Consideramos muito oportuna a iniciativa de Teoria e Debate de abrir suas páginas para a discussão sobre o caráter do PT.
O debate iniciado por Weffort, Pomar e Tarso Genro no nº04 já nos ajuda como referência de algumas posições existentes. Não tomaremos nenhum dos artigos para contrapor ou referendar seus autores. O leitor saberá distinguir melhor as divergências e a precisão do debate.
Vamos a ele.
O 5º Encontro Nacional
Na nossa avaliação, o 5º Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores foi positivo e significou um avanço: o PT se define de maneira mais clara e explícita como um partido socialista, procurando dizer o que isso significa e deixando de privilegiar expressões mais vagas, como "sociedade sem explorados nem exploradores" ou "sociedade justa e igualitária"; avança também na caracterização do tipo de partido que pretende ser; e inicia a elaboração de uma tática para o atual período e de elementos da estratégia da luta pelo socialismo no Brasil.
Por outro lado, embora esses avanços sejam significativos, aparecem juntos com limitações importantes. Comecemos pela avaliação da tese central aprovada, "Por uma Alternativa Democrática e Popular". Ao mesmo tempo que aponta corretamente para a necessidade de uma política de alianças, à qual o PT até agora era refratário, o faz de forma ambígua.
A proposta majoritária, ao definir sociologicamente o campo de alianças, é genericamente correta. A espinha dorsal do PT assenta-se nos trabalhadores assalariados do campo e da cidade, nos pequenos produtores rurais, nas camadas médias de assalariados urbanos, nos profissionais autônomos. Deve, no entanto, ter a preocupação de incorporar na sua área de influência a pequena produção e o pequeno comércio.
Mas não encontramos representantes políticos desses setores de modo simples e direto: temos de fazer alianças (ou não) com outros partidos. E esses partidos podem ter uma base social da qual nos interessa nos aproximar, mas um projeto, uma direção, que nos impeçam de governar junto com eles.
A posição aprovada no 5º Encontro abre a possibilidade de coligação e aliança com o PDT (Partido Democrático Trabalhista) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), este surgido posteriormente, mas recebendo o mesmo tratamento dado aos trabalhistas. Mas o PDT e o PSDB são forças políticas defensoras do capitalismo, dirigidas por políticos burgueses e, portanto, têm projetos de governo opostos aos nossos. Precedentes de coligações desse tipo poderão nos levar a desconsiderar, na prática, a caracterização que fazemos das classes e de seus comportamentos políticos na formação social brasileira; a estabelecer alianças que contrariem a nossa definição (presente na Resolução do 5º Encontro) de manter a independência política de classe do Partido dos Trabalhadores.
Um partido militante
Quanto à questão do seu caráter e de sua concepção de organização, a caracterização do PT como um partido de massas e de quadros supera a forma deliberadamente desfocada como este debate era travado internamente. Desde o nascimento do PT criara-se a dicotomia: por um lado, um setor majoritário do partido o queria de massas, por outro, grupos que se incorporaram na sua construção, mas preexistiam a ele, queriam "estreitá-lo", como um partido moldado pela interpretação predominante na esquerda do que seria o leninismo.
Nunca pensamos assim. O PT necessita ser um partido de massas, mas também é um partido de vanguarda. Não é contraditório sermos um partido de massas, mas disciplinado, militante e baseado em uma estrutura de nucleação. Sem essas características, jamais seremos um partido capaz de levar à frente qualquer transformação social. Nesse sentido, devemos romper com a discussão teórica, sem fim, sobre o que é ou não o leninismo, e traduzir concretamente para os filiados o que isso significa. Defendemos, portanto, que o filiado do PT seja um contribuinte do partido e educado para a militância em um organismo de base ou frente de trabalho. Sem estas condições, não poderá exercer a plenitude dos seus direitos. Infelizmente, em muitos estados, inclusive em São Paulo - principal base petista -, os Encontros (pré-convenções) não diferem das convenções dos partidos burgueses. Qualquer filiado, militante ou não, exerce o mesmo direito para eleger direções do partido, escolher candidatos e até para definir sua linha política. Filiados são trazidos para votar. Com isso, jamais construiremos um partido de massas, mas sim um partido eleitoral, frouxo, e que tende a transformar as convenções em algo despolitizado e facilmente manipulável.
Estabelecer requisitos aos filiados para o exercício de seus direitos não é contraditório com o partido de massas que queremos, exigência para qualquer transformação do Brasil. E necessário portanto que o nosso Regimento Interno - e, com a nova Constituição, o próprio Estatuto - contemple estas questões, agora sem os limites da Lei Orgânica dos Partidos.
A experiência do Rio Grande do Sul mostra que isso é possível e não estreita o partido, mas o qualifica. Hoje, em todas as dez zonais da capital, ser contribuinte para exercer o voto nas decisões internas é um critério já incorporado, que ninguém mais contesta. A prática estende-se para a região metropolitana e para as maiores cidades. Em breve, temos certeza, isso será observado em todo o estado. Nesta eleição, muitos companheiros já se conscientizaram de que esses critérios de contribuição, de militância, são decisivos para impedir o oportunismo e o arrivismo, que incham legendas em crescimento como a do PT, que é cada vez mais atrativa.
