EM DEBATE

A introdução, há mais de uma década em nosso país, de novas tecnologias, impõe a reorganização do trabalho, dos padrões de qualidade e da produtividade exigidos pelos mercados interno e externo. Para que possamos ser competitivos, é preciso mudar as relações de trabalho. E, por fim, o quadro da crise econômica determina o aguçamento das divergências entre capital e trabalho, inclusive no que diz respeito à definição de funções, suas relações entre si e com a Nação, instituições do Estado e sociedade civil.

Este é o cenário no qual estão em xeque as relações de trabalho.

Política significa a luta entre capital e trabalho, cada um buscando ampliar seus espaços de poder sobre o outro.

Desse modo, é fundamental que os trabalhadores e o povo saibam, nesse contexto, como participar das mudanças, em vias de implantação, de modo a alcançarem novas conquistas.

Os empregadores sentem necessidade das mudanças. Elas são fundamentais para a nossa economia, inclusive do nosso ponto de vista. Como concretizá-las, de modo que signifiquem um avanço real na conquista da democracia plena? Por tudo isto, Teoria e Debate traz quatro artigos de representantes do mundo do trabalho. O primeiro, de José Francisco Siqueira Neto, advogado trabalhista e sindical, aponta as contradições das relações de trabalho no Brasil e defende a contratação coletiva como importante instrumento de modernização e conquista democrática. Em seguida, Miguel Rossetto, secretário de Política Sindical da CUT, apresenta as bases do sistema trabalhista preconizado pelo movimento sindical e a necessidade de uma transição em que a democracia e a liberdade sindical sejam respeitadas. O terceiro, assinado por Nivaldo Albino da Silva, secretário Nacional de Assalariados rurais da CUT, trata do tema sob a perspectiva dos trabalhadores rurais, mostrando as especificidades do Contrato Coletivo no campo. E, finalmente, Fernando Marroni, coordenador geral da Federação das Associações dos Servidores de Universidades do Brasil (Fasubra), analisa a situação dos funcionários públicos e sua relação com o Estado, a partir de um histórico da administração pública no país e da perda da cidadania da categoria, com a restrição da participação na decisão do destino da sociedade e a negação de direitos fundamentais.

A modernização necessária

A proposta do movimento sindical

As contradições no campo

O servidor público enquanto cidadão

A modernização necessária

 

O ponto de partida de um projeto de relações no trabalho está na formulação inicial do Contrato Coletivo de Trabalho sugerido no final da década de 80, pelo movimento sindical cutista1Unknown Object. Naquele momento, a CUT propôs o Contrato Coletivo de Trabalho como instrumento de modificação da concepção do modelo corporativista vigente, bem como de todo arcabouço legal que o regula e sustenta não apenas a negociação coletiva de trabalho, mas também todos os aspectos das relações trabalhistas no país (leis do trabalho, organização sindical, representação dos trabalhadores por local de trabalho, estrutura, forma e níveis da negociação coletiva, direito de greve, solução dos conflitos individuais e coletivos, Poder Judiciário trabalhista e fiscalização do trabalho).

É neste contexto que o ministro Walter Barelli, ao assumir a pasta do Trabalho em outubro de 1992, sugeriu aos diversos atores sociais, relacionados com o universo trabalhista, o aprofundamento da discussão sobre o Contrato Coletivo de Trabalho. O resultado foi uma série de contribuições - oriundas de organizações de trabalhadores, de empregadores e de instituições do Estado vinculadas ao mundo do trabalho -, que apontam, apesar das diferenças, a possibilidade de se estabelecer um projeto nacional democrático de relações de trabalho.

As propostas apresentadas mostram que existem, basicamente três concepções no que diz respeito ao Contrato Coletivo de Trabalho.

A primeira o entende como um grande documento de abrangência nacional por categorias ou intercategorias, destinado a regular aspectos gerais das relações de trabalho, podendo ser descentralizado por estados, regiões, municípios, chegando até os locais de trabalho, sem contudo promover qualquer alteração estrutural no sistema de relações vigente.

Uma segunda proposta defende que o Contrato Coletivo de Trabalho seja uma regulamentação de caráter nacional, destinada apenas a determinar os procedimentos de negociação, como estrutura, níveis, vigências dos instrumentos normativos decorrentes da negociação etc. Nesta proposta, as negociações de conteúdo ficariam basicamente em nível das empresas ou unidades de trabalho.

A terceira concepção enxerga o Contrato Coletivo de Trabalho como conseqüência da efetiva negociação coletiva, cuja existência decorre necessariamente de um sistema democrático de relações de trabalho que possibilita o aparecimento dos contratos coletivos porque incentiva e sustenta a própria negociação coletiva. A idéia é a reformulação total do sistema vigente, através de um processo cuidadoso de transição para o sistema democrático, calcado na participação efetiva dos trabalhadores; na liberdade e autonomia sindical, na representação por local de trabalho: no exercício da negociação coletiva como instrumento efetivo de regulação bilateral do trabalho, na garantia do direito de greve; na desburocratização das leis trabalhistas; na rápida solução dos conflitos; nas alternativas voluntárias de composição de conflitos coletivos, enfim, no redimensionamento do papel do Estado, que se tornaria apenas o regulador, organizador e fiador da efetiva liberdade sindical, abandonando assim seu caráter intervencionista. Na verdade, esta é a proposta que impulsionou todo o processo do Contrato Coletivo de Trabalho no Brasil. E é a esta concepção que nos filiamos, por entender que as relações individuais e coletivas, as normas administrativas e processuais do trabalho devem compor um todo harmônico entre si e não um conjunto de regulamentações fragmentado e desconectado da realidade.

As bases do corporativismo

A forte incidência de normas estatais em contraposição à realização da efetiva contratação coletiva de trabalho e de seus instrumentos normativos é a característica fundamental das relações de trabalho e do Direito do Trabalho no Brasil. A conseqüência dessa combinação é a existência de um arcabouço legal que: protege cada vez menos os trabalhadores; não responde com agilidade e segurança à dinâmica e às transformações recentes do processo de trabalho; é ineficaz no tocante à geração de instrumentos normativos de regulação autônoma (fundamentalmente porque a essência do ordenamento legal ainda mantém o controle e o intervencionismo estatal em relação à organização sindical, limita a abrangência da contratação coletiva e reprime e desqualifica o exercício do direito de greve).

Não obstante, as alterações ocorridas no sistema de relações de trabalho ao longo dos anos, desde a sua instauração no início da década de 30, ainda apresentam-se como um conjunto de regras de cunho estatalista, com grande intervenção legislativa, com negociação coletiva escassa, e com fraco alcance de globalização de seus efeitos. Trata-se do corporativismo sindical com influência direta do sistema fascista italiano. A lógica é manter as relações coletivas atreladas, controladas e reprimidas, enquanto promove a atuação de normas estatais de caráter individual para "suprimir" a ausência das normas resultantes da autonomia privada coletiva. Sempre visando preservar os interesses "superiores da Nação". A doutrina corporativa constitui-se portanto em uma concepção global de sociedade, na qual a iniciativa privada, os trabalhadores e os sindicatos sujeitam-se aos superiores fins nacionais. A colaboração econômica é o núcleo teórico do corporativismo2.Unknown Object

Assim, ao mesmo tempo em que as relações são inviabilizadas, existe um conjunto de leis trabalhistas regulando as relações individuais de maneira bastante detalhada, minuciosa e até mesmo inflexível e burocrática. De todas as leis do trabalho, a CLT é a mais significativa, porque, além de ser a mais antiga, incide sobre o maior contigente de trabalhadores. A CLT é a primeira lei geral, que se aplica a todos os trabalhadores sem distinção entre a natureza do trabalho técnico, manual ou intelectual. Esta lei não é um código, porque, não obstante a sua apreciável dimensão criativa, sua principal função foi a de reunião das leis existentes e não a criação, como um código, de leis novas3Unknown Object.

