EM DEBATE

Visando contribuir para o processo de preparação do II Congresso, no número anterior de Teoria&Debate demos início ao debate sobre os rumos do PT e do país, publicando artigos dos deputados federais José Genoíno (líder da bancada) e Nelson Pellegrino (PT/BA) e do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho.

Dando continuidade ao mesmo, neste número trazemos as contribuições dos deputados federais Aloízio Mercadante e Milton Temer, da senadora Heloísa Helena com o dirigente partidário Carlos Henrique Árabe e do ex-governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque.

Além da resistência

O PT e a crise

PT para quê?

O começo do novo século

Além da resistência

Menos que obra de fatores externos, a situação em que nos encontramos é conseqüência das opções político-econômicas adotadas pelo atual governo, fundadas no receituário neoliberal, e que conduziram o país a uma integração subordinada e passiva no processo de globalização financeira, deixando-o totalmente vulnerável aos movimentos especulativos do capital financeiro internacionalizado.

Foi em função destas opções que acumulamos, no quadriênio 1994/98, um saldo negativo nas transações correntes do balanço de pagamentos superior a US$ 110 bilhões, dos quais quase US$ 58 bilhões correspondem a despesas líquidas com juros e remessas de lucros para o exterior.

Foram estas mesmas opções que nos levaram a torrar, nestes quatro anos, US$ 59 bilhões em gastos de viagens internacionais e em importação de bens de consumo.

É também conseqüência destas opções que, apesar de ter pago no período US$ 87,8 bilhões de amortizações da dívida externa, o país tenha aumentado seu endividamento externo, fazendo com que o serviço da dívida passasse a representar 97% do total das nossas receitas de exportação (contra 20% em 1994) e somente o item "despesas brutas com juros" passasse a absorver 37% destas receitas.

Este quadro de desequilíbrios cumulativos deslocou para níveis extraordinariamente altos e crescentes as necessidades de captação de recursos externos, fazendo com que o coeficiente de alavancagem (captação bruta de recursos externos/reservas) saltasse de 1,1 em 1994 para 3,3 em 1998.

A percepção da insustentabilidade deste padrão de financiamento externo da economia por parte dos próprios agentes financeiros já era suficiente, independentemente de outros aspectos, para abrir espaço aos ataques especulativos que se sucederam a partir da crise russa. Somado ao endividamento público exponencial e ao crescente peso das despesas de juros na conformação do déficit público - fatores cujo crescimento tende a aumentar os riscos de insolvência do Estado -, este aprofundamento dos desequilíbrios externos somente poderia desembocar - como de fato desembocou - numa crise cambial de graves proporções.

<--break->Atribuir a presente crise e seus desdobramentos à ausência das mal chamadas "reformas" e ao peso dos gastos com pessoal e com seguridade social no déficit público é uma interpretação tendenciosa e equivocada da realidade, que visa eximir o atual governo de suas responsabilidades e obscurecer o fato de que o déficit fiscal é conseqüência - e não causa - dos crescentes endividamentos interno e externo gerados pelo modelo de inserção e financiamento externo da economia. Foram as altas taxas de juros utilizadas para atrair capitais do exterior ou desestimular sua fuga do país e a liberalização das normas de entrada e saída de capital que deterioraram as finanças públicas, elevando o déficit operacional e expandindo exponencialmente o endividamento público.

A sobrevida deste modelo econômico, plasmada no acordo assinado com o FMI, está significando - e pode significar ainda mais no futuro - a degradação da situação econômica e a cassação de direitos sociais da população trabalhadora, inclusive de seus extratos médios, jogando sobre seus ombros os custo do novo "ajuste recessivo" necessário para preservar os ativos e os rendimentos do capital financeiro instalado.

O governo teve, ao longo dos últimos anos, várias oportunidades para corrigir a sobrevalorização do câmbio e, conseqüentemente, desvincular a taxa de juros interna dos movimentos de capital externo. Optou por insistir, contra todas as advertências de opositores, alguns aliados e inclusive de instituições internacionais, numa política econômica insustentável, tanto pelos custos econômicos e sociais impostos ao país quanto pela instabilidade intrínseca e pela centralidade decisória do ordenamento internacional dentro do qual se inseria. Terminou tendo que aceitar uma desvalorização tardia e desastrada, muito maior e muito mais custosa, imposta pelo "mercado", no bojo de uma crise cambial da qual sairemos, monitorados pelo FMI, em condições muito piores.

A aparente melhoria recente no quadro macroeconômico - regressão da taxa de câmbio, redução da taxa de juros, retomada de negociações pontuais de rolagem de dívidas de empresas etc. - não significa que "o pior já passou": a conjuntura continua marcada pelos signos da incerteza, da instabilidade e da volatilidade e é impossível prever até onde podem chegar os efeitos e desdobramentos da atual crise.

Crise de hegemonia

A crise do modelo de desenvolvimento nacional-desenvolvimentista deixou um espaço vazio no debate político-econômico latino-americano, que foi ocupado pelo neoliberalismo.

