EM DEBATE

A identidade, o perfil ideológico, a composição orgânica, as relações com o movimento de massas, as estratégias, a organização do poder. A discussão sobre o caráter do Partido dos Trabalhadores continua. Agora as contribuições de Raul Pont e de Augusto de Franco vêm somar idéias às posições de Francisco Weffort, Wladimir Pomar e Tarso Genro, publicados no número anterior (edição nº 4)

O Roteiro

Aqui as questões encaminhadas aos debatedores convidados:

1 - O 5° Encontro Nacional avançou uma série de definições sobre o caráter do PT, caracterizando-o em linhas gerais como um partido de massas e de quadros, democrático, de lutas e socialista. Você está de acordo com esta caracterização? Acha que há pontos a aprofundar e/ou alterar?

2 - Num partido que luta pela construção do socialismo, como devem ser, na sua opinião, as relações entre direção e base, entre partido e movimentos sociais? Como estabelecer, de forma correta, as relações entre democracia e unidade de ação no partido?

3 - Que elementos fundamentais devem constituir o programa do PT? Como devem ser suas propostas de democracia para a sociedade?

4 - Há companheiros favoráveis à definição do PT como um partido marxista-leninista. Outros, porém, não concordam com essa caracterização ou a consideram prematura. A seu ver, como o PT deve definir-se do ponto de vista ideológico?

5- Você considera corretas as linhas estratégicas e programáticas sobre a construção do socialismo aprovadas no 5º Encontro? O que deveríamos modificar ou aprofundar hoje?

6 - Como o PT deve encarar as questões da luta de massas e da luta institucional, da luta legal e da luta clandestina?

7 - Também nas resoluções do 5º Encontro, o PT condenou a idéia de partido único, defendendo o pluralismo partidário, a livre expressão de pensamento e organização e o direito de tendência. Como você vê essas questões?

 

Pluralismo, disciplina e internacionalismo

Os três desafios do Partido dos Trabalhadores

Pluralismo, disciplina e internacionalismo

Consideramos muito oportuna a iniciativa de Teoria e Debate de abrir suas páginas para a discussão sobre o caráter do PT.

O debate iniciado por Weffort, Pomar e Tarso Genro no nº04 já nos ajuda como referência de algumas posições existentes. Não tomaremos nenhum dos artigos para contrapor ou referendar seus autores. O leitor saberá distinguir melhor as divergências e a precisão do debate.

Vamos a ele.

O 5º Encontro Nacional

Na nossa avaliação, o 5º Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores foi positivo e significou um avanço: o PT se define de maneira mais clara e explícita como um partido socialista, procurando dizer o que isso significa e deixando de privilegiar expressões mais vagas, como "sociedade sem explorados nem exploradores" ou "sociedade justa e igualitária"; avança também na caracterização do tipo de partido que pretende ser; e inicia a elaboração de uma tática para o atual período e de elementos da estratégia da luta pelo socialismo no Brasil.

Por outro lado, embora esses avanços sejam significativos, aparecem juntos com limitações importantes. Comecemos pela avaliação da tese central aprovada, "Por uma Alternativa Democrática e Popular". Ao mesmo tempo que aponta corretamente para a necessidade de uma política de alianças, à qual o PT até agora era refratário, o faz de forma ambígua.

A proposta majoritária, ao definir sociologicamente o campo de alianças, é genericamente correta. A espinha dorsal do PT assenta-se nos trabalhadores assalariados do campo e da cidade, nos pequenos produtores rurais, nas camadas médias de assalariados urbanos, nos profissionais autônomos. Deve, no entanto, ter a preocupação de incorporar na sua área de influência a pequena produção e o pequeno comércio.

Mas não encontramos representantes políticos desses setores de modo simples e direto: temos de fazer alianças (ou não) com outros partidos. E esses partidos podem ter uma base social da qual nos interessa nos aproximar, mas um projeto, uma direção, que nos impeçam de governar junto com eles.