Apesar da incongruência do corporativismo sindical, o Direito do Trabalho brasileiro, no tocante às relações individuais, sempre foi concebido apesar de discussões teóricas atualmente irrelevantes - como um ordenamento normativo unilateralmente protetor do trabalhador. Acompanhando a doutrina protecionista tradicional, sua função seria a de compensar o hipossuficiente e, na medida do possível, diminuir o desnível ocasionado pelo poder econômico do empregador em relação ao trabalhador. A vitalidade dessa compensação explícita das relações individuais em detrimento das coletivas, salvo esparsos momentos de nossa história, tem permanecido relativamente eficaz, muito embora com alguns estremecimentos nos últimos anos, sem comprometer, na essência, sua fundamentação.

O rompimento com o autoritarismo, no entanto, deu-se a partir das greves do ABC paulista em 1978, que catalisaram o espírito de abertura democrática latente naquela ocasião. Tais greves foram desenvolvidas num cenário de exacerbação de legislação proibida4Unknown Object. Os acontecimentos de 1978 produziram conseqüências palpáveis na sociedade brasileira, contribuindo decisivamente para a redemocratização do país.

<--break->A partir de 1978, registrou-se um rompimento de parte expressiva do movimento sindical com a tradicional submissão à estrutura corporativa. Mas, o processo permanece inconcluso. Todo o esforço de conquista da liberdade sindical, iniciado com a criação das centrais, esbarrou na estrutura corporativista dos sindicatos. Isto determina uma ambigüidade: uma estrutura de cúpula autônoma assentada sobre uma base organizada nos moldes do velho sindicalismo oficial. Isto faz com que ocorra uma desigual distribuição de poder no interior das centrais, permitindo que alguns grandes sindicatos corporativos - circunscritos preponderantemente pela base de representação territorial e não por ramo de atividade - limitem a autonomia das centrais, posto que possuem maior estrutura funcional, administrativa e política. Tal ambigüidade compromete decisivamente a concepção de liberdade e autonomia sindical.

Mesmo com a Constituição de 1988, as relações de trabalho não conseguiram sair do jugo do Estado. O texto constitucional, apesar de enunciar a liberdade sindical, manteve as bases de sustentação do sistema corporativista. Conservou institutos básicos da antiga organização sindical (base territorial, enquadramento por categoria, imposto sindical), ignorando totalmente as possibilidades de autonomia. O quadro sindical atual é alarmante. Apesar de vedada a intervenção estatal nos sindicatos, a Constituição manteve o princípio da unicidade (monopólio da representação). Essa unicidade "por categoria", assegurada pela exacerbação privatista, redundou na pulverização da organização sindical, fazendo com que hoje tenhamos aproximadamente 14 mil sindicatos, na sua maioria pequenos e fracos, realidade inconcebível em qualquer país de pluralismo.

A interferência repressiva do Estado impossibilita a regulamentação autônoma do trabalho. Há muitas leis e pouca contratação. Pouca negociação entre trabalhadores e empregadores e as que existem estão calcadas nas questões salariais, sem aprofundar temas mais estruturais. Não há interlocução assegurada de maneira livre entre as partes. Não se tem garantias de que o diálogo possa convergir para objetivos claramente definidos. Em geral, o empregador brasileiro procura o trabalhador apenas para discutir a crise. Não se tem um processo permanente sobre administração cotidiana do trabalho, ganhos reais ou até mesmo questões macroeconômicas. Não há mecanismos e instrumentos jurídicos capazes de assegurar o equilíbrio de forças entre os atores da negociação coletiva.

A conseqüência das carências apontadas é o grande número de conflitos trabalhistas individuais e coletivos existentes no Brasil. Uma reclamação trabalhista elementar demora em média sete anos para ser julgada. A Justiça do Trabalho está absolutamente abarrotada de processos concernentes a diferenças rescisórias, horas extras e tantas outras questões que poderiam facilmente ser resolvidas diretamente pelas partes (com assessoria dos respectivos sindicatos), rapidamente e sem qualquer tipo de burocracia.

No campo das relações coletivas porém, além da pouca incidência das negociações, a lei de greve existente funciona como um portentoso instrumento de repressão à ação coletiva dos trabalhadores, porque possibilita o julgamento sobre o momento e a oportunidade dos movimentos grevistas, valendo-se apenas de critérios formais de cumprimento legal. Assim, a greve perde sua capacidade latente de causar prejuízo à contraparte através de seu exercício. Esta característica é fundamental para que o direito de greve se transforme em um instrumento de pressão ao empregador, para que o mesmo aceite a negociação coletiva, salvo justificado motivo. As limitações ao exercício do direito de greve, somadas ao tipo de sindicato que temos no Brasil (organizado por categoria, limitado por sua representação por base territorial municipal, pequeno e fraco), impedem a negociação coletiva, preconizada enquanto alternativa ao sistema corporativista. Isto porque a negociação coletiva descentralizada a partir de patamares nacionais, por ramo de atividade econômica, exige outro tipo de estruturação desses sindicatos.

As bases da mudança

Para romper com esse ciclo crônico de ineficiência, tanto nas relações individuais quanto coletivas, é necessário refletir em profundidade sobre a questão da transformação do sistema brasileiro de relações de trabalho, de acordo com os princípios de liberdade e autonomia sindical; das especificidades do trabalho urbano, rural e do serviço público; da representação dos trabalhadores por local de trabalho; da valorização da negociação coletiva de trabalho; da mudança do papel do Estado; da redefinição da legislação do trabalho; da agilidade na solução dos conflitos individuais e coletivos; do estímulo às soluções de conflitos coletivos voluntárias, com o conseqüente término das soluções compulsórias e de requisição unilateral. Neste diapasão, a adequação da agenda de debates é fundamental.

O primeiro grande problema refere-se à unicidade sindical, mantida pela Constituição de 1988. A unicidade sindical ou monopólio de representação é a determinação legal da impossibilidade de existência de mais de um sindicato de categoria por base territorial. Quando se quebra esse monopólio, insere-se o debate político, exigindo dos sindicatos representatividade. Os que não forem representativos, na perspectiva da liberdade sindical, fatalmente acabarão. Isso se aplica, certamente, a mais de 90% dos sindicatos brasileiros. É óbvio que esse tema tem um potencial explosivo de polêmica, porque em palavras bem objetivas, estamos negociando com os que hoje estão, bem ou mal, representando oficialmente os trabalhadores. E quando se diz que vai haver liberdade, eles sabem que seus sindicatos correm o risco de acabar. Isto também se dá em nível da sustentação econômica. Novamente fica ameaçada a autonomia sindical, já que o sistema vigente garante a manutenção econômica e financeira dos sindicatos graças ao imposto (contribuição) sindical compulsório. Ou seja, é impossível chegar facilmente a um consenso neste debate.

No entanto, é preciso saber que tipo de sindicato se espera. Se a perspectiva é termos um sindicato de Estado, é óbvio que a opção recairá sobre a unicidade sindical. Todavia, se a perspectiva for a de construir um Estado mais democrático, deve-se optar, necessariamente, pela livre organização dos sindicatos. A nossa opção é pela liberdade sindical. As forças responsáveis e progressistas do país têm que defender e enfrentar esse debate. A resistência à liberdade sindical manifesta-se até nos postos mais avançados do sindicalismo brasileiro e deve ser enfrentada, porque o que está em debate é a nova conformação do cenário sindical.

Vamos ou não implodir a geografia sindical? Mantendo-a, continuaremos com sindicatos débeis, sujeitos à interferência repressiva e sem capacidade para enfrentar, em condições mínimas, o impacto dos novos desafios políticos, econômicos e produtivos.