Esta questão está estreitamente relacionada com uma grande insuficiência ainda não resolvida, a da nucleação. Todos são favoráveis aos núcleos, talvez seja esta a maior unanimidade dentro do partido. Por que, então, os núcleos não proliferam, não se mantém? Por que são tão escassos?
O núcleo se justifica apenas como instrumento para o partido intervir de maneira organizada nas frentes de massas. Se não for instância de exercício da soberania - isto é, se não for um elemento básico de ação e deliberação no partido -, tenderá inevitavelmente a ficar no papel. Revela-se, neste ponto, uma das contradições de muitos companheiros dirigentes. Defendem ardorosamente a nucleação (o que é correto), mas em nome de um partido de massas mantêm as instâncias de deliberação frouxas e sem critérios, com encontros em que todos votam, independentemente de qualquer grau de compromisso e participação. Enquanto perdurar esta contradição, os núcleos do PT serão débeis ou quase inexistentes - e nem por isso seremos um partido de massas.
A nova Constituição garante o direito de elaborarmos novos estatutos; com isso, foi eliminado um dos empecilhos para resolvermos esta contradição. Certamente teremos uma calorosa polêmica pela frente. Estaremos defendendo o poder aos núcleos, e temos certeza de que isso será a garantia para o PT unificar a sua intervenção nas frentes de massas.
A democracia no partido
A questão da democracia é inerente ao socialismo; sem ela sua construção é impossível. O partido deve ser também democrático. Desde o seu nascimento, o PT conseguiu superar talvez a pior característica dos partidos tradicionais da esquerda brasileira: os PCs, em nome de um falso centralismo democrático, sempre defenderam um modelo monolítico de partido. Romper com esta tradição é uma das maiores virtudes do PT e, temos certeza, a garantia de seu crescimento e dos acertos que o marcaram até aqui. O direito de tendência, a mais profunda democracia, e o direito de publicar as várias posições e propostas foram decisivos para o PT ser hoje uma experiência singular na história do movimento operário.
O 5º Encontro, no entanto, ainda não incorporou plenamente os requisitos que garantem essa democracia. Escudada em argumentos marcados pelo sectarismo, a corrente hoje majoritária manteve o critério de que a participação das posições minoritárias nas instâncias executivas de direção é decidida pela maioria. Isso levou muitas vezes ao alijamento das minorias das executivas, nos níveis nacional, estadual, municipal ou zonal.
Esta posição é equivocada porque, além de antidemocrática, apóia-se numa falsa argumentação. A posição majoritária não se reconhece como mais uma tendência dentro do partido, mas apresenta-se como sua posição oficial, que arbitra quem pode e quem não pode fazer parte das executivas.
Desde a fundação, defendemos o PT como partido; nós o construímos, e mesmo assim somos alvo de argumentos como "partido dentro do partido" e "grupos que querem fazer um partido frentista". A plena democracia partidária pressupõe o direito de tendência; com fidelidade às posições aprovadas pelo partido, garantindo a unidade de ação.
Um PT pluralista
A discussão sobre o caráter do PT não pode evitar a polêmica tradicional na esquerda sobre a tese do partido único da classe operária. Uma concepção democrática de partido rejeita esta visão, com o claro reconhecimento da diversidade no interior da classe operária e da diversidade no interior de um bloco histórico revolucionário. Esta concepção de pluralidade no interior da classe operária, de diversidade política legítima, é a base para uma unificação conseqüente da classe operária e para uma compreensão democrática das relações internas a um partido político.
Defendemos a concepção de um partido político socialista plural. Não só no Brasil, mas na maioria dos países, um partido socialista revolucionário só pode resultar de um esforço em unificar distintas correntes políticas. Nossa experiência petista confirma esta tese: o PT não seria o que é sem ele não convivessem sindicalistas, militantes de esquerda de origens diversas, militantes do movimento popular, membros das pastorais da Igreja Católica e setores progressistas de outras crenças religiosas.
A defesa da pluralidade no interior do PT não é contraditória com a necessidade de uma ação política unificada e tampouco significa fazer do partido uma federação de frações. A diversidade interna, que se expressa em um rico e permanente debate que vivemos no PT, deve se combinar com a unidade na ação, com o respeito às decisões majoritárias, o cumprimento das resoluções congressuais.
A questão do parlamentarismo
Outro sério problema que enfrentamos, e que se aguçará com os resultados eleitorais de novembro, é o peso parlamentar dentro do partido. Elegeremos milhares de vereadores, em breve teremos bancadas estaduais e federal com maior peso do que atualmente. Para o PT, isto não pode ser apenas um indicador otimista de crescimento, mas tem de ser também um dado de preocupação.