A posição aprovada no 5º Encontro abre a possibilidade de coligação e aliança com o PDT (Partido Democrático Trabalhista) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), este surgido posteriormente, mas recebendo o mesmo tratamento dado aos trabalhistas. Mas o PDT e o PSDB são forças políticas defensoras do capitalismo, dirigidas por políticos burgueses e, portanto, têm projetos de governo opostos aos nossos. Precedentes de coligações desse tipo poderão nos levar a desconsiderar, na prática, a caracterização que fazemos das classes e de seus comportamentos políticos na formação social brasileira; a estabelecer alianças que contrariem a nossa definição (presente na Resolução do 5º Encontro) de manter a independência política de classe do Partido dos Trabalhadores.

Um partido militante

Quanto à questão do seu caráter e de sua concepção de organização, a caracterização do PT como um partido de massas e de quadros supera a forma deliberadamente desfocada como este debate era travado internamente. Desde o nascimento do PT criara-se a dicotomia: por um lado, um setor majoritário do partido o queria de massas, por outro, grupos que se incorporaram na sua construção, mas preexistiam a ele, queriam "estreitá-lo", como um partido moldado pela interpretação predominante na esquerda do que seria o leninismo.

Nunca pensamos assim. O PT necessita ser um partido de massas, mas também é um partido de vanguarda. Não é contraditório sermos um partido de massas, mas disciplinado, militante e baseado em uma estrutura de nucleação. Sem essas características, jamais seremos um partido capaz de levar à frente qualquer transformação social. Nesse sentido, devemos romper com a discussão teórica, sem fim, sobre o que é ou não o leninismo, e traduzir concretamente para os filiados o que isso significa. Defendemos, portanto, que o filiado do PT seja um contribuinte do partido e educado para a militância em um organismo de base ou frente de trabalho. Sem estas condições, não poderá exercer a plenitude dos seus direitos. Infelizmente, em muitos estados, inclusive em São Paulo - principal base petista -, os Encontros (pré-convenções) não diferem das convenções dos partidos burgueses. Qualquer filiado, militante ou não, exerce o mesmo direito para eleger direções do partido, escolher candidatos e até para definir sua linha política. Filiados são trazidos para votar. Com isso, jamais construiremos um partido de massas, mas sim um partido eleitoral, frouxo, e que tende a transformar as convenções em algo despolitizado e facilmente manipulável.

Estabelecer requisitos aos filiados para o exercício de seus direitos não é contraditório com o partido de massas que queremos, exigência para qualquer transformação do Brasil. E necessário portanto que o nosso Regimento Interno - e, com a nova Constituição, o próprio Estatuto - contemple estas questões, agora sem os limites da Lei Orgânica dos Partidos.

A experiência do Rio Grande do Sul mostra que isso é possível e não estreita o partido, mas o qualifica. Hoje, em todas as dez zonais da capital, ser contribuinte para exercer o voto nas decisões internas é um critério já incorporado, que ninguém mais contesta. A prática estende-se para a região metropolitana e para as maiores cidades. Em breve, temos certeza, isso será observado em todo o estado. Nesta eleição, muitos companheiros já se conscientizaram de que esses critérios de contribuição, de militância, são decisivos para impedir o oportunismo e o arrivismo, que incham legendas em crescimento como a do PT, que é cada vez mais atrativa.

Esta questão está estreitamente relacionada com uma grande insuficiência ainda não resolvida, a da nucleação. Todos são favoráveis aos núcleos, talvez seja esta a maior unanimidade dentro do partido. Por que, então, os núcleos não proliferam, não se mantém? Por que são tão escassos?

