EM DEBATE

As interceptações telefônicas feitas ao longo das operações Vegas e Monte Carlo, da PF, revelaram o diretor da sucursal de revista Veja em Brasília, Policarpo Júnior, como um interlocutor assíduo de Carlinhos Cachoeira e outros integrantes de seu esquema. Desde que foi instalada a CPMI, no Congresso Nacional, e em tempos de discussão sobre a regulação dos meios de comunicação, está colocada a questão: CPMI deve ou não convocar Veja?

Veja na CPI, por que não?

A revista deve explicações à sociedade

Veja na CPI, por que não?

O Estado democrático não confere privilégios a ninguém. Não deveria. Digo isso a propósito dessa discussão sobre a eventual convocação do jornalista Policarpo Júnior à CPI do Cachoeira – e a depender das averiguações, do próprio Roberto Civita, o todo-poderoso da Editora Abril, a mão que balança o berço da revista Veja. Do meu ponto de vista, se houver, como há, claros indícios de participação da publicação nos propósitos criminosos de Carlinhos Cachoeira, não há atalhos possíveis para evitar a convocação de um deles, ou de ambos. O jornalista Luís Nassif tem insistido que se esqueça Policarpo Júnior porque o mandante de tudo é Roberto Civita.

É evidente que a discussão sobre o relacionamento dos jornalistas com a fonte não é simples. Lembro-me de um livro que li há muito tempo, de Yves Mamou, em que ele desenvolve a tese de que, longe de os jornalistas manipularem as fontes, são estas que os manipulam. É uma formulação que, em minha opinião, está muito próxima da verdade – ele trata no livro tanto do mundo dos negócios quanto do território da política.

Não há e não pode haver ingenuidade nessa relação, que é sempre um intercâmbio, uma troca. Há, sempre, um toma lá, dá cá – perigoso, tenso, delicado, sensível. E, nesse jogo, o jornalista pode esforçar-se para defender os interesses da sociedade, e não são todos que conseguem esse feito. Há aqueles que se submetem à fonte, aos interesses exclusivos da fonte, e aí, é claro, a notícia verdadeira, ou mais próxima da verdade, é sacrificada. E isso, como sabemos, não é raro.

Essa relação, nos dias de hoje, não pode ser pensada em termos individuais, como se o problema se circunscrevesse apenas à relação entre a fonte e o jornalista. Hoje, os jornalistas saem às ruas com a pauta pronta, com a ideia de provar uma hipótese elaborada na redação. São os editores que guiam os repórteres na sua relação com as fontes, mesmo que cada um tenha suas singularidades. Alguém pode imaginar um repórter de Veja cismando de pesquisar, aprofundar as denúncias contidas no livro do Amauri Júnior sobre as privatarias tucanas? Ora, ora, claro que não. A relação é mediada desde cima – a orientação editorial é que comanda a pauta e a relação fonte-jornalista, e o faz com mão de ferro, que ninguém se engane.

Dito isso, volto a nossa revista. Sabidamente, Veja se dedica, de modo militante, e sem nenhum escrúpulo, a combater o projeto político que o PT comanda no Brasil desde 2003. É uma revista filosófica e politicamente de direita – e nisso não haveria, em tese, nenhum mal. Bastava que fizesse isso observando algumas lições de manuais do jornalismo, que não chutasse tanto, não mentisse de modo tão desavergonhado, não fosse tão irresponsável e, agora podemos dizer, tão murdochiana. Sua visão tão sectariamente partidária – no amplo sentido da palavra, de ter um lado do qual não abre mão – faz com que mande às favas quaisquer escrúpulos e use quaisquer métodos, inclusive criminosos. O que fez Rupert Murdoch senão valer-se da arapongagem? E a Inglaterra soube reagir aos crimes daquele cidadão e suas empresas.

O que fez a revista nessa relação com sua fonte, Carlinhos Cachoeira? Poderia dizer que nos últimos anos tornou-se refém dela. Isso, no entanto, seria pouco. Veja terceirizou a pauta – é fácil perceber, pelo pouco que ainda sabemos, as muitas pautas que a fonte criminosa encomendou à revista, e foi prontamente atendida. Ou como a fonte atendeu a pedidos da revista para usar seus arapongas e construir matérias, verdadeiras ou falsas, muito mais falsas que verdadeiras. Pelas escutas divulgadas, a fonte comemorou tantas vezes o que Veja fazia, tudo previamente combinado. Muitas vezes comemorou com o senador Demóstenes Torres.

E é claro que Veja sabia quem era Carlinhos Cachoeira, a natureza de seus negócios, quem eram seus arapongas criminosos, quem era o senador Demóstenes Torres. Que justificativa há para tal, vá lá, conivência? Que justificativa há para tão íntima convivência? Que justificativa há para acobertar tantos crimes, inclusive contra o erário, que Veja, nos casos que seleciona, no mais das vezes sem critério, diz defender?

A CPI, instrumento que Veja sempre defendeu, é um instrumento do Estado de Direito. É um espaço democrático. Por que o medo da CPI? É só a revista se apresentar, se convocada, e provar que os mais de duzentos telefonemas trocados entre seu jornalista e Carlinhos Cachoeira atenderam aos critérios do bom jornalismo, aos interesses da sociedade. Ou não. E, se não, enfrentar as consequências. Simples assim.

Emiliano José é professor-doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

A revista deve explicações à sociedade

Um dos méritos das investigações da Polícia Federal que desvendaram os tentáculos da organização criminosa do contraventor goiano Carlos Cachoeira é mostrar claramente o que já se sabia ou suspeitava: as relações íntimas da revista Veja com a arapongagem clandestina. Afora as inúmeras matérias inventadas – como as supostas ligações das Farcs com o PT –, a revista, desde 2003, especializou-se em utilizar gravações clandestinas com fins políticos, eleitorais e ideológicos. Em alguns casos, usou até supostos grampos sem áudio – como o que teria feito de conversa entre uma das principais fontes da revista, o senador Demóstenes Torres (ex-DEM) e um ministro do STF. A PF comprovou depois que o suposto grampo nunca existiu, mas os danos já estavam feitos. Criou-se uma grave instabilidade institucional, em 2008, e chamuscou-se a biografia de pessoas honradas.

Com o histórico do semanário e as interceptações telefônicas feitas ao longo das operações Vegas e Monte Carlo, da PF, fica evidente a necessidade de convocação do diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Júnior, interlocutor assíduo de Cachoeira e outros integrantes de seu esquema criminoso. O jornalista, chamado pelos criminosos, em alguns momentos, como PJ, Poli ou Caneta, é testemunha-chave nos trabalhos da CPI Mista que procura ampliar as investigações da PF sobre as ligações de Cachoeira com agentes públicos e privados.

Uma das dúvidas refere-se aos limites das relações entre jornalista e fonte. Escutas telefônicas feitas pela PF na Operação Monte Carlo revelam a troca de duzentos telefonemas entre o contraventor e Policarpo, para a discussão de pautas favoráveis ao esquema do criminoso. Essas gravações exigem esclarecimentos do funcionário da Editora Abril, que edita a Veja. Não virá como réu, mas na condição de convocado. O fato de ser jornalista não o coloca acima dos interesses da sociedade, que exige transparência também da imprensa.

Além do mais, é preciso lembrar que Policarpo já testemunhou a favor de Cachoeira, em uma representação que envolvia o nome do bicheiro no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, em janeiro de 2005. Na ocasião, Cachoeira acusava um parlamentar de tentar extorqui-lo, por causa das investigações da CPI da Loterj, da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Policarpo foi depôr a favor do bicheiro na Câmara dos Deputados, mas naquela época – ao contrário de hoje – ninguém questionou e afirmou que se tratava de uma “ameaça” à liberdade de imprensa. Por que, agora que se mostram vínculos obscuros entre ele e o bicheiro, haveria problema em ouvi-lo na CPI Mista? Ou será que outros meios de comunicação também teriam vínculos com a mesma organização criminosa?

Na semana passada, o depoimento, na CPI, do delegado federal Matheus Mela Rodrigues, coordenador da Operação Monte Carlo, jogou luzes sobre o caso e complicou a situação da revista, embora a cobertura da mídia diária tenha tentado salvar a pele da publicação dos Civita.  Segundo o policial,  Policarpo Junior tinha conhecimento da relação entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e o senador Demóstenes Torres. O depoimento contraria a versão de que o repórter e a publicação, assim como muitos eleitores, foram enganados pelo senador, alçado em suas páginas a “mosqueteiro da ética” e paladino da moralidade. Como lembra Carta Capital: “Veja não só não denunciou um parlamentar envolvido até o último fio de cabelo com um contraventor como o promoveu a ídolo da fatia conservadora do eleitorado brasileiro. Ao promover Torres, a revista manteve um meliante no Parlamento”.

A revista avançou o sinal em várias ocasiões e terá que se explicar. O delegado Rodrigues revelou também que as câmeras que filmaram os corredores do Hotel Naoum, em Brasília, para a reportagem “O poderoso chefão”, na qual Veja lança suspeitas sobre o encontros do ex-chefe da Casa Civil José Dirceu com integrantes do governo, não eram as do circuito interno. O delegado afirmou que as câmeras teriam sido trocadas a pretexto de levar as originais ao conserto. Em resumo: as gravações que serviram de base para a reportagem foram flagrantemente ilegais, o que configura invasão de privacidade, direito assegurado na Constituição brasileira.

Um debate que se faz necessário é sobre a liberdade de imprensa. O PT surgiu tendo como bandeira a liberdade de imprensa. Hoje, veículos que querem nos impingir a pecha de censores ou cerceadores da liberdade de imprensa, esquecem-se que, durante a ditadura militar (1964-85), apoiaram os golpistas que durante 21 anos usurparam o poder e vilipendiaram a democracia no Brasil.

Na Inglaterra, há sete jornalistas presos por terem usado grampos ilegais para fazer matérias que mancharam a honra alheia. O Parlamento inglês empreende uma investigação para apurar métodos criminosos das organizações do magnata das comunicações Rupert Murdoch. O objetivo é coibir essas práticas e fortalecer a liberdade de imprensa e a democracia. Em nenhum momento se questiona o Parlamento inglês por supostamente ameaçar os pilares da democracia. No Brasil, entretanto, o assunto parece tabu e os barões da mídia se colocam como os donos da liberdade de imprensa e verdadeiros arautos do que seria o verdadeiro interesse público.

Para a Veja, aparentemente, liberdade de imprensa resume-se ao que faz desde 2003, com ataques, mentiras e invenções contra o PT, movimentos sociais e setores progressistas. A revista agora ataca os blogs de esquerda por veicularem material em que o jornalismo marrom da editora Abril é desmascarado. A mesma revista que sempre condenou a proposta do PT de democratizar os meios de comunicação – incluindo a descentralização na distribuição de verbas publicitárias públicas e estatais – agora passou a atacar os blogs de esquerda e a internet. Isso porque, na semana passada, sofreu um “tuitaço” que a colocou pela terceira vez nos termos mais citados do Twitter mundial, com a hashtag #vejapodrenoar. A revista, agora, como nas ditaduras, prega uma “governança mundial” para a internet, já que se sente atacada na rede. Na realidade, deixa claro que faz um movimento de autodefesa diante da eventual convocação de Policarpo Junior.

Os trabalhos da CPI do Cachoeira poderão dar um basta a relações promiscuas entre alguns jornalistas brasileiros e criminosos. Liberdade de imprensa não é manter relações íntimas com o crime organizado e contraventores como Cachoeira.

Lamentavelmente, até o momento, parte da grande mídia tem ignorado as consequências perversas, para o jornalismo brasileiro, dos métodos operados por Veja e a quadrilha de Cachoeira para a fabricação de matérias. A democracia brasileira merece muito mais do que um jornalismo pautado por criminosos. E a sociedade espera os esclarecimentos necessários de quem usou expedientes obscuros, com ajuda do submundo do crime, para fazer “reportagens” para favorecer interesses políticos, econômicos e ideológicos.

Jilmar Tatto é deputado federal (PT-SP) e líder do partido na Câmara Federal

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