A esquerda enfrentou um período defensivo, especialmente com a queda do Muro de Berlim, mesmo para os setores que sempre foram críticos do chamado socialismo real, como o PT. O fracasso da experiência de construção do socialismo, longe de refletir uma vitória do capitalismo, foi a derrota de uma utopia histórica de construção de uma sociedade mais fraterna, igualitária e solidária. Este processo abriu um processo de redefinições, de reconstrução teórica, de reelaboração de estratégias e políticas. Um processo teórico e histórico internacional difícil e inacabado.

A crise do Plano Real abriu um novo contexto. A reeleição de FHC foi acompanhada de um escandaloso processo de estelionato eleitoral e de subestimação da crise econômica que deslegitimou o governo e alterou a correlação de forças na sociedade. A crise econômica, associada aos impactos sociais da política econômica recessiva e ortodoxa do FMI, deteriora a base de sustentação do governo FHC.

O descontentamento popular cresce na mesma proporção da crise de credibilidade do governo. O discurso neoliberal está fragilizado. Os serviços públicos privatizados apresentam uma deterioração de qualidade com os apagões no setor elétrico e a perda de qualidade na telefonia. As denúncias e todos os indícios de fraude nos casos Sivam, pasta rosa, compra de votos na reeleição, privatização da Telebrás vão fragilizando a base de sustentação de FHC.

As denúncias de inside information - que podem explicar o comportamento de grandes bancos internacionais que alteraram suas posições no mercado de câmbio no dia 12 de janeiro, um dia antes da desvalorização cambial -, associadas ao favorecimento dos Bancos Marka e Fontecindam pelo BC, bem como os mecanismos fraudulentos de remessa de capitais para o exterior por parte de grandes bancos, vão revelando a intimidade do relacionamento do governo com o grande capital financeiro internacional. Os prejuízos de R$ 7,6 bilhões do BC na especulação no mercado futuro do dólar e o lucro espetacular dos bancos nos meses de janeiro e fevereiro reforçam o sentimento de indignação popular.

Depois de quatro anos sem apuração de fraudes e corrupção, as CPIs do Judiciário, do sistema financeiro, da Telefônica privatizada, da máfia dos fiscais em São Paulo, ainda que sob o controle e a passividade da base de sustentação parlamentar do governo, vão mudando o comportamento do Poder Legislativo. O Congresso Nacional, que esteve totalmente submisso à agenda neoliberal do governo nos últimos quatro anos, começa a tomar iniciativa, não apenas nas CPIs, e cria mais um elemento de desestabilização política do governo FHC.

Há graves contradições no bloco conservador que sustenta o governo. Há tensões crescentes na base de sustentação parlamentar e as disputas por espaço político entre PMDB, PFL e PSDB tendem a acirrar os conflitos e abrir novos espaços para a oposição.

Estamos iniciando um período de crise de hegemonia política, com a crise da estratégia neoliberal tardia que caracterizou o primeiro governo FHC.

O quadro de novas turbulências financeiras e colapso econômico e político do governo é possível, mas certamente não é o único cenário do próximo período. A grave crise econômica e o descontentamento social tendem a agravar a crise política e podem transformá-la em crise institucional. Mas o governo ainda dispõe de grande força, portanto de margem de manobra para evitar este cenário de degradação completa da sua base de sustentação.

Em primeiro lugar, porque a desvalorização cambial controlada pode alavancar as exportações, permitindo uma certa recuperação da economia a partir do segundo semestre. A recuperação dos superávits comerciais diminui o nível de exposição do país ao capital especulativo internacional, reduzindo a vulnerabilidade e a instabilidade da atual conjuntura econômica. Em segundo lugar, a grande mídia está muito fragilizada pelo seu elevado nível de endividamento externo e depende diretamente do relacionamento com o governo. Em terceiro lugar, a oposição, apesar de todos os avanços, não tem conseguido transformar todo o descontentamento popular em movimento político capaz de confrontar globalmente o modelo econômico e o projeto FHC.

A estratégia econômica do governo foi substancialmente alterada com a política da flutuação suja do câmbio, abrindo a agenda para o tema do desenvolvimento e para uma mudança de rumo na economia. Mas esta alteração não significará necessariamente uma ruptura do modelo neoliberal. As forças conservadoras que sustentam FHC, monitoradas pelo FMI, procuram recuperar a iniciativa das ações em direção ao aprofundamento do modelo.

O setor neoliberal mais ortodoxo, dentro e fora do governo, defende as privatizações da Petrobrás, do Banco do Brasil e da CEF; as negociações em direção à Alca (Área de Livre Comércio das Américas); e a implantação do currency-board, dolarizando a economia brasileira.

Este caminho significará a desconstituição da Nação. Não haverá Estado nacional sem um setor público estratégico, pelo menos nas áreas de energia e financiamento público. Abdicar da moeda nacional em um país com vocação comercial multilateral como o Brasil é um suicídio histórico. Perderíamos totalmente o controle sobre as políticas cambial e monetária.