O núcleo se justifica apenas como instrumento para o partido intervir de maneira organizada nas frentes de massas. Se não for instância de exercício da soberania - isto é, se não for um elemento básico de ação e deliberação no partido -, tenderá inevitavelmente a ficar no papel. Revela-se, neste ponto, uma das contradições de muitos companheiros dirigentes. Defendem ardorosamente a nucleação (o que é correto), mas em nome de um partido de massas mantêm as instâncias de deliberação frouxas e sem critérios, com encontros em que todos votam, independentemente de qualquer grau de compromisso e participação. Enquanto perdurar esta contradição, os núcleos do PT serão débeis ou quase inexistentes - e nem por isso seremos um partido de massas.

A nova Constituição garante o direito de elaborarmos novos estatutos; com isso, foi eliminado um dos empecilhos para resolvermos esta contradição. Certamente teremos uma calorosa polêmica pela frente. Estaremos defendendo o poder aos núcleos, e temos certeza de que isso será a garantia para o PT unificar a sua intervenção nas frentes de massas.

A democracia no partido

A questão da democracia é inerente ao socialismo; sem ela sua construção é impossível. O partido deve ser também democrático. Desde o seu nascimento, o PT conseguiu superar talvez a pior característica dos partidos tradicionais da esquerda brasileira: os PCs, em nome de um falso centralismo democrático, sempre defenderam um modelo monolítico de partido. Romper com esta tradição é uma das maiores virtudes do PT e, temos certeza, a garantia de seu crescimento e dos acertos que o marcaram até aqui. O direito de tendência, a mais profunda democracia, e o direito de publicar as várias posições e propostas foram decisivos para o PT ser hoje uma experiência singular na história do movimento operário.

O 5º Encontro, no entanto, ainda não incorporou plenamente os requisitos que garantem essa democracia. Escudada em argumentos marcados pelo sectarismo, a corrente hoje majoritária manteve o critério de que a participação das posições minoritárias nas instâncias executivas de direção é decidida pela maioria. Isso levou muitas vezes ao alijamento das minorias das executivas, nos níveis nacional, estadual, municipal ou zonal.

Esta posição é equivocada porque, além de antidemocrática, apóia-se numa falsa argumentação. A posição majoritária não se reconhece como mais uma tendência dentro do partido, mas apresenta-se como sua posição oficial, que arbitra quem pode e quem não pode fazer parte das executivas.

Desde a fundação, defendemos o PT como partido; nós o construímos, e mesmo assim somos alvo de argumentos como "partido dentro do partido" e "grupos que querem fazer um partido frentista". A plena democracia partidária pressupõe o direito de tendência; com fidelidade às posições aprovadas pelo partido, garantindo a unidade de ação.

Um PT pluralista

A discussão sobre o caráter do PT não pode evitar a polêmica tradicional na esquerda sobre a tese do partido único da classe operária. Uma concepção democrática de partido rejeita esta visão, com o claro reconhecimento da diversidade no interior da classe operária e da diversidade no interior de um bloco histórico revolucionário. Esta concepção de pluralidade no interior da classe operária, de diversidade política legítima, é a base para uma unificação conseqüente da classe operária e para uma compreensão democrática das relações internas a um partido político.

Defendemos a concepção de um partido político socialista plural. Não só no Brasil, mas na maioria dos países, um partido socialista revolucionário só pode resultar de um esforço em unificar distintas correntes políticas. Nossa experiência petista confirma esta tese: o PT não seria o que é sem ele não convivessem sindicalistas, militantes de esquerda de origens diversas, militantes do movimento popular, membros das pastorais da Igreja Católica e setores progressistas de outras crenças religiosas.

A defesa da pluralidade no interior do PT não é contraditória com a necessidade de uma ação política unificada e tampouco significa fazer do partido uma federação de frações. A diversidade interna, que se expressa em um rico e permanente debate que vivemos no PT, deve se combinar com a unidade na ação, com o respeito às decisões majoritárias, o cumprimento das resoluções congressuais.