Apesar do texto constitucional, vivemos franco processo de pulverização (não pluralismo) sindical. Ninguém pode, em sã consciência, afirmar que, com a existência de 14 mil sindicatos, prepondera o sindicato único.

A liberdade sindical não é imperativa de pluralismo sindical. É a garantia do direito de filiar-se ou não a sindicatos sem qualquer interferência, inclusive no que se refere à estrutura dos sindicatos. A liberdade sindical efetivamente possibilita a criação de sindicatos novos quando os existentes não correspondem aos anseios de parcela significativa dos trabalhadores. Assim, ela libera a camisa-de-força da unicidade, na qual a guerra para a manutenção do aparelho, nas eleições sindicais, ganha proporções alarmantes. Possibilita também a constituição do sindicato da forma que os interessados desejarem e estabelecerem em seus estatutos.

<--break->A unicidade sindical, por sua vez, mantém o velho sistema de controle sobre a organização do sindicato, através de um eficiente sistema jurídico que assegura o artificialismo da representação; a repressão das forças autênticas de representação por local de trabalho; a pulverização da representação sindical por local de trabalho (sindicato dos metalúrgicos, médicos, motoristas etc., numa mesma unidade); a inibição do aparecimento de novas lideranças; um processo inadequado para trabalhar com novas realidades e a inaptidão para a contratação coletiva.

É exatamente contra essa expressão corporativista que defendemos um sistema democrático, em que a possibilidade da pluralidade seja real, assim como a representação dos trabalhadores por local de trabalho, que se constitui num instrumento para combater o corporativismo e garantir a democracia, com a participação dos trabalhadores no desenvolvimento econômico. A busca da unidade sindical dos trabalhadores deve ser resultado de suas políticas, suas discussões e lutas, e não de uma legislação que crie uma unidade artificial e, como já vimos, autoritária.

Solução dos conflitos

A estrutura e a forma da negociação coletiva também são fatores importantes para um sistema de relações de trabalho democrático. A negociação no Brasil é realizada, geralmente, uma vez por ano, de acordo com a data base de negociação de cada categoria profissional. Além de ampliar a fragmentação das negociações, a data base é o referencial para solucionar eventuais impasses. Havendo impasse, os envolvidos podem manter os efeitos jurídicos dos instrumentos em vias de vencimento, ajuizando um dissídio coletivo de trabalho, que vem a ser o pedido de julgamento da negociação coletiva. Assim, é a Justiça do Trabalho que vai "decidir" se os trabalhadores terão direito à comissão de fábrica, a que tipo de reajuste salarial etc. Portanto, salvo raríssimas exceções, a interferência do Poder Judiciário na solução dos conflitos coletivos de trabalho acaba restringindo-se a reajustes salariais. A negociação coletiva, que é um conflito de interesses, transforma-se, por força da interferência da Justiça do Trabalho, em um conflito meramente jurídico.

Neste sentido, para modernizar e democratizar as relações de trabalho no Brasil, temos que acabar com a interferência obrigatória do Poder Judiciário trabalhista na solução dos conflitos coletivos (poder normativo ou solução jurisdicional), que se materializa através das sentenças normativas. A intervenção jurisdicional obrigatória, além de inibir o processo de contratação coletiva - pelo seu caráter intrinsecamente vinculado ao sistema corporativista -, conduz a uma série de problemas: restringe o conteúdo das contratações (face às limitações típicas do Poder Judiciário); desqualifica a própria participação do Poder Judiciário enquanto formador de padrões de condutas refletidas pelo uso e pela prática social; inibe as contratações autônomas e, conseqüentemente, as fontes autônomas do Direito do Trabalho (que se traduz na capacidade de criar normas próprias entre trabalhadores e empregadores) e nivela as concessões pelas realidades mais desprotegidas.

Há uma falsa idéia de que o fim do dissídio coletivo acabaria com os sindicatos pequenos e fracos - o que de todo não seria ruim, porque sindicato pequeno e fraco é um contra-senso, já que os sindicatos devem ser representativos e fortes. A sobrevivência dos sindicatos não deve estar atrelada ao sistema de solução dos conflitos, mas sim, à organização sindical, que deverá superar os problemas específicos, ampliar sua representação, estruturar seu sistema confederativo etc.

Os conflitos coletivos nascem dos impasses na negociação. No sistema vigente no Brasil, como vimos, a Justiça do Trabalho é que possui poderes para solucioná-los compulsoriamente, independente da vontade das partes. Num sistema verdadeiramente democrático, as formas de composição dos conflitos devem ser voluntáriasUnknown Object5.

No Brasil, os instrumentos jurídicos geram efeitos apenas no período de vigência. O ideal é que os efeitos sejam permanentes até que um novo instrumento revogue o antigo, ou a demonstração de onerosidade seja declarada em processo de renúncia, movido pelo interessado. Esta é a tendência mais marcante nos países com experiências trabalhistas mais democráticas e perenes.

Os níveis de negociação também merecem ressalva. Nas experiências trabalhistas, em que a preocupação com a globalização dos efeitos das negociações coletivas é preponderante, o sistema funciona de maneira descentralizada a partir do nível de negociação por ramo de atividade até a empresa ou local de trabalho. No momento em que se atinge um mínimo, é disparado o processo de especificidade, pelo qual se chega aos pontos máximos e específicos em nível das empresas ou local de trabalho.

O que acontece no Brasil é o contrário. A negociação começa por regiões, com ênfase em empresas. Parte-se então do nível intermediário e do específico para o geral. Esta equação impede qualquer tipo de globalização de efeito perene, mesmo entre categorias fortes. Os metalúrgicos, por exemplo, raramente conseguem globalizar os ganhos dos pólos mais avançados estendendo os para outras realidades metalúrgicas do Estado.

Papel do Estado

Com a mudança do sistema de trabalho, muda-se conseqüentemente o papel do Estado, que deixa a função intervencionista repressora e passa a exercer o papel de organizador do sistema e fiador da liberdade sindical.

Além disso, cabe ressaltar o papel do Estado enquanto balizador da globalização dos efeitos das negociações coletivas. Na maioria dos países desenvolvidos tem-se processado nos últimos anos uma diminuição significativa na taxa de sindicalização. Porém, os efeitos das negociações permanecem inalterados. Isto se deve ao poder que os ministérios do Trabalho possuem de estender cláusulas de instrumentos normativos a categorias equivalentes quando se constata qualquer tipo de resistência maliciosa por parte dos empregadores. O resultado concreto dessa prerrogativa do Ministério do Trabalho é a garantia da globalização dos efeitos da negociação coletiva para realidades compatíveis. Esse poder, contudo, é mais eficiente para a negociação coletiva em nível nacional. Este procedimento acaba influenciando a própria atuação do Poder Judiciário, que aplica os direitos decorrentes da negociação mais próxima quando o trabalhador reclama judicialmente qualquer direito. Como se vê, opera-se um processo articulado de valorização e de globalização da negociação coletiva. Onde a negociação é fragmentada, como no caso dos Estados Unidos, o processo de extensão é realizado informalmente pelas próprias empresas atingidas por mobilizações dos trabalhadores.

Conclusão

A disposição de alcançar o Contrato Coletivo de Trabalho não significa a mera apologia do documento, do instrumento normativo e sim as condições para o seu desenvolvimento e a transformação de todo o sistema de relações de trabalho. Trata-se, portanto, de uma tarefa extensa e complexa. Para chegarmos ao desenvolvimento efetivo de um sistema de relações trabalhistas participativo é preciso efetuar mudanças radicais, dirigindo os objetivos para a consolidação de um sistema que: proteja cada vez mais os trabalhadores; responda com agilidade e segurança à dinâmica do processo de trabalho e às transformações econômicas, possibilitando adaptações e flexibilizações negociadas; seja eficaz em relação à criação de instrumentos normativos autônomos, garantindo a liberdade e autonomia sindical, estimulando e globalizando os efeitos da negociação coletiva e assegurando o exercício do direito de greve.

José Francisco Siqueira Neto é advogado trabalhista e sindical, mestre em Direito do Trabalho, pesquisador do CESIT e assessor especial do ministro Barelli para assuntos de Contrato Coletivo de Trabalho

Notas

 

1. Siqueira Neto, José Francisco, Contrato de Trabalho. Perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva, São Paulo, LTr editora, 1991, págs. 180 a 209

2. Pergolesi, F., Instituzioni di Diritto Corporativo, Bologna, Nicola Zanichelli Editore, 1940, pág. 18

3. Nascimento, Amauri Mascaro, Iniciação ao Direito do Trabalho, São Paulo, LTr Editora, 1992, pág. 33

4. Magano, Octavio Bueno, Manual de Direito do Trabalho. Parte Geral, São Paulo, LTr editora, 1991

5.A própria estrutura do Poder Judiciário trabalhista pode ser alternativa razoável. Existem, atualmente, tribunais regionais do Trabalho em todas as capitais e na cidade de Campinas. Todos possuem um Grupo Normativo encarregado de proferir as sentenças normativas. Na hipótese de criar-se mecanismos voluntários de solução dos conflitos coletivos, pode ser conveniente a transformação de Grupos Normativos em Grupos de Arbitragem Pública Voluntária. Além disso, no âmbito administrativo, o Ministério do Trabalho poderá estabelecer órgãos de conciliação e mediação.

 

 

A proposta do movimento sindical

O sindicalismo da CUT, seu crescimento e fortalecimento, e o espaço que tem ocupado na sociedade, são expressões da acumulação de forças da esquerda na sociedade brasileira. Por conta disso, quando propomos mudanças fortes no nosso padrão sindical, muitos companheiros se perguntam se isso não nos enfraqueceria numa conjuntura difícil para o mundo do trabalho, como é a atual.

Quando a CUT foi fundada em 1983, as energias que lhe deram origem eram a da crítica radical à estrutura sindical oficial, assim como às relações capital/trabalho tuteladas autoritariamente pelo Estado, ambas herdadas do período do Estado Novo de Getúlio Vargas, com as adequações feitas pela ditadura militar.

As divergências em torno da estrutura sindical (por exemplo, se apenas as diretorias dos sindicatos oficiais representavam a categoria, ou se oposições poderiam reivindicar essa representação) foram decisivas no momento da ruptura entre o sindicalismo autêntico e o bloco pelego-reformista em 1983.

No entanto, ao longo dos anos 80, quando a CUT aumentou sua base de forma acelerada, aquela crítica radical foi sendo deixada de lado e, em substituição, iniciou-se um período de "utilização" da herança getulista-ditatorial, para os objetivos políticos e sindicais da esquerda.

Pode-se dizer que, no campo sindical, a esquerda acumulou forças, mas sobre bases frágeis, ou melhor, sobre bases que num momento crítico poderiam se reverter contra essa acumulação. Foi o que aconteceu.

Quando Collor tomou posse em 1990 e iniciou a implementação acelerada do projeto neoliberal, abriu-se no nosso sindicalismo um longo período de impasses, não mais conjunturais (como em alguns momentos dos anos 80) mas em seus alicerces.

A facilidade com que o projeto neoliberal de reestruturação da produção conseguiu arrasar com os trabalhadores dentro das empresas dos setores de ponta; a falta de resposta sindical ao fechamento de setores inteiros da produção e dos serviços no bojo da recessão; as dificuldades para organizar e responder aos anseios dos novos setores de trabalhadores marginalizados surgidos com a política neoliberal; a dificuldade de unificar os interesses das categorias frente às investidas do projeto neoliberal, esses e outros impasses de nossa ação sindical se relacionam profundamente com o modelo sindical e o padrão de relação capital/trabalho atualmente vigente.

Enquanto a CUT liderava um bloco de forças que derrubou o presidente da República por corrupção, a indústria brasileira batia recorde de produtividade do trabalho (28% em 1991-93), o salário mínimo e o salário médio caíam a níveis nunca vistos, a indústria completava a supressão de 2 milhões de empregos (período 1988-92); 74% das empresas do Brasil recolhiam irregularmente (ou não recolhiam) o FGTS e a previdência social; nos grandes centros industriais quase um de cada dois trabalhadores faziam horas extras sem que sequer fossem respeitadas as restrições legais; multiplicavam-se as denúncias sobre a existência de trabalho escravo, entre outros exemplos de como os anos 90 vêm sendo um cenário de terror no mundo do trabalho.

Ao retomar as bandeiras do Contrato Coletivo de Trabalho e da liberdade de organização sindical, não estamos fazendo apenas um resgate das propostas que deram origem à CUT, mas buscando uma resposta aos desafios atuais, que nos capacitam a continuar o acúmulo de forças dos anos 70-80.

<--break->Nosso Estado e o deles

Sempre questionamos a intervenção autoritária do Estado nas relações capital/trabalho.

Decorrente disso propomos o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, isto é, a interferência do Estado que sistematicamente busca substituir o conflito capital/trabalho pela conciliação imposta de cima para baixo.

Isto que estava muito claro no início da CUT foi sendo substituído pelo comodismo de muitas das direções sindicais, mesmo cutistas, que viam na Justiça do Trabalho uma instância que negava no atacado e concedia no varejo as reivindicações, num patamar suficiente para legitimar as direções sindicais, enquanto tal frente às suas bases. Assim essa intervenção muitas vezes era (e é) vista como benigna.

Porém, desde o governo Collor, cada vez mais, a Justiça do Trabalho nos seus julgamentos retira direitos (e pouco ou nada preserva, muito menos amplia), mostrando-se como mais um braço executor da política econômica e social do Poder Executivo.

Em suma, o poder normativo é hoje uma fonte auxiliar do projeto neoliberal e não sua negação.

Mas, e o papel da Justiça frente aos direitos que são violados pelas empresas, tal como mostra o quadro dramático do mundo do trabalho nos anos 90? E fácil perceber que mesmo aqui o modelo atual é perverso, já que anualmente 1,5 milhão de processos dão entrada na Justiça do Trabalho, normalmente as audiências iniciais são marcadas para depois de um ano, e a média da duração dos mesmos está chegando aos dez anos.

Mas com tudo isso, como fica fácil de entender com a descrição que fazemos a seguir, ao trabalhador na situação atual apenas resta essa justiça, lenta, ineficiente, corrupta e pró-patronal (já que ela acaba promovendo acordos que se baseiam na perda de direitos líquidos e certos dos trabalhadores ... )

Por outro lado, nossa proposta não se assemelha em nada ao "Estado mínimo neoliberal". Entendemos que o Estado deve, sim, garantir os direitos básicos da cidadania para todos os trabalhadores independente de seu grau de organização e mesmo independente das negociações coletivas com os patrões.

Para nós não está em discussão a política de recuperação do valor do salário mínimo nacional, nem a limitação da jornada de trabalho diária, nem o descanso semanal remunerado, nem as licenças maternidade e paternidade etc. Naquilo que é conquista de anos de luta não se mexe, e cabe ao Estado garantir seu cumprimento para todos os trabalhadores (através de mecanismos de fiscalização e uma justiça eficiente).

Por isso, propomos o fortalecimento dos mecanismos de fiscalização estatal e as mudanças na Justiça do Trabalho, ao lado da criação de mecanismos de fiscalização por parte dos sindicatos e suas organizações na base.

Aqui reside outra proposta fundamental: a conquista do direito à organização no local de trabalho. Se as máquinas sindicais pouco sentiram o impacto do projeto neoliberal, os trabalhadores nos locais de trabalho vêm sendo esmagados pelo mesmo. Há pois uma autonomização perversa da organização sindical em relação à classe trabalhadora que diz representar. Quando essa distância vira burocratização, será a própria organização sindical que combaterá a organização no local de trabalho.

<--break->No novo sistema de relações de trabalho e organização sindical, o local de trabalho ocupará um lugar de destaque, como sendo o coração da disputa com o poder do capital frente à produção.

Junto com isso, lutamos hoje, novamente, pela conquista da liberdade plena de organização sindical que foi negada pela Constituição de 1988, através da manutenção da unicidade sindical no seu artigo 82.

Entendemos que o sindicalismo da CUT e os trabalhadores em geral só têm a ganhar se a camisa-de-força da unicidade e o "monopólio de representação" imposto pelo Estado caírem.

Para tanto, é fundamental que sejam consagradas as garantias para o exercício livre da organização sindical, como por exemplo, o acesso às empresas, a estabilidade para os detentores de mandatos sindicais etc.

Por último, o atual sistema de relações de trabalho bloqueia o direito de greve - já que na sua lógica, em última instância, é a justiça que tem o direito de findar um conflito, e não a correlação de forças entre as partes em conflito.

Na proposta de um novo sistema de relações de trabalho propomos resgatar o direito pleno de greve, como sendo fundamental para a conquista da cidadania pelos trabalhadores.

Quando a CUT apresentou em dezembro de 92 uma proposta de Sistema Democrático de Relações de Trabalho/ Contrato Coletivo de Trabalho, fez justamente uma síntese deste conjunto de propostas que se articulam numa estratégia sindical e política da Central.

À luta democrática plena

Ainda mais, nos países de sistema capitalista que foram vítimas de ditaduras burguesas neste século (como os modelos português e espanhol), quando a população se desvencilhou das mesmas, além de uma transição à democracia política, houve um processo desmonte e transição da expressão concreta dessa ditadura nas relações capital-trabalho e na legislação sobre organização sindical. Nisto o Brasil é uma experiência particular. Aqui saímos da ditadura militar mas sua herança (aliás vinda dos anos 30) permaneceu no mundo sindical.

Estamos num novo período, no qual é preciso usar nossa acumulação de forças conquistada nesses anos de organização e luta, para disputar a hegemonia na sociedade, e assim como repudiamos a transição conservadora no campo da política, é nosso dever repudiar a falta de uma autêntica transição democrática no mundo sindical e do trabalho.

Paralelamente aos esforços permanentes da ação sindical cutista, a campanha Lula e mais ainda seu governo deverão resgatar essa perspectiva fundamental. Devem e podem construir um ambiente capaz de reenergizar o movimento sindical, reanimar a militância em função da qualidade do debate programático de disputa de projetos alternativos para o país, numa contraposição clara ao ideário neoliberal.

Nossa campanha deverá ser um momento privilegiado de retomarmos a luta democrática que foi interrompida pela hegemonia conservadora dos anos 80. No campo das relações capital/trabalho e da organização sindical, esses ventos fortes da radicalização democrática na sociedade deverão chegar simultaneamente. Essa é a nossa proposta. Esse é o conteúdo político da discussão sobre Contrato Coletivo de Trabalho e liberdade de organização sindical, isto é, de um sistema democrático de relações de trabalho, que estamos fazendo na CUT.

Miguel Rossetto é secretário de Política Sindical da CUT.

As contradições no campo

A implantação do modelo de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira a partir da década de 70 determinou transformações na estrutura da produção neste setor. Estas transformações contribuíram para a consolidação do mercado de trabalho nacional e para adequação da força de trabalho às novas imposições do capital.

A concentração da terra, da renda e da tecnologia expropriou um grande contingente de trabalhadores rurais que em grande parte transformaram-se em trabalhadores assalariados no campo. Dados do IBGE mostram que há aproximadamente 7 milhões de assalariados rurais no Brasil, de um total de 14 milhões de pessoas ocupadas na agricultura e de um total de 62 milhões de pessoas ocupadas no país.

Hoje, um contingente significativo de pequenos produtores pauperizados, marginalizados das políticas governamentais, subordinados à exploração do capital comercial, não consegue mais manter-se com os ganhos de sua própria produção, necessitando empregar-se como assalariado na agricultura e em outros setores da economia.

Os trabalhadores que se empregam mais intensamente em determinadas fases do ciclo produtivo das grandes lavouras constituem os assalariados temporários do campo. Residindo nas periferias das cidades que margeiam as grandes lavouras agrícolas ou migrando de regiões distantes em busca de trabalho (principalmente no período de corte ou safra das grandes plantações), estes trabalhadores contribuem para a formação do mercado de trabalho em nível nacional. Além de estarem submetidos à superexploração econômica estão sujeitos a péssimas condições de trabalho e de vida. São encontrados freqüentemente nas grandes produções de cana, café, cacau, sisal, reflorestamento, laranja, frutas tropicais, entre outras.

À medida que o progresso técnico é absorvido por todas as etapas de produção, as empresas exigem maior qualificação da mão-de-obra e adotam novas estratégias de aliciamento e controle. A contratação dos trabalhadores mais especializados leva em consideração o aproveitamento em todas as etapas do processo de produção, formando o contingente de trabalhadores permanentes. Nestas situações os empresários priorizam seus investimentos na construção e melhorias das condições dos núcleos coloniais, para reter esta mão-de-obra próxima à unidade de produção. São freqüentemente encontrados nas empresas reflorestadoras e nas empresas produtoras de cana (para a produção de açúcar e álcool) localizadas nas regiões mais desenvolvidas.

Há também os bóias-frias/diaristas das grandes plantações, das carvoarias, os empregados de agropecuárias, que estão submetidos às mais distintas relações de trabalho, em geral caracterizadas pela superexploração e clandestinidade.

Os contratos de trabalho dos assalariados rurais estão intimamente ligados com a sua condição, ou seja: os trabalhadores permanentes têm seus contratos firmados diretamente com as empresas rurais; os temporários podem estar vinculados diretamente às empresas rurais, a empresas aliciadoras de mão-de-obra ou empreiteiros.

Os assalariados rurais de algumas agroindústrias conseguiram através das campanhas salariais transformar um conjunto de reivindicações trabalhistas em cláusulas de contração coletiva, através de convenções ou dissídios coletivos. Porém, essas cláusulas são solenemente desrespeitadas pela classe patronal. Em muitas circunstâncias, as Delegacias Regionais do Trabalho têm sido coniventes com esta situação à medida em que não realizam uma fiscalização efetiva, mesmo diante de denúncias de arbitrariedades encaminhadas pelo movimento sindical.

A característica geral das relações de trabalho na área rural é de superexploração, conservando ainda, paralelo a todo o progresso técnico, relações que lembram o escravismo e são marcadamente autoritárias.

Cerca de 5 milhões de assalariados rurais não possuem carteira assinada e estão sem garantia de seus direitos trabalhistas (13º salário, férias, FGTS e previdência social).

Os acidentes no transporte e a intoxicação por uso indevido de agrotóxicos são freqüentes e têm causado morte e invalidez de trabalhadores.

Os alojamentos são em geral insalubres e são cobradas taxas elevadas no preço da comida e outros produtos da cantina, causando a dependência cada vez maior do trabalhador, que quando vai pagar a conta deve mais do que recebeu de salário.

A subestimação do rendimento do trabalho na produção, ou mesmo a grande quantidade de tarefas tem impedido que os trabalhadores façam na produção o correspondente à diária, ao salário. Nestas circunstâncias recorrem ao filho ou à mulher, que são incorporados à produção como trabalho gratuito, como "ajuda". Isto acarreta outros problemas como, por exemplo, o afastamento do filho (em geral menor) da escola.

A reestruturação de diversos setores agroindustriais, em especial o sucroalcooleiro, com a mecanização e deslocamento de capitais, tem causado um desemprego estrutural, com eliminação de postos de trabalho sem a criação de outros. Com isso grandes contingentes de trabalhadores estão sendo excluídos da produção e engrossando as filas dos miseráveis deste país.

Além do descumprimento destes direitos básicos, outro comportamento remanescente do autoritarismo soma na negação da cidadania do trabalhador assalariado rural: o impedimento do trabalho sindical. Em geral as empresas não permitem que os delegados sindicais circulem livremente nos locais de trabalho, impossibilitando a fiscalização das condições de trabalho e a organização dos trabalhadores. A demissão costuma ser a punição.

Também não reconhecem sindicatos que não sejam aqueles da estrutura oficial, para as mesas de negociação, e restringem a contratação coletiva quase que às pessoas que exercem a mesma tarefa, fragmentando a negociação.

Organização sindical

A organização sindical dos trabalhadores rurais ainda segue, predominantemente, o modelo unicitário. Cada município tem um sindicato de trabalhadores rurais que aglutina pequenos agricultores, bóias-frias, assalariados e sem terras. Estes sindicatos estão reunidos em uma federação (algumas filiadas à CUT, outras apenas à Contag) ou departamentos estaduais que são as instâncias do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais - DNTR/CUT. Em nível nacional existem o DNTR e a Contag.

As manifestações diferenciadas das contradições entre empregadores e trabalhadores do campo e a trajetória de luta dos trabalhadores rurais têm evidenciado a necessidade de reformulação desta organização e prática sindical. O legado histórico do sindicalismo corporativista, atrelado ao Estado, tem sido um entrave na organização dos trabalhadores rurais, tanto para suas reivindicações econômicas específicas, como no plano mais geral de luta.

No âmbito da CUT surgem algumas experiências de sindicatos específicos de assalariados rurais. Estas experiências são recentes e começam a ser analisadas como subsídio para a nova estrutura sindical defendida pela CUT. Esta deve estar baseada nos princípios da autonomia e liberdade sindical. O DNTR tem deliberado a criação de sindicatos diferenciados de pequenos agricultores e assalariados rurais, de base regionalizada ou mais ampla possível. A construção destes sindicatos busca garantir a legitimidade de representação dos sindicatos na medida em que respondem melhor à necessidade organizativa dos trabalhadores.

A organização por local de trabalho fundamental para uma relação verdadeiramente democrática no mundo do trabalho - é um dos principais problemas na área rural, tanto para os pequenos agricultores como para os assalariados rurais.

Os assalariados rurais têm apresentado grandes dificuldades de organização e mobilização. Sua inserção diferenciada nas etapas do processo de produção, a segmentação por formas diferenciadas de contratação, sua rotatividade por diferentes culturas, a combinação de trabalho assalariado com a pequena produção, a repressão patronal e do Estado torna a organização no local de trabalho quase impossível. Nos locais de moradia é onde se abre o canal de organização, ultrapassando inclusive os limites do município e do estado para criar uma identidade mesmo entre os migrantes.

A organização do ramo de produção ainda é ponto de discussão na CUT. Também a integração com outras categorias das agroindústrias nas negociações coletivas é um debate que vem amadurecendo e se tornando uma necessidade para garantir conquistas aos trabalhadores.

Contratação coletiva

Pensar em Contrato Coletivo de Trabalho na área rural implica pensar relações democráticas de trabalho. Predominando a mentalidade escravista dos empregadores rurais, nem mesmo contrato existe. Não há possibilidade de discutir contratação coletiva se não existir respeito, autonomia e liberdade para a organização sindical; reconhecimento dos sindicatos na hora da negociação; organização sindical no local de trabalho; obrigatoriedade de participação dos sindicatos nas negociações coletivas; estabilidade no emprego para os representantes eleitos; garantia aos sindicatos do direito de fiscalização do cumprimento da legislação e dos contratos de trabalho.

A garantia dos direitos básicos deve estar acima de qualquer negociação ou contrato. A cidadania é o elemento fundamental de um Estado democrático.

Além disso, a reestruturação agroindustrial terá que ser repensada ampliando o conceito de modernização, que não deve ser entendido apenas como fator de aumento da produção/produtividade, mas deve pensar na melhoria das condições de vida e de trabalho dos assalariados. Como pensar em Contrato Coletivo de Trabalho na área rural se a exclusão através da seletividade e do desemprego estrutural aumentam em proporções geométricas? A modernização somente será efetiva se estiver dentro de um projeto de desenvolvimento que faça uma distribuição de renda e propicie efetiva melhoria das condições de vida da população.

Nivaldo Albino da Silva é secretário Nacional de Assalariados Rurais no DNTR/CUT.

O servidor público enquanto cidadão

Ainda que não aprofundando, é preciso consignar que o Estado-Administração atravessa uma profunda crise de identidade. Crise esta permeada pela disputa na sociedade civil e, no plano institucional, de projetos políticos antagônicos que encontram suas maiores expressões no neoliberalismo (capitalista) e no projeto popular (com uma estratégia socialista). O neoliberalismo quer radicalizar e levar às suas últimas conseqüências a visão conservadora da função pública, que corresponde à descrição do Estado como uma máquina voltada à manutenção do status quo, que desconsidera as múltiplas funções do Estado moderno (que intervém na vida social), impregnada pela ideologia que persegue o seu enxugamento sem nenhuma preocupação com a qualidade dos serviços públicos prestados à sociedade. O Estado Mínimo, postulado pelo neoliberalismo, é forte, monolítico, isento de conflitos internos, para funcionar como uma máquina capaz de assegurar o funcionamento livre do mercado, pela manutenção da ordem.

Essa visão ideológica, que descreve o servidor como se fosse apenas uma peça da grande máquina, se apóia, flagrantemente, na fragmentação do trabalho humano, produtora de um servidor alienado, incapaz de vincular o seu trabalho ao seu papel social (que é o do próprio Estado), fazendo-o entender sua atividade como um meio ao mesmo tempo medíocre e seguro de sobreviver, porém desinteressante e penoso. Em outras palavras, o Estado ao mesmo tempo em que perpetua a opressão de seus trabalhadores, negando-lhes direito à cidadania, não presta nenhum serviço que atenda minimamente às exigências sociais do país, configurando o que tem se chamado de "pacto da mediocridade": o Estado finge que administra, o servidor finge que trabalha e o povo se aliena do processo.

Reconhecer esta realidade significa compreender que uma mudança radical na concepção do Estado brasileiro e de sua relação com a sociedade é uma tarefa múltipla e gigantesca que dependerá, de um lado, da vitória de um projeto popular e, de outro, de novas relações entre o Estado-Administração e seus trabalhadores e, ainda, e sobretudo, de uma alteração radical na postura da parcela excluída da cidadania em relação às múltiplas funções políticas.

Relação com a sociedade

Se a cidadania for entendida, não só pela reafirmação dos direitos e garantias fundamentais, como também pela possibilidade concreta de participação do indivíduo na decisão dos destinos da sociedade e na definição das suas próprias condições de vida, o seu exercício crítico e criativo encontra no servidor público uma forma privilegiada de manifestação. Sendo ele parte da administração pública, e tendo o Estado moderno (que buscamos) múltiplas funções que intervêm na vida social, ao servidor estão abertas possibilidades de operar transformações da instituição estatal em benefício de toda a sociedade, capazes também de vida. O servidor-cidadão, consciente de seu papel social, transforma o seu trabalho num instrumento capaz de operar a coisa pública em favor da maioria e, então, este trabalho assume uma dimensão emancipadora.

Àqueles que exercem função pública está reservado, portanto, um papel de agente fundamental na disputa pela hegemonia de uma nova concepção de Estado, na qual qualquer cidadão identifique que este novo Estado pode prestar-lhe serviços públicos fundamentais, eficientes e de qualidade. Naturalmente esta tarefa, ainda que dependa do servidor-indivíduo, só será potente se assumida enquanto um desejo coletivo da categoria. Só assim, no enfrentamento com a concepção de um Estado privatizado pelos interesses das elites dominantes poderá contribuir para reformas que tenham alcance social relevante e sejam identificáveis pelos socialmente excluídos. A partir daí qualquer cidadão identificará que o Estado lhe interessa e que, portanto, sua relação com o mesmo será de mão dupla, isto é, de cobrar suas responsabilidades e de defender e apoiar suas políticas que acumulem para um real emancipação dos indivíduos. Em contrapartida um servidor alienado e irresponsável do ponto de vista do seu compromisso social, que reproduz um movimento sindical meramente corporativo (ainda que extremamente necessário na atual conjuntura), somente cultivará na sociedade o desprezo e a intolerância quando suas reivindicações, próprias da relação de trabalho e legítima da condição humana, se manifestarem.

<--break->Perspectivas

Defendo a tese de que somente através de uma mudança radical das relações de trabalho no interior do Estado, que reconheça estas relações como conflituosas, que trate de forma democrática, transparente, impessoal e legalizada, pressupostos básicos da administração pública, será capaz de impulsionar este novo Estado para a negação de toda a sua história e para a construção de seus novos objetivos estratégicos. Entendo que a legitimidade da representação para essa interlocução entre o Estado e os trabalhadores encontra no movimento sindical dos SPFs condições objetivas para o seu desenvolvimento. É preciso que se diga que estas organizações foram forjadas hegemonicamente no campo da CUT, e que portanto têm compromissos com o projeto popular para o Brasil. Esse fato obrigatoriamente as credencia para uma interlocução nos moldes do que se convencionou chamar na iniciativa privada de Contrato de Trabalho. Mais do que isso, pelas peculiaridades próprias da administração pública, pela organização sindical nacionalizada em grandes ramos de atividade, me arrisco a afirmar que estão colocadas condições objetivas para com maior celeridade do que na iniciativa privada se concretize um contrato institucional-negocial no âmbito do Estado. Outro dado que certamente corrobora para a necessidade e possibilidade dessa nova relação é o acúmulo das formulações estratégicas que fazem parte do patrimônio político das entidades nacionais dos SPFS, que foram compelidas a romperem com discussões meramente corporativas para fazerem frente aos embates com governos autoritários, conservadores e neoliberais.

Não basta, entretanto, que só uma das partes, os trabalhadores, tenha clara essa necessidade. É imperativo que o Estado- Administração reconheça na negociação coletiva um instrumento potente para alterar radicalmente o status quo da administração pública. Vale dizer que o instrumento não pode ser visto apenas por uma necessidade de atender às demandas reivindicatórias dos trabalhadores do Estado, mas sim como um espaço democrático onde administração e trabalhadores possam ou não acordar metas e objetivos a serem atingidos, condições para que o sejam.

Essa nova relação deverá necessariamente constituir novo arcabouço político-jurídico, institucional, que reorganize e promova as condições para o desenvolvimento de um Estado eficiente e capaz de enfrentar os desafios sociais colocados para o Brasil e que estarão nas mãos do governo Lula.

Digo isso porque não raras vezes assistimos avaliações e declarações de expressões públicas do PT de que o movimento sindical cutista, principalmente dos servidores públicos, age unicamente pelo princípio do corporativismo acerbado. Talvez o PT tenha acumulado experiências negativas em administrações municipais ou seja falta de compreensão da realidade. O exemplo dos embates entre o Sindicato dos Motoristas de São Paulo e a administração Erundina deve ser analisado como um episódio de um movimento sindical despolitizado, despreparado, que nada tem a ver com a postura revolucionária que reivindicava. Prova disso é que após a posse de Maluf não temos nenhuma notícia de uma ação vigorosa da categoria contra as políticas de privatização impostas pelo atual Executivo. Não acho que seja o caso dos Sindicatos dos SPFs que, de tantos enfrentamentos com os governos conservadores, acumularam para a superação do corporativismo e acredito estejam preparados para uma discussão sobre os projetos estratégicos para o Estado brasileiro. O governo do PT necessariamente terá que enfrentar desafios como a redefinição das funções do Estado, a reconstituição do estrago e do desmonte promovido pelo governo Collor e a desconstituição das castas e grupos privilegiados que estão entrincheirados no interior da máquina estatal, que nenhum compromisso têm com as funções desse novo Estado que buscamos, e que muito provavelmente estarão prontos a promoverem boicotes. Estes, com certeza, são minorias - porém barulhentas. Por fim entendo que essa discussão deva ser feita imediata e coletivamente envolvendo desde já os militantes do movimento dos servidores com vistas a produzirem metas de curto, médio e longo prazo. Muito além de estruturar um programa de governo para a vitória de Lula é imperioso que se rompa com essa história degenerada da função pública e se construa as bases para um novo e duradouro ciclo da administração pública no Brasil.

Fernando Marroni é coordenador geral da Fasubra-Sindical.

<--break->História da relação trabalhista entre servidor e Estado

Para falar sobre novas relações de trabalho no serviço público impõe-se, ainda que genericamente, resgatar a história da própria administração pública no Brasil, marcada pela extrema centralização do poder nas mãos do Executivo. Herdada do Estado português, a então colônia manteve sua estrutura administrativa e sua utilização (principal) para sustentar interesses de grupos dominantes, que se alternaram no poder, em detrimento das necessidades da maioria da população.

O cargo público, à época da colônia, era propriedade do rei, que o concedia a seus favoritos, conferindo-lhes autoridade e nobreza. Detê-lo significava poder de influência, proximidade com o soberano e, acima de tudo, enriquecimento. Era possível obter um cargo público, também, em leilão, ou comprá-lo diretamente da Coroa. Havia, também, a ocupação do cargo vago por concurso. Entretanto, os documentos que os convocavam sugeriam que fossem ocupados por quem oferecesse maior quantidade de dinheiro. Era comum o "funcionário" comprar cargo em Portugal a baixo custo e vendê-lo mais caro no Brasil. Essa prática levou à multiplicação de órgãos públicos, ao desgaste da estrutura e ao aviltamento dos salários dos funcionários.

No Brasil Império, institucionalizou-se o poder militar dos grandes proprietários de terra, incorporando-se suas milícias particulares ao Ministério da Justiça em troca de patentes militares. Criava-se a Guarda Nacional, principal base de sustentação política e administrativa da época, originando o ciclo do "coronelismo". Nesse período as principais funções da administração eram defender e sustentar a Corte. Iniciava-se, ali, o preenchimento do cargo público através dos acordos políticos, o que gerava uma total submissão aos interesses da oligarquia dominante. Desde então a degeneração do aparelho administrativo era fomentada de cima para baixo. Essa estrutura permaneceu inalterada após a Proclamação da República, até porque não houve nada que se assemelhasse a uma revolução para implantação do Estado Republicano. Nesta nova fase estabeleceu-se uma aliança entre o poder público e o setor privado: o Estado contribuía com concessões, benefícios e verbas públicas, enquanto o setor privado participava com o voto submisso, famílias inteiras eram conduzidas à direção dos principais Estados e órgãos administrativos em troca do "voto de cabresto". Mais uma vez expandia-se desordenadamente a estrutura administrativa, com a ampliação do número de cargos, sem correspondência com as reais necessidades da sociedade, que eram marcadas pelo crescimento das populações urbanas e pela expansão da atividade industrial.

Período Vargas

No período Vargas, entre 1930 e 1934, surgem as primeiras idéias para profissionalizar e dignificar a função pública, com o objetivo de aumentar a eficiência destes serviços. Fala-se, então, em igualdade de oportunidades, instituição de concurso público e aumento da remuneração. No processo de elaboração da Constituição a Associação dos Funcionários Públicos de São Paulo intervém, organizadamente, apresentando um substitutivo ao anteprojeto de Constituição, contendo as seguintes reivindicações: participação no processo constituinte, plano de carreira, aposentadoria integral, concurso público, isonomia salarial com os militares e direito a constituir associação de classes. Inaugura-se, assim, um capítulo na Constituição reservado ao funcionalismo público.

A partir da lei 284/1936, "Lei do reajustamento", inicia-se uma efetiva mudança no pensamento sobre o serviço público. Essa lei institui o plano de classificação de cargos e o concurso público, como também o Conselho Federal do Serviço Público, mais tarde transformado no Departamento de Administração do Serviço Público (DASP). Apesar dessas reformulações, não se institui, na verdade. a profissionalização dos serviços públicos; o que acabou ocorrendo foi uma centralização e uma concentração de poderes nas mãos de Vargas. A partir do DASP e da centralização do poder, em 1939. surge o primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, através do famoso decreto-lei 1713 de 28 de outubro. Esse incorporava o plano de classificação definido pela lei 284, de 1936.

Instituindo um regime de caráter corporativo e assistencialista, este estatuto representou um avanço para os servidores públicos, mas do ponto de vista político funcionou como um instrumento de controle voltado contra a organização da categoria. Nessa nova estruturação do serviço público, coexistiam dois regimes de trabalho, o dos extranumerários (contratados) e o dos estatutários. Embora os estatutários concursados fossem minoria no serviço público, somente a eles eram concedidos os direitos, como férias anuais, aposentadorias etc, marginalizando-se, assim, os extranumerários. Esta situação, evidentemente, privilegiava alguns funcionários, discriminando outros, embora cumprissem as mesmas funções, o que acarretava, inevitavelmente, sérias conseqüências para o serviço público.

Durante o mandato constitucional de Vargas, em 1952, é promulgado o Segundo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, através da lei 1711 de 28 de outubro de 1952. Este Estatuto abria a possibilidade de um plano de classificação de cargos, que só foi sancionado em 12 de julho de 1960, já no governo de Juscelino Kubitschek. A partir de então, os governos subseqüentes, anteriores ao golpe militar, apresentaram tentativas de reformas da administração pública, mas todas elas com o intuito claro de adaptá-la aos interesses dos grupos que compartilhavam o poder. Jânio Quadros, por exemplo, eleito com base numa plataforma "moralizadora" dos serviços públicos, nada acrescentou para a melhoria da administração: a sua mais conhecida medida foi a adoção cômica de uniforme para os servidores civis.

O regime militar

A ditadura dos militares, editou o decreto-lei 200/67 - outra medida direcionada a ajustar a administração pública aos interesses dominantes - e nada mais fez do que adaptar a administração civil ao regime militar. Note-se, porém, que o decreto 200/67 instituiu a administração direta e a indireta no serviço público. Com essa alteração de ordem estrutural advieram dois regimes de contratação: contratação com vínculo empregatício, pelo regime da CLT, e ao lado o regime do estatuto dos servidores públicos. Este modelo autoritário permaneceu em vigor, ainda que com algumas alterações, durante o período da chamada Nova República até a instituição do Regime único, pela Lei nº 8112 de 1990.

Desta história depreende-se que durante toda a existência da administração pública no Brasil (cinco séculos aproximadamente):

- A maioria da população sempre esteve excluída da participação da gestão pública e de seus benefícios.

- O Estado manteve com o servidor uma relação ao mesmo tempo autoritária, cooptativa e clientelista.

- O servidor manteve uma relação com o Estado, marcada pela conveniência pessoal e a submissão.

As elites dominantes mantiveram uma relação orgânica com o Estado privatizando-o em benefício de seus interesses. O resultado desta concepção foi a degeneração absoluta da função pública e uma cultura arraigada na maioria da sociedade, marcada pela aversão à participação no mundo público.

<--break->Regime Jurídico Único

O Regime Jurídico Único, oriundo de uma disposição da Constituição de 88, foi uma reivindicação do movimento sindical dos servidores públicos federais (SPF), que participavam ativamente da disputa do novo texto. Evidentemente, reivindicar um único regime para o vínculo de trabalho com o Estado não significava que este teria de ser o estatutário. A proposta defendida era a de que a nova norma regulamentadora das relações de trabalho no serviço público deveria estender a todos os mesmos direitos e deveres e, ainda, garantir uma relação de trabalho de caráter institucional-negocial. Esta dupla natureza resultaria em um regime capaz de dar curso às diversas disposições constitucionais sobre servidores públicos, as quais deveriam ser institucionalizadas pela legislação ordinária. Por outra parte, compatibilizaria a relação de trabalho do setor público com outros preceitos (princípios e normas) inscritos no texto constitucional, a começar pelo artigo 1º, em que o Brasil é definido como um Estado Democrático de Direito, categoria que supera a democracia representativa pela democracia participativa. Em particular, apontavam para um regime de novo tipo, capaz de viabilizar a negociação dos interesses em conflito, na relação de trabalho com o Estado, as normas que estenderam aos servidores públicos o direito à livre organização sindical e o direito de greve, que na verdade já eram praticados. O texto da Carta Política consagrou, assim, a cidadania plena dos servidores públicos, tendo reconhecida sua esfera de vontade, que se manifesta como autonomia coletiva.

Estas definições orientaram nossa intervenção na disputa que se travou na votação do Regime Jurídico Único. Isto é, defendíamos o estatuto básico, instituído pela via legislativa, e a previsão no mesmo, do direito à negociação coletiva. No momento da disputa expressava-se uma forte ofensiva das teses neoliberais defendidas pelo governo Collor, cujo alvo prioritário estava justamente no papel do Estado, de suas atribuições e, por conseqüência, nas relações com os servidores. O neoliberalismo postula um Estado mínimo, mas forte, garantia eficaz da "ordem" para a fluência dos negócios, sob a égide das leis do mercado. Para assegurar essa eficácia, propõe um Estado que funcione como uma máquina, vale dizer, isento de conflitos internos, o que tende a perpetuar a visão do servidor como "órgão" do Estado, com um ser inconsciente, portanto. Sob a influência do movimento dos servidores, o Parlamento não só aprovou a tese da negociação coletiva, como também derrubou o veto aposto por Collor.

Mais tarde, veio a derrota através do Supremo Tribunal Federal, que declarou inconstitucional a negociação coletiva no âmbito da administração pública. O resultado desta disputa é um instrumento jurídico atrasado e autoritário, que tende a garantir a unilateralidade da relação da função pública, submetendo os servidores à esfera de vontade do Estado. Naturalmente, a negociação das relações de trabalho, em que o Estado é parte, deve realizar-se no plano coletivo. Neste sentido apontam a Convenção 151 e a Recomendação 159 da OIT, aprovadas em 1978, e que foram ainda ratificadas pelo Brasil, ambas voltadas para a instituição de relações democráticas no trabalho do setor público, compatíveis com o estágio atual do Estado de Direito, denominado Estado Democrático de Direito. Estes instrumentos, além de refletir o reconhecimento da plena cidadania dos servidores públicos, constituem o impulso decisivo para a sua universalização. (FM)

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