A primeira tarefa das forças de esquerda é criar um amplo movimento político capaz de inviabilizar esta saída conservadora que interromperá de forma definitiva o próprio processo de construção do Brasil como Nação. Mas não basta resistir.

Alternativas

O PT tem uma imensa responsabilidade nesta nova conjuntura. Teremos que estabelecer uma estratégia política que articule nossa intervenção em três níveis: nos parlamentos, em especial no Congresso Nacional; nos estados que governamos ou participamos do governo; e nos movimentos populares.

O PT iniciou a campanha presidencial sem um diagnóstico preciso sobre a evolução da crise e o eixo da campanha. Porém, ainda que tardiamente, a campanha soube pautar o tema da crise e demarcar campo com a candidatura de FHC e sua estratégia de estelionato eleitoral.

Foi correta a posição do partido de defender na campanha eleitoral a centralização do câmbio como resposta ao cenário de desestabilização cambial deflagrado pela crise russa. A centralização do câmbio representa um contingenciamento de todos os compromissos externos. É, na prática, a suspensão do pagamento da dívida externa e mais que isto, porque envolve todos os compromissos cambiais, como remessa de lucro e outros. O cenário de instabilidade financeira internacional e a própria atitude da Malásia abriam espaço para uma atitude de defesa das reservas cambiais do país, que estavam no patamar de US$ 70 bilhões. Uma atitude soberana do Brasil recolocaria o tema da renegociação da dívida externa. A construção de um orçamento cambial e os novos mecanismos de controle do câmbio, que deveriam acompanhar sua centralização temporária, poderiam reverter o processo de liberação incondicional do mercado de capitais e o elevado nível de exposição do país ao capital financeiro especulativo internacional. Seria uma opção de elevado custo econômico e social, especialmente pelo profundo processo de desestruturação produtiva e dependência de produtos e insumos importados. Mas representaria uma nova atitude frente à globalização, revertendo a postura de inserção passiva e subordinada.

Outro fator relevante na discussão de estratégias frente à dívida externa é que hoje, diferentemente dos anos oitenta, a dívida é predominantemente privada e seu crescimento não foi decorrente da política de juros dos EUA, mas produto direto das privatizações e da irresponsabilidade da política econômica marcada pelo populismo cambial do primeiro governo FHC.

Não haverá mais saída fácil e rápida para a situação econômica e financeira. As dívidas externa e interna deixam uma pesada herança associada a um profundo processo de desnacionalização e desestruturação produtiva. A dívida interna pressiona e deteriora a qualidade do crédito público e do orçamento. O alongamento negociado de seu perfil é outro tema delicado mas fundamental para o resgate dos instrumentos de política econômica.

O país precisa enfrentar com determinação seus graves problemas macroeconômicos, mas sobretudo construir uma estratégia de resistência histórica frente ao flagrante processo de desconstituição da Nação.

O eixo fundamental de nossa proposta deve ser um novo modelo de desenvolvimento sustentável. Em primeiro lugar, a defesa da produção e do emprego rumo à constituição de um amplo mercado de consumo de massas e serviços públicos essenciais. Em segundo, um novo contrato social que enfrente a exclusão e promova justiça social. Em terceiro, um contrato ecológico que preserve o imenso patrimônio ambiental do país, com ênfase em propostas como o turismo ecológico. Finalmente, a radicalidade democrática, ampliando as dimensões de cidadania, reconstruindo os mecanismos de participação popular e democracia direta. É nesta direção que o PT precisa construir uma política de transição que rompa globalmente com o atual modelo econômico e que deve se materializar em uma agenda alternativa que nos permita disputar a hegemonia, como alternativa de governo e poder na sociedade.

A política de transição deve ter algumas grandes diretrizes econômicas orientadas para o combate ao desemprego e a exclusão social:

• Impulsionar a agricultura e a reforma agrária. Temos um imenso potencial agrícola e podemos ocupar com muito mais racionalidade o imenso território nacional. A meta de produção de 120 milhões de toneladas de grãos em quatro anos exige quadruplicar a produção de calcário e dobrar a de fertilizantes entre outras medidas complementares. A agricultura é uma resposta rápida e contribui para melhorar o padrão alimentar da população, gera divisas cambiais, emprego e renda no campo. Por isto, deve estar acompanhada de ampla reforma agrária e do apoio à pequena agricultura familiar.

• Recompor a infra-estrutura nacional. O endividamento público, associado ao processo irresponsável de privatização, está comprometendo perigosamente os setores de energia, transportes e telecomunicações. O apagão do dia 11 de março, que atingiu 100 milhões de pessoas, é um exemplo de como o sistema está trabalhando no limite e não suporta a retomada do crescimento econômico sustentado. Definir um plano nacional de infra-estrutura, desenvolver novos mecanismos de financiamento e desencadear um amplo plano de investimentos serão decisivos para a transição em direção a um novo modelo de desenvolvimento. Os investimentos em infra-estrutura devem ser acompanhados de amplo programa de habitação popular e saneamento básico. Experiências como urbanização de favelas, mutirões, melhorias nos cortiços e construção de casas populares têm grande impacto no mercado de trabalho e na qualidade de vida da população.