O parlamento burguês amortece, corrompe e mina partidos que se coloquem no campo anticapitalista. Sabemos que essa é uma frente de luta que precisa ser respondida, mas a tensão e os riscos que um desvio eleitoral-parlamentarista carrega são enormes para um partido como o PT. Se não endurecermos o controle político, financeiro e material sobre nossos parlamentares, o PT sofrerá deserções, abandonos e indisciplinas.
O controle do partido deve se estender também sobre os "aparelhos" vinculados à ação parlamentar. São funcionários, assessores, cargos de confiança etc., com grandes desníveis salariais. Isto, sem uma administração firme do partido, pode transformar-se em vantagens, privilégios, diferenças materiais que tendem a se consolidar. São os germes da burocratização, que liquidou o caráter revolucionário dos partidos social-democratas de base operária e sindical na Europa, no início do século.
Ao ganharmos prefeituras, o problema adquire até maior dimensão, pois a relação política com a direção partidária correspondente torna-se mais difícil. Basta citar os exemplos de Diadema, Fortaleza e o recente episódio de indisciplina de um deputado federal na votação da Carta Constitucional para ilustrar o que será a nova realidade com uma grande votação do PT em novembro. Nosso partido deve se armar urgentemente com política e estatutos para o novo desafio. Acabar com a frouxidão orgânica, multiplicar a formação política, disciplinar claramente as relações partido-parlamento.
Marxismo e ecletismo
O reconhecimento da necessidade do pluralismo leva-nos a valorizar essa enorme e diferenciada gama de experiências distintas, de variados níveis de consciência, presente no partido. No entanto, a defesa desta diversidade não pode impedir a busca do aprofundamento das definições políticas no PT. Há um sério risco de que, em nome do combate a um ranço doutrinarista, que exigiria do PT uma definição pelo "marxismo-leninismo" de forma apressada, escorreguemos para um posicionamento eclético.
O "marxismo-leninismo", nas versões stalinista e maoísta que se desenvolveram no Brasil, realmente não corresponde a um bom modelo. Não teríamos nada a ganhar com ele. Não podemos, entretanto, em nome desta trágica herança, jogar a água suja e a criança para fora da bacia. Definição programática e ideológica não é sinônimo de postura estreita e sectária.
Se tomamos a sério nossa intenção de construir um partido capaz de desempenhar um papel dirigente na luta pelo socialismo no Brasil, é claro que não poderemos nos furtar a muitas definições. Ao longo deste artigo citamos várias delas: o aprofundamento de nossa concepção de partido e, a partir dela, o reforço de nossa organização; a definição do lugar que as lutas eleitorais e parlamentares ocupam em nossa estratégia; para não falar na necessidade de aprofundar muito mais nossa concepção de socialismo. Todas estas definições têm de se referenciar em uma determinada compreensão da realidade e na experiência histórica.
O marxismo constitui-se justamente na nossa referência fundamental para tratar estas questões, uma ferramenta para a luta política e ideológica construída pelos trabalhadores. A história do movimento operário e a do socialismo estão marcadas por um século e meio de lutas sociais e de combates político-ideológicos de grande riqueza, que não temos o direito de desconhecer.
Por outro lado, é fundamental acentuarmos o fato de que o marxismo é uma realidade em permanente desenvolvimento, que vai evoluindo com as mudanças na sociedade e as experiências de luta. E em cada país o marxismo tem de incorporar profundamente a realidade e as tradições nacionais. Um dos aspectos mais ricos do sandinismo é justamente o fato de ser um marxismo nicaragüense. E que integra perfeitamente uma questão decisiva para o nosso continente, a participação dos cristãos.
No Brasil, o acesso, o conhecimento e a absorção dessas experiências são profundamente limitados. O PT sofre diretamente as conseqüências disto. Um problema chave para nós é justamente ampliar o internacionalismo do PT, o intercâmbio com as correntes classistas e revolucionárias do mundo e, em particular, da América Latina. Temos de revalorizar a questão da organização internacional dos trabalhadores, a rica experiência das Internacionais.
Não queremos um "marxismo oficial". Mas em nome de uma crítica a um pseudomarxismo rançoso e dogmático, não podemos desqualificar a importância do debate ideológico e teórico e o esforço para que o PT aumente o seu nível de definição política. Não desenvolveremos a consciência revolucionária de que precisamos a partir de um avanço espontâneo das experiências do movimento popular, da militância sindical, das comunidades eclesiais de base. Essa consciência será fruto tanto das experiências quanto do enfrentamento ideológico fraterno, sensível às particularidades da singular experiência petista, mas rigoroso na defesa dos princípios que a herança do movimento operário mundial nos legou. A independência de classe dos trabalhadores, a democracia socialista, a democracia interna na construção partidária, a luta pelo internacionalismo são elementos centrais dessa herança decisivos para que o PT se transforme em um verdadeiro partido de massas, democrático, socialista e revolucionário.
Raul Pont é presidente do PT/RS e deputado estadual