de controle do movimento do capital, enfrentando a situação de tutela em que hoje se encontra o Estado brasileiro.

Um conjunto de questões estratégicas já está posto ao novo governo: reforma agrária, a afirmação da soberania nacional frente à Alca, o enfrentamento da submissão ao FMI, a regulamentação do sistema financeiro e em particular a relação do Banco Central com o novo governo, a questão tributária, entre outras.

Nestas questões estão em jogo a defesa da democracia e da soberania nacional frente a concessões de poder seja ao Estado imperial norte-americano, seja aos capitais especulativos que se denominam "mercados".

É preciso enfrentá-las tendo em vista as novas condições políticas que se abriram com a vitória do PT. Não podem ser simplesmente questões de governo, mas questões que permitam a construção de um processo em que a maioria eleitoral se converta em maioria política e que possa legitimar e sustentar um caminho democrático e soberano para o país.

A defesa da soberania nacional é a defesa da própria condição de exercício da soberania popular e de uma democracia substantiva.

A idéia de um novo contrato social, presente na resolução do último Encontro Nacional do PT, de Recife, emergiu como um tema central na campanha. Ela foi apresentada como um chamado a todos os setores da sociedade para um pacto a favor da produção, do crescimento econômico e do desenvolvimento do mercado interno.

O PT sempre criticou as propostas de pacto social apresentadas até agora por diferentes governos burgueses, que correspondiam a propostas de submissão das maiorias nacionais, isto é, de subordinar o conflito social a uma suposta racionalidade governamental, que estabeleceria o que poderia ou não ser reivindicado. O que podemos e devemos defender é que um novo contrato social seja fundado na democracia participativa e na existência de espaços democráticos de negociação e solução dos conflitos que resultarão da obrigação do novo governo de resgatar a marginalização histórica dos interesses das maiorias. Este é o processo que poderá dar um caráter social à idéia de nação.

O governo Lula

Lula foi eleito a partir de uma expectativa muito grande de mudança do país, como encarnação da oposição ao governo Fernando Henrique.

O governo Lula será definido no curso de um processo de disputas políticas e sociais, mas isto se dará com um ponto de partida muito forte: a história do PT, marcada, como dissemos ao início, por uma trajetória de identidade com a defesa dos interesses populares.

O governo liderado pelo PT se defrontará com a questão de como garantir uma maioria parlamentar e social para empreender mudanças, tendo como ponto de partida a correlação de forças estabelecida pelo resultado eleitoral e pela luta política. Para além de iniciativas táticas, escolhas estratégicas estarão sendo feitas entre fortalecer a base social do campo democrático e popular pela aplicação de nosso programa de reformas estruturais e estabelecer compromissos com nossos adversários; entre governar com base na democracia participativa e governar ao modo tradicional; entre avançar na construção de uma nova hegemonia ou ficar em um perigoso meio de caminho, híbrido e sujeito a retrocessos. Nosso desafio é construir as escolhas que poderão superar os limites agora colocados para o novo governo.

Estamos frente a uma experiência histórica decisiva, sob todos os pontos de vista, para nosso futuro. É preciso colocar-se integralmente como parte deste processo, compartilhando os desafios postos para o PT. Intervir no processo em curso para que o PT vincule esta experiência decisiva à luta pela superação da globalização neoliberal, da tirania dos mercados, do parasitismo do capital financeiro, das desigualdades, exclusões e injustiças históricas que marcam a sociedade brasileira. Nossa perspectiva é integrar esta experiência em um processo cujo horizonte seja a superação do capitalismo por um socialismo democrático e internacionalista.

O PT fortaleceu-se, é hoje o principal agente político da sociedade brasileira e deve se expressar organicamente no processo de formação do seu governo federal. Ao mesmo tempo, é necessário empreender, no próximo período, uma defesa renovada das resoluções adotadas no último encontro nacional do nosso partido, o que remete às idéias-chave de ruptura do modelo neoliberal, de desenvolvimento com soberania nacional e com distribuição de renda e poder, e de que a experiência de um governo Lula possa contribuir para o resgate de valores socialistas. Elas expressaram a capacidade do partido de formular um ponto de vista estratégico que pudesse unifica-lo às vésperas de uma grande mudança política. Resgatar esta capacidade é mais importante ainda neste novo momento histórico.

Carlos Henrique Árabe é membro da Comissão Executiva do PT-SP.

Joaquim Soriano é secretário nacional de Formação Política do PT.

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