• Educação, associada à política de cultura, ciência e tecnologia. O problema estrutural mais grave do país é o atraso educacional. Universalizar e democratizar a escola pública de qualidade é o grande desafio histórico desta geração. Propostas como a bolsa-escola deveriam ser um símbolo das administrações petistas e uma prioridade absoluta de nossos governos.

• Economia solidária. Esta é outra experiência inovadora e que deveria ganhar muito mais importância na reflexão partidária e na atuação de nossos governos. São novas formas de gerar emprego e renda a partir da organização dos excluídos. O desemprego já atinge 20% na Grande São Paulo. Só para absorver 1,7 milhão de jovens que chegam no mercado de trabalho todo ano precisamos crescer 6,0% do PIB ao ano. É urgente a definição de políticas de emprego e de fomento da pequena economia de sobrevivência urbana e rural, impulsionando a economia solidária.

A definição de uma nova política industrial e de comércio exterior, a defesa de uma reforma tributária que associe os princípios de simplicidade, desburocratização e harmonia à justiça fiscal, taxando com progressividade a renda e a riqueza, são alguns instrumentos importantes destas diretrizes centrais.

O PT não pode mais reduzir sua intervenção ao papel jacobinista que teve no passado. Fomos decisivos na campanha das diretas, mas o governo saiu do Colégio Eleitoral com Sarney. Tivemos um papel fundamental na CPI do Collor e na mobilização para o impeachment, mas ficamos fora do governo Itamar, que gestou a recomposição neoliberal com FHC. Temos que mobilizar a Nação contra este governo e sua política recessiva e neoliberal, mas nosso maior desafio é disputar a hegemonia e a agenda em direção a um novo modelo de desenvolvimento. O PT precisa ir além do basta FHC e FMI!, precisa governar com criatividade e competência as cidades e os estados onde o povo nos escolheu. O PT precisa recompor o pacto partidário, romper sua vocação de oposição e minoria, disputando a condição de alternativa de governo e poder na sociedade brasileira.

Aloizio Mercadante é deputado federal do PT/SP, presidente da Comissão de Economia da Câmara Federal e vice-presidente nacional do PT.

O PT e a crise

Mais que uma crise econômica, estamos frente à crise do "modelo" econômico. A situação nacional também expressa uma crise de legitimidade do governo, mostrando que a sociedade brasileira não foi domada pelo neoliberalismo e que há sinais profundos de que algo, enfim, se move.

Estes dois elementos, combinados, indicam um momento novo e pleno de possibilidades para a luta política do ponto de vista da esquerda.

Em 1989 tivemos uma situação com alguma semelhança. Mas existiam, naquele momento, diferenças significativas: uma oposição de esquerda disposta a disputar os rumos do país e uma grande atividade política e sindical de massas. Estes aspectos essenciais fazem falta hoje, mas a crise atual permite recolocá-los como nossos principais desafios.

A crise cambial de janeiro encerrou um período de mais de quatro anos em que se procurou ordenar um rumo geral para a economia tendo como base a estabilização de preços com âncora cambial. Os princípios que vêm regendo esta ampla reorientação da economia vêm de mais longe: desde o final do governo Sarney, as classes dominantes adotaram um curso rígido de desmonte do Estado desenvolvimentista com um vasto programa de privatização e de subordinação crescente ao mercado internacional, reduzindo, a passos largos, a autonomia relativa de que dispunham para dirigir o capitalismo no Brasil. Este processo se deu em meio a conflitos e só ganhou coerência e velocidade com o governo FHC. E mesmo aí desenvolveu-se com problemas derivados, sobretudo, da extrema dependência em relação ao capital internacional: já em 1995, iniciou-se um estancamento do crescimento inicial provocado pela estabilização, sob efeito da crise mexicana; em 1997, o baixo crescimento continuou sob o impacto da crise asiática; em 1998, sob pressão da crise russa, foi adotada uma política de recessão. Esta evolução mostra que um dos elementos que permitiu o desenvolvimento capitalista brasileiro - uma relativa autonomia nacional - deixou de existir. E que, exatamente por isso, o país passou a acompanhar, sem resistência e sem alternativa, a série de crises na periferia. Este regime, no entanto, durou mais de quatro anos e foi decisivo para alicerçar a legitimidade de FHC.

A perda de legitimidade de FHC não se deveu apenas aos percalços econômicos. As eleições de 1998 (e também as de 1996) expressaram alterações na correlação de forças sociais, com vitórias expressivas do PT (principalmente no Rio Grande do Sul) e de setores oposicionistas (destacando-se a vitória de Itamar Franco, que passou a representar a mais importante dissidência a partir do campo dominante). Estas alterações, no entanto, não podem ser exageradas: fomos derrotados na eleição presidencial em primeiro turno.