A questão do parlamentarismo

Outro sério problema que enfrentamos, e que se aguçará com os resultados eleitorais de novembro, é o peso parlamentar dentro do partido. Elegeremos milhares de vereadores, em breve teremos bancadas estaduais e federal com maior peso do que atualmente. Para o PT, isto não pode ser apenas um indicador otimista de crescimento, mas tem de ser também um dado de preocupação.

O parlamento burguês amortece, corrompe e mina partidos que se coloquem no campo anticapitalista. Sabemos que essa é uma frente de luta que precisa ser respondida, mas a tensão e os riscos que um desvio eleitoral-parlamentarista carrega são enormes para um partido como o PT. Se não endurecermos o controle político, financeiro e material sobre nossos parlamentares, o PT sofrerá deserções, abandonos e indisciplinas.

O controle do partido deve se estender também sobre os "aparelhos" vinculados à ação parlamentar. São funcionários, assessores, cargos de confiança etc., com grandes desníveis salariais. Isto, sem uma administração firme do partido, pode transformar-se em vantagens, privilégios, diferenças materiais que tendem a se consolidar. São os germes da burocratização, que liquidou o caráter revolucionário dos partidos social-democratas de base operária e sindical na Europa, no início do século.

Ao ganharmos prefeituras, o problema adquire até maior dimensão, pois a relação política com a direção partidária correspondente torna-se mais difícil. Basta citar os exemplos de Diadema, Fortaleza e o recente episódio de indisciplina de um deputado federal na votação da Carta Constitucional para ilustrar o que será a nova realidade com uma grande votação do PT em novembro. Nosso partido deve se armar urgentemente com política e estatutos para o novo desafio. Acabar com a frouxidão orgânica, multiplicar a formação política, disciplinar claramente as relações partido-parlamento.

Marxismo e ecletismo

O reconhecimento da necessidade do pluralismo leva-nos a valorizar essa enorme e diferenciada gama de experiências distintas, de variados níveis de consciência, presente no partido. No entanto, a defesa desta diversidade não pode impedir a busca do aprofundamento das definições políticas no PT. Há um sério risco de que, em nome do combate a um ranço doutrinarista, que exigiria do PT uma definição pelo "marxismo-leninismo" de forma apressada, escorreguemos para um posicionamento eclético.

O "marxismo-leninismo", nas versões stalinista e maoísta que se desenvolveram no Brasil, realmente não corresponde a um bom modelo. Não teríamos nada a ganhar com ele. Não podemos, entretanto, em nome desta trágica herança, jogar a água suja e a criança para fora da bacia. Definição programática e ideológica não é sinônimo de postura estreita e sectária.

Se tomamos a sério nossa intenção de construir um partido capaz de desempenhar um papel dirigente na luta pelo socialismo no Brasil, é claro que não poderemos nos furtar a muitas definições. Ao longo deste artigo citamos várias delas: o aprofundamento de nossa concepção de partido e, a partir dela, o reforço de nossa organização; a definição do lugar que as lutas eleitorais e parlamentares ocupam em nossa estratégia; para não falar na necessidade de aprofundar muito mais nossa concepção de socialismo. Todas estas definições têm de se referenciar em uma determinada compreensão da realidade e na experiência histórica.

O marxismo constitui-se justamente na nossa referência fundamental para tratar estas questões, uma ferramenta para a luta política e ideológica construída pelos trabalhadores. A história do movimento operário e a do socialismo estão marcadas por um século e meio de lutas sociais e de combates político-ideológicos de grande riqueza, que não temos o direito de desconhecer.

Por outro lado, é fundamental acentuarmos o fato de que o marxismo é uma realidade em permanente desenvolvimento, que vai evoluindo com as mudanças na sociedade e as experiências de luta. E em cada país o marxismo tem de incorporar profundamente a realidade e as tradições nacionais. Um dos aspectos mais ricos do sandinismo é justamente o fato de ser um marxismo nicaragüense. E que integra perfeitamente uma questão decisiva para o nosso continente, a participação dos cristãos.

No Brasil, o acesso, o conhecimento e a absorção dessas experiências são profundamente limitados. O PT sofre diretamente as conseqüências disto. Um problema chave para nós é justamente ampliar o internacionalismo do PT, o intercâmbio com as correntes classistas e revolucionárias do mundo e, em particular, da América Latina. Temos de revalorizar a questão da organização internacional dos trabalhadores, a rica experiência das Internacionais.

Não queremos um "marxismo oficial". Mas em nome de uma crítica a um pseudomarxismo rançoso e dogmático, não podemos desqualificar a importância do debate ideológico e teórico e o esforço para que o PT aumente o seu nível de definição política. Não desenvolveremos a consciência revolucionária de que precisamos a partir de um avanço espontâneo das experiências do movimento popular, da militância sindical, das comunidades eclesiais de base. Essa consciência será fruto tanto das experiências quanto do enfrentamento ideológico fraterno, sensível às particularidades da singular experiência petista, mas rigoroso na defesa dos princípios que a herança do movimento operário mundial nos legou. A independência de classe dos trabalhadores, a democracia socialista, a democracia interna na construção partidária, a luta pelo internacionalismo são elementos centrais dessa herança decisivos para que o PT se transforme em um verdadeiro partido de massas, democrático, socialista e revolucionário.

Raul Pont é presidente do PT/RS e deputado estadual

Os três desafios do Partido dos Trabalhadores

A rigor não se pode discutir partido sem discutir caminhos possíveis de uma transformação social. Antes de qualquer coisa cabe a pergunta: partido para quê? A visão de revolução, para nós pelo menos, deve preceder (ou acompanhar) a de partido (revolucionário).

Discutir o Partido dos Trabalhadores como partido com devir revolucionário é discutir a revolução social no Brasil entendendo por revolução não apenas a tomada do poder, mas a construção de um novo poder e de uma nova hegemonia dos trabalhadores. Para desenvolver plenamente o seu caráter revolucionário, o Partido dos Trabalhadores terá três desafios a enfrentar.

O desafio político

O principal desafio do PT é um desafio político: como contribuir decisivamente para alterar a correlação de forças na sociedade brasileira, a favor dos trabalhadores, criando condições para a construção do socialismo? Em outras palavras: como ser agente - e dirigente - de uma revolução socialista no Brasil?

Este primeiro desafio, com o qual o PT, por vocação, está confrontado desde o seu nascimento, envolve muitas componentes: quer a elaboração teórica (a teoria da revolução brasileira), quer a formulação política (a estratégia e a tática), quer a intervenção no movimento social e institucional (a implementação da tática).

A componente teórica, embora ainda mal discutida no PT, não é de menor importância no enfrentamento deste desafio político. Só alguém muito impregnado da ideologia do chamado socialismo científico não perceberia que a teoria revolucionária de que dispomos é perfeitamente insuficiente para "guiar a revolução" numa sociedade complexa como a brasileira. Nunca é demais lembrar que na história jamais ocorreu uma revolução socialista - nem democrático-popular - numa sociedade que como a nossa tivesse alcançado tal nível de desenvolvimento das forças produtivas.

Os rudimentos teóricos avançados por Lênin em 19151, a partir das primeiras sistematizações kautskianas do início do século, não dão conta de estabelecer condições para a transformação socialista, nem mesmo para a "tomada do poder", no Estado capitalista desenvolvido. Não é mais possível, com base em sistematizações tão gerais, ficar remoendo velhas fórmulas simplificadoras do Estado como mero "comitê executivo das classes dominantes" e de sua possível destruição pela via clássica da instalação de um pólo competitivo de poder.

O fato é que a tal "teoria marxista-leninista da revolução proletária" não existe como teoria geral. Na verdade, não sabemos como "fazer a revolução" em sociedades complexas. Ora, sem pelo menos vislumbrar um possível (e plausível) caminho da transformação social no Brasil, torna-se ainda mais complexa a tarefa de saber que tipo de partido deveria ser construído como instrumento dessa transformação.

Dependente deste componente teórico temos uma outro, de caráter político-estratégico, que diz respeito ao caminho da transformação socialista no país e às possibilidades reais de desencadear a insurgência dos "de baixo" para abrir este caminho. Não é uma questão simples, num período em que a burguesia vai eliminando os bolsões potenciais de revolta social em nosso país, integrando à sociedade de consumo as altas camadas do operariado urbano-industrial, tentando isolar as iniciativas revolucionárias e recuperar para o jogo político institucional as organizações de representação e de luta dos trabalhadores. O quadro é mais complexo do que poderia sugerir uma leitura apenas quantitativa do aumento do número de greves, de movimentos de resistência ou de ocupação de terras, de sindicatos cutistas, de filiados, de votos, de parlamentares e executivos do PT. Mas é para este quadro complexo que estamos chamados a construir uma estratégia de conquista do socialismo articulável a táticas com aplicabilidade nas conjunturas atuais. Não se pode deixar de reconhecer os progressos que realizamos recentemente neste sentido. No 5º Encontro Nacional, bem como em todo o processo de preparação que o precedeu, avançamos significativamente na caracterização do PT como vanguarda socialista de massas e esboçamos linhas gerais de estratégia, de tática e de construção partidária coerentes com esta caracterização. O caminho para o tratamento mais aprofundado dessas questões está aberto, portanto.

O desafio ideológico

Caracterizar o PT como partido marxista-leninista não é realizar uma definição prematura. Pelo contrário, trata-se de uma definição anacrônica. Aqui tem razão Weffort, quando lembra que "a expressão marxismo-leninismo é coisa do período de Stálin que foi quem codificou o que se chama por aí de princípios do leninismo2. Na verdade, a ideologização doutrinária do leninismo foi obra da 3ª Internacional, em cuja tradição fomos formados e a cuja herança ainda não renunciamos inteiramente.

O segundo grande desafio do PT é o de romper definitivamente com essa tradição dogmática e autoritária, não somente no plano político - neste sentido, a própria existência do PT como partido de classe independente da burguesia já é sinal deste rompimento - mas também no plano ideológico, criando novos referenciais culturais e ético-políticos de prática revolucionária e de comportamento social; em suma: "inventando" uma nova tradição da esquerda no país.

Só não vê quem não quer: vivemos uma crise ideológica do movimento revolucionário. Mas esta crise não é da "fé" revolucionária das pessoas nem do "fermento" marxista, senão das maneiras como esta fé foi até agora vivida e como este fermento foi empregado. É uma crise da roupagem ideológica que reveste a mensagem de transformação social, dos padrões de comportamento da militância dos nossos modelos e dos nossos velhos mitos (como o da implacabilidade da história e de suas "leis", o da marcha inexorável dos povos rumo ao socialismo, da existência de uma "política científica" por meio da qual se poderia inferir o futuro da ordem presente, de um tipo de partido capaz de funcionar como a consciência externa das pessoas, levando-as à revolução etc.). Mitos em que ninguém acredita mais.

As novas gerações não se emocionam com os discursos revolucionários tradicionais e não conseguimos empolgar nem mesmo o grosso de nossa militância pela revolução, influenciando-a a viver e a agir nesta expectativa. O resultado é que - a não ser para uns poucos, que ainda carregam um conjunto de "verdades" na cabeça - a vida partidária vai se tornando desinteressante e insossa. O partido vira uma espécie de estágio de carreira, de instrumento da ambição pessoal, de lugar onde as pessoas entram para satisfazer seus propósitos de ocupação de posições que lhe confiram poder e prestígio na sociedade burguesa

O desafio ideológico a que nos referimos revela-se também aqui: em ter uma resposta revolucionária para a crise ideológica do movimento revolucionário. De conseguir empolgar a vanguarda social dos trabalhadores pela militância política e os militantes pela construção da nova sociedade, animando-os a serem precursores do homem novo e da nova mulher, a tomarem para si novos referenciais éticos na luta política contra a dominação de classe. Mas é evidente que jamais conseguiremos dar esta resposta sem romper com os velhos esquemas autoritários de organização e de atuação partidária, e sem abandonarmos as matrizes ideológicas em que estão assentados estes esquemas. Trata-se de reorientação global em termos ideológicos, capaz de abrir um novo caminho para a reflexão e a prática políticas de transformação social.

Ao contrário do que poderia parecer há alguns anos, essa "reorientação" ou esse "novo caminho" não é um tema tão tranqüilo no interior do PT. Pois o núcleo de dirigentes intelectuais, com participação política anterior, que se revelou mais avançado politicamente dentro da tendência majoritária do partido, é também, ao que tudo indica, o mais refratário ao reexame dos fundamentos das concepções tradicionais de revolução e de partido. Os recentes avanços deste setor no campo político não são acompanhados por progressos correspondentes no campo ideológico, da visão de mundo, da concepção de relacionamento entre companheiros e, principalmente, da idéia e da prática da democracia interna. É assim que muitos desses nossos dirigentes ainda carregam na cabeça idéias de unipartidarismo (ou de univocidade partidária: a cada classe o seu partido); outros estão aferrados à concepção monolítica de partido (quer dizer à idéia de tendência única da direção; ou de direito de divergir mas não de se organizar como tendência, a não ser às vésperas dos Encontros); por último, talvez haja os que ainda pretendam reutilizar o modelo clássico da "roda dentada" ou da "correia de transmissão" nas relações do partido com o movimento social.

A assunção destes setores a postos importantes na direção do partido, trazendo um avanço político inegável (como atestam as resoluções do 5º Encontro Nacional), significou também um certo deslocamento do PT rumo a uma posição mais conservadora com relação às iniciativas de se estabelecerem novas premissas teóricas para a reflexão e a prática política. Contribuições importantes como as dos chamados autonomistas, que desenvolviam uma crítica fundamentada aos modelos de revolução e de partido da 3ª Internacional, foram sendo colocadas de lado, aparecendo em seu lugar formulações mais ortodoxas e, diga-se de passagem, de menor intimidade com o pensamento e o debate filosófico recentes da esquerda. No plano das relações internacionais do partido também se refletiu esse deslocamento conservador, como revelam uma simpatia indisfarçável pelo castrismo e uma priorização de relacionamento com países burocráticos do Leste, como a República Democrática Alemã, caracterizados como socialistas.

Com tudo isso, avançamos na formulação do objetivo socialista a atingir e na caracterização do PT enquanto instrumento voltado para a conquista deste objetivo. Mas estacionamos na elaboração de um novo pensamento da esquerda brasileira e podemos vir a regredir no campo da construção partidária democrática e das relações do partido com o movimento social.

O desafio orgânico

É no plano orgânico, da construção e da organização partidárias, que se manifesta o outro grande desafio do PT. Poderia ser resumido na seguinte pergunta: como construir um partido de tipo novo, compatível com a democracia e com a autonomia, que seja instrumento privilegiado de construção de um novo poder e de uma nova hegemonia dos trabalhadores?

É claro que este desafio orgânico está intimamente relacionado com o desafio ideológico abordado acima. Pois a tradição com a qual precisamos romper é, primeiramente, uma tradição de construção e gestão partidária baseada na repetição de um modelo de partido exportado em série pela 3ª Internacional: autoritário, monolítico, único, intervencionista e substituidor do movimento social, politicista e exclusivamente voltado para uma "tomada do poder" absolutamente improvável, nos moldes em que se propõe, em Estados capitalistas complexos. Levei vinte anos para descobrir que este tipo de partido - como de resto qualquer outro tipo de organização monolítica - não era, do ponto de vista da democracia, um partido, senão dois; ou melhor: um partido dentro do partido, onde a direção se organizava autonomamente e atuava como tendência única (ou como "partido interno").

Romper com essa tradição, lançando os fundamentos de uma matriz ideológica e política de construção partidária, constitui a grande tarefa histórica do PT (e, talvez, a sua grande contribuição para o movimento revolucionário mundial).

No momento atual temos dificuldades orgânicas concretas a superar, e estas dificuldades já foram diagnosticadas pelo 5º Encontro Nacional.3 Mas esses problemas de organização (ou desorganização) do PT, são de menor dimensão e de menor importância frente às grandes (e novas) questões colocadas pela própria originalidade de nossa experiência.

Em primeiro lugar, como combinar, numa mesma estrutura orgânica, a dupla natureza de partido de massas com a de partido de militância organizada que nos caracteriza? Ou como combinar a participação massiva dos filiados com uma participação mais estruturada e militante, por meio dos núcleos? Ou ainda, como conferir a estas bases organizadas por núcleos uma participação diferencial na vida do partido e uma parcela maior de poder na sua estrutura sem substituir a participação da massa dos filiados (independentemente da sua nucleação)? Por último: como ser um partido democrático de massas, que produza quadros dirigentes socialistas revolucionários, fora de um período revolucionário ou pré-revolucionário da luta de classes, em que a maioria dessas massas - mesmo as que optam partido - não se coloca ainda a questão do poder e do socialismo?

Em segundo lugar, como combinar o necessário centralismo de um partido dirigente com a democracia interna (sem a qual fica comprometido nosso projeto orgânico de um novo tipo de partido, aberto e de massas)? Questão que se desdobra em várias outras: como assegurar a mais ampla liberdade de expressão, garantindo a unidade de ação, sem criar uma "interpretação oficial", uma "linha oficial" e sem atribuir o caráter de verdade à versão da maioria? Como ter uma política de quadros - de seleção, formação, acompanhamento e profissionalização de dirigentes - que não substitua o processo eletivo e leve em conta a revogabilidade e a necessidade de rotatividade nos cargos? Como praticar o direito de tendência com isonomia (sem fazer com que a tendência majoritária se confunda com a direção ou com o próprio partido, acarretando a desigualdade de condições nas disputas internas)?

Em terceiro lugar, como ser um partido de intervenção - organizada, no movimento social e institucional - sem cair no intervencionismo que não leva em conta a necessidade da autonomia das organizações dos trabalhadores no processo de conquista e construção do socialismo? E como combinar a necessidades de unificação da intervenção partidária sem a qual o partido está se comportando como uma frente - com a participação proporcional, qualificada nos cargos, de todas as tendências que atinjam a representação mínima nas disputas internas, para a formação de chapas petistas que concorrerão à direção de entidades do movimento social - sem a qual o partido, inevitavelmente, se fracionará?

Em quarto lugar, como estruturar o partido para combinar a luta institucional com a luta de massas (e a luta legal com a luta clandestina) em conjunturas de descenso do movimento de massas (e nas quais a questão do poder está colocada)? E, com esta questão, voltamos ao nosso primeiro e principal desafio: o desafio político de ter uma estratégia revolucionária articulável a táticas possíveis (quer dizer, de possível implementação) no atual período da luta de classes no Brasil. Porque o problema não está em preferir, por princípio ou a priori, esta ou aquela forma ou campo de luta. Em determinadas conjunturas, a luta institucional pode ter um significado revolucionário maior do que tentativas de erguer artificialmente um movimento de massas. O problema está em não perder a perspectiva revolucionária de organizar as massas para enfrentamentos decisivos, à luz de uma estratégia de destruição da supremacia burguesa no país.

Augusto de Franco é membro do Diretório Nacional do PT.

Notas

1- Lênin, V. I. A Falência da II Internacional.

2 -Teoria e Debate, nº 4. pp. 32 e ss.

3 - "Resoluções Políticas do 5º Encontro Nacional". pp. 199-242.

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