A combinação entre a perda de legitimidade e o fim do Plano Real potencializa um conjunto de conflitos, abrindo um período de crise latente, cujo ritmo depende da luta política. Recoloca na cena nacional elementos de uma crise nacional, ou seja, a possibilidade de os problemas políticos, econômicos e sociais se retroalimentarem, de os impasses se acumularem e, sobretudo, de que a grande questão de uma saída nacional do ponto de vista dos trabalhadores possa ser novamente colocada em disputa.

Diferente, no entanto, do período de 1988-89, quando se instalou no país uma grande crise - que denominamos crise nacional - não encontramos um fator chave presente naquele momento e ainda ausente hoje: uma alternativa política disposta a disputar uma via antagônica à imprimida pelas classes dominantes. Desenvolver (e recriar) esta vontade e esta alternativa é a chance que a crise oferece.

A situação internacional

Desde os anos 80 a economia mundial vem crescendo lentamente, aprisionada entre um crescimento lento da demanda a partir das políticas neoliberais e uma menor produção global da massa de mais-valia (apesar do aumento da taxa de exploração nas últimas décadas), já que uma fração crescente do capital mundial gira nos circuitos financeiros, não se acumula produtivamente e portanto participa da disputa pela mais-valia global sem acrescentar-lhe nada. Além disso, a economia mundial vem passando por surtos de instabilidade, cuja possibilidade de ocorrência é reforçada pela crescente desregulamentação financeira.

Dadas as relações de força políticas e econômicas, estes processos penalizam sobretudo os países dependentes, e deixam os Estados Unidos numa posição relativamente melhor. A evolução da economia mundial nos próximos meses - se apenas prosseguirá na atual "desaceleração desigual" (recessão em várias zonas sem que haja uma recessão generalizada), ou se mergulhará numa recessão generalizada - dependerá fundamentalmente da evolução dos EUA.

Desde 1991 os EUA não vivem uma recessão, mas seu crescimento vem sendo medíocre, se comparado às décadas de 50 e 60; o desemprego é o mais baixo desde os anos 70, mas superior ao das décadas de 50 e 60; o trabalho precário aumentou e a tendência é de queda dos salários. Sua prosperidade relativa vem se beneficiando de dois mecanismos, um perigoso a longo prazo, o outro muito efêmero.

O primeiro é o endividamento crescente com relação ao Japão e à Europa, que vem permitindo que os EUA cresçam apesar de terem uma taxa de poupança privada próxima de zero. Até agora, esse endividamento não criou grandes problemas, graças à posição privilegiada do dólar. Mas é difícil que isso possa durar indefinidamente.

O segundo refere-se aos efeitos da própria crise em países do Terceiro Mundo, sobretudo na Ásia. Esta crise enviou capitais para os EUA e também levou à redução dos preços dos produtos por eles importados dos países que tiveram suas moedas desvalorizadas. Com isto, tem sido possível combinar baixa da taxa de juros nos EUA e queda da inflação. Mas enquanto os efeitos positivos para os EUA da crise já se manifestaram e em grande parte se esgotaram (não há mais capitais para fugirem para lá), os efeitos negativos começarão a pesar mais, sobretudo o agravamento do déficit da balança comercial, e portanto o crescimento mais rápido do endividamento do país, ao lado de problemas para os produtores norte-americanos (que terão dificuldades crescentes para exportar e sofrerão maior concorrência de importados).

Diante disso, o mais provável é que a desaceleração da economia mundial prossiga, atingindo também os EUA e chegando a uma recessão generalizada.

A situação brasileira

A economia brasileira vinha entrando em recessão desde o segundo semestre de 98. Com a desvalorização do real em janeiro, esta tendência se acentuou. Além disso, essa desvalorização veio junto com uma crise cambial e uma ameaça de quebra do país. E trouxe de volta o risco da inflação, que foi contido pela própria violência da recessão e pelos esforços do governo no sentido de evitar a todo custo a reindexação da economia. Novos incentivos foram dados aos aplicadores externos - em particular nova rodada de aumento da taxa de juros - e eles começaram a voltar no mês de março. Com isto, as reservas começaram a recompor-se e o real recuperou-se diante do dólar, o que ajuda a controlar as pressões inflacionárias e abre espaço para reduções das taxas de juros (que, é claro, continuam ainda extremamente altas). Com isto, o clima na mídia mudou bastante desde o fim de março e começa a ser difundida uma idéia de que o pior já passou.

Esta, no entanto, é uma visão superficial. É importante ter claro que o que seria a mudança decisiva no setor externo da economia - um crescimento vigoroso das exportações - ainda não ocorreu. Pelo contrário, estas até caíram. Isto porque os obstáculos são grandes: dificuldade de financiamento, desorganização da economia, desaceleração ou recessão da economia mundial e queda dos preços das commodities (que têm um peso importante na pauta de exportações brasileiras). A meta de 11 bilhões de dólares de superávit comercial em 1999, que consta do acordo com o FMI, certamente não será atingida.

Sem exportações crescentes, a dependência externa continua aumentando - o Brasil está cada vez mais vulnerável às turbulências internacionais - e o principal fator que deveria levar à saída da recessão não funciona, com o que esta tende a durar mais tempo.

Além disso, é preciso ter em conta que se exige das exportações brasileiras algo muito mais significativo do que o que permite os 11 bilhões de dólares de saldo comercial citados (nível de saldo comercial que o Brasil teve por vários anos até 1994). Importa, sobretudo, reduzir o déficit das transações correntes (basicamente balança comercial mais balança de serviços). E o déficit na balança de serviços passou a um nível qualitativamente maior, com o acelerado crescimento dos passivos externos desde 94. Ou seja: a dívida externa do Brasil é muito maior (ultrapassa os 200 bilhões de dólares) e a propriedade estrangeira de empresas que atuam no Brasil ou de ações é muito maior. Com isto, os pagamentos de juros sobre a dívida externa e as remessas de lucros são muito maiores do que antes de 1994.

É preciso lembrar também que uma questão que pesa muito nas avaliações dos aplicadores financeiros internacionais é a do déficit público brasileiro. Ele foi agravado pela desvalorização de janeiro (a Folha de S. Paulo, de 14/04/99, divulga que o país perdeu R$103 bilhões com a desvalorização - cinco vezes a receita da venda da Telebrás). E será mais agravado pela recessão (que leva à redução da arrecadação). O aperto fiscal promovido a partir das exigências do FMI certamente não é suficiente para compensar estes efeitos. A trajetória futura é no mínimo duvidosa.

Enfim: mesmo sob o ponto de vista estrito da questão que deflagrou a crise de janeiro - a questão cambial - a situação está longe de estabilizada.

Mas é claro que a situação econômica tem de ser analisada de um ponto de vista mais amplo. Os efeitos sócio-econômicos da crise estão longe de estarem superados.

O desemprego não se reduzirá nos próximos meses e tende inclusive a agravar-se. Os salários não recuperarão as perdas que tiveram. O problema do déficit público continuará a pesar e a provocar deterioração dos serviços públicos. E, para agravar todo este quadro, a economia brasileira é hoje mais dependente do que até 1994 e sofrerá com maior intensidade diante das turbulências internacionais.

As primeiras lições

Qual a margem de manobra para o governo FHC executar uma política tão antipopular, ou seja, para viabilizar a via entreguista de saída da crise? De outro modo: qual a estratégia da esquerda para transformar uma crise latente em oportunidade para o fortalecimento de uma outra saída?

Os primeiros conflitos políticos nesta nova situação foram marcados pela oposição dos governadores do PT, PDT, PSB e de Itamar Franco aos acordos de pagamento da dívida dos estados. Mostraram seu limite por dois fatores:

  • não havia uma estratégia geral definida, em particular pelo PT. Melhor dizendo, a estratégia partidária adotada, num primeiro momento, privilegiou a oposição à política econômica (reduzindo, portanto, seu alcance, justamente em um momento de perda de legitimidade política do governo FHC). Tratava-se de uma posição de meio caminho, que não incorporava um conjunto de tarefas que a crise evidenciava e induziu (ou corroborou) a política dos governadores a uma linha dupla (e contraditória), de conflito econômico e convivência política com o governo FHC;

  •  havia uma visão muito limitada de criar condições de governabilidade para a oposição (que seriam dadas pelo recuo do governo federal na questão da dívida), subestimando, portanto, o alcance da crise do país. Mesmo com o eventual recuo do governo, a margem de decisão dos governos estaduais continuaria muito estreita, submetida à recessão, à pressão do corte de gastos e ao rumo geral do país.

Mas é preciso ver também que a expectativa de um conflito nacional protagonizado pelos governadores de oposição não pode substituir a idéia de um grande conflito em que entram em cena partidos (com o papel decisivo e insubstituível do PT) e movimentos políticos de massa. O que é correto dizer é que a atuação dos governadores do PT foi limitada dentro do papel que poderiam jogar. Neste quadro sobressaiu o conjunto de iniciativas de Itamar.

A luta por um novo governo

Os debates travados no PT são decisivos para definir os rumos da oposição. Isto ocorre não só porque somos o maior partido de esquerda, mas porque somos o partido de esquerda mais avançado. É preciso lembrar que no interior do que se pode chamar de oposição - incluindo, além do PT, o PDT, o PCdoB, o PSB, o PSTU, o governador Itamar e setores do PMDB, entidades e movimentos sociais - existe uma diversidade importante de posições. Algumas delas têm esboçado saídas inaceitáveis, de tipo governo de "unidade nacional" (que subordina os interesses dos trabalhadores a alguma fração dissidente das classes dominantes). Outras, chegaram a defender a renúncia de FHC e um "novo" governo... encabeçado pelo seu vice.

No âmbito do PT, felizmente, temos construído uma evolução de posições no sentido de afirmar a centralidade da luta por um novo modelo e um novo governo (resolução do Diretório Nacional, de 10 e 11 de abril), deixando claro que não é possível mudar a política econômica sem mudar o governo. E, de outro lado, que não se trata de "mudar" o governo por cima, isto é, deixando intacto o modelo econômico.

A luta por um novo governo busca deslegitimar o governo FHC e questionar o seu mandato. Trata de reunir os meios para impedi-lo de executar o programa acertado com o FMI, de não reconhecer no governo atual autoridade para sucatear ainda mais o país.

Mas, além disso, o sentido geral por todo um período é o de anunciar (e, obviamente, organizar) a vontade de construir uma alternativa política. Isto é o que deve orientar o conjunto da nossa atividade partidária, passando - com as mediações necessárias, mas com unidade, coerência e direção do partido - pela ação dos governadores, parlamentares e dirigentes de massa.

Neste quadro, a retomada das nossas discussões programáticas (e aqui se destaca o papel do II Congresso) adquire enorme importância, pois é preciso apresentar, com a maior clareza possível, o rumo alternativo que propomos. Se falamos em outro modelo econômico e em outro governo, não estamos falando de um retoque aqui e outro ali. Para definir novos rumos para o Brasil, devemos retomar a capacidade de propor um programa político e de colocá-lo em movimento, organizando forças em sua elaboração e em sua defesa. Nada mais atual do que resgatar nossas formulações e nossas lutas pela distribuição da renda, da propriedade e do poder. Combinadas, naturalmente (hoje podemos dizer isso quase com naturalidade), com o rompimento da subordinação ao imperialismo.

A luta para inserir a disputa política dentro da dinâmica da crise visa alterar os seus termos e os seus ritmos. Enfrentamos um inimigo poderoso, que, mesmo desgastado, dispõe de reservas estratégicas. Não se trata de um governo (e de uma hegemonia) que está caindo; ou, ainda, de uma disputa que pode ser resolvida somente na arena institucional. Mas trata-se de um governo que pode ser amplamente questionado pela iniciativa política, pela ação institucional e pela mobilização social. Esta dinâmica do país pode chegar a se condensar em uma crise nacional, colocando na ordem do dia o fim deste governo e a urgência de um novo. É bom lembrar que FHC tem, em tese, mais quatro anos pela frente.

Este cenário mais favorável, no entanto, pode ou não se verificar até as próximas eleições municipais. Mas com uma situação social deteriorada ao extremo, com uma política de oposição radical a FHC, o partido e a oposição poderão acumular forças, plebiscitar o governo federal e seus aliados nas eleições municipais e continuar a luta para reunir as melhores condições para tornar vitoriosa uma alternativa de esquerda para o país.

Heloísa Helena é senadora pelo PT-AL e membro do Diretório Nacional do PT.

Carlos Henrique Árabe é membro do Diretório Nacional do PT.

PT para quê?

"Eu sou um PT light... Acho que o PT não tem de que se envergonhar nesse curto período de existência, em que contribuiu enormemente para a democratização da vida brasileira (...)

O que o PT não deve nunca tentar fazer é parecer bonzinho (...)

O que está aí é muito forte e o PT se assustou. Mas ele tem que continuar a dizer a esse país que ele precisa de reformas vigorosas, profundas (...)"

Francisco de Oliveira, em "Políticas do antivalor, e outras políticas"

(Entrevista concedida a Fernando Haddad, TD nº 34, 1997

Antes de começar a discutir o que teremos pela frente no já bem tardio Segundo Congresso do Partido dos Trabalhadores - nesta altura, mais visto como Encontrão por conta da coincidência indesejável com a escolha de nova direção -, vale recordar o que nos preocupava no primeiro, que realizamos em São Bernardo há menos de dez anos.

Ruptura ou Disputa da Hegemonia: que caminho deveríamos nos determinar, na tarefa que um partido como o nosso tinha obrigação de apontar? Partíamos de uma premissa. O PT não admitia compromisso com a ordem institucional que acoberta as falsas promessas de grande parte das legendas do espectro partidário brasileiro. Não acreditávamos em nada que não partisse de uma ação conjunta com o movimento social. Mesmo sob o impacto da derrocada recente do chamado socialismo real do Leste europeu, no nosso horizonte estratégico estava uma sociedade socialista, embora os eixos referenciais tivessem desenhos distintos na cabeça de cada uma das correntes de formulação em que nos representávamos. A condenação do regime capitalista era um ponto de unidade quase consensual.

Nesse cenário, uma prioridade. O peso da questão democrática. O texto de Carlos Nelson Coutinho - Democracia como valor universal - nos atravessava em todas as reflexões. "Democracia é expressão de classe. Burguesa ou proletária", diziam uns. No contraponto, os que insistiam em que não havia como abrir mão da disputa permanente de corações e mentes, para um projeto revolucionário, de liberdade e de justiça social, incapaz de se afirmar, caso imposto pela repressão. A experiência negativa dos desdobramentos, e do fim, da Revolução Soviética estava ali, ainda cheirando mal, para confirmar.

Esse debate, aliás, determinava quem era de direita e quem era de esquerda em nossas caracterizações internas.

Passado tão curto tempo histórico, tais parâmetros deixaram de ser referência para o PT? É indiscutível que a "questão democrática" tem que ser discutida no contexto novo, provocado pela hegemonia quase absoluta do neoliberalismo, no qual "defender a democracia" significa proteger a libertinagem econômica em benefício do grande capital. Mas o que queremos dizer quando nos apresentamos como "alternativa de poder", expressão tão em moda em alguns dos últimos documentos e discursos de algumas das nossas mais expressivas lideranças? Será que estamos anunciando, aos que combatemos, que não se preocupem? Que o PT, hoje, não pretende mais do que introduzir "ética no capitalismo", como explicitou Cristovam Buarque, em entrevista no período eleitoral?

Se tal mudança de espírito e simbolismo tem lógica política, alguma relação com análises racionais da conjuntura, outro pacote de questões se coloca para nós.

O que estávamos fazendo, então, nas campanhas presidenciais de 89 e 94? Era só jogo de cena? Afinal, com base em quê Lula chegou aos 30 milhões de votos de brasileiros de todas as camadas sociais, independentemente de vultoso e dispendioso esforço publicitário; de todos os atropelos que o governo FHC impôs à legalidade democrática na campanha de 98 pela reeleição? Teria Lula sido conduzido por alguma mídia sofisticada, por algum discurso moderado?

Seguramente, não. PT e Lula só foram alternativa de poder nos momentos em que radicalizaram a sua crítica e a sua proposta alternativa ao modelo imposto pelas oligarquias, que dava continuidade ao bem sucedido projeto de transição pelo alto colocado em prática a partir do fim do regime autoritário. No confronto com Collor, ou nos dois embates com FHC transformado em moço de recados do grande capital financeiro internacional, não foi a moderação que marcou os momentos mais expressivos de nossas campanhas.

Pelo contrário, na batalha contra a reeleição ilegal e ilegítima, maculada pela própria origem corrompida e corruptora da emenda que a permitiu a FHC, foi um Lula convicto e convincente em suas denúncias do agravamento da crise social, por conta do acordo secretamente conduzido pela equipe presidencial com o FMI, que nos permitiu sair dignamente de um processo eleitoral no qual tudo concorria para nos esmagar. Não foi o lençol branco inicial.

O resultado ficou claro com as vitórias dos candidatos de oposição nos segundos turnos para governos estaduais, um mês depois.

E não são só as campanhas de Lula. O que havia ocorrido nas eleições municipais das capitais dois anos antes - com um governo FHC bem mais à vontade no controle do louvaminhas permanente à "estabilidade monetária" que a grande mídia operava - já deveria ter servido de alerta aos defensores de um PT de "terno e gravata", palatável. Obtivemos os mais importantes resultados exatamente no campo das batalhas mais difíceis, no qual os índices iniciais de pesquisa eram mais desfavoráveis, mas também no qual o partido resolvera que suas armas eram a militância, a estrela e um programa de promessas radicais. Quando se escorou em altos índices de pesquisa para incorporar valores que não eram seus, pecando pela inautenticidade apenas para buscar "ampliar" suas bases de sustentação, quebrou a cara.

Fica, então, a questão que nos inferniza.

Por que esta nova tendência de transformar análises demolidoras, que fazemos quase consensualmente no partido, sobre as responsabilidades de FHC e sua quadrilha na crise gerada pela política que implementam, em propostas de ação limitada, sem ousadia e criatividade, como essa tal "frente de centro-esquerda"? Desculpem, mas a cada vez que ouço tal proposta, tenho a sensação de ver o PT tentando ressuscitar os vícios de frente-pela-frente que liquidaram o saudoso Partidão.

Frente, aliás, com quem? Com essa parte covarde do chamado grande empresariado produtivo, que vive a falar mal da política subalterna do governo nos corredores de suas entidades patronais, e que se desmancha em elogios quando diante das autoridades?

Claro, há exceções. Mas que densidade e extensão de resultados têm, historicamente, alcançado as honrosas reações desse setor minoritário mais combativo? Quase nenhuma, porque, no essencial, nossas classes dominantes não têm projeto nacional como se confirma em quase todos os estudos sobre nossa formação social - do jornalístico em moda, de Eduardo Bueno, descrevendo nossa colonização degradante, aos sociológicos clássicos que têm o próprio FHC como co-autor, tratando da tradição "associada e dependente" de nossas classes dominantes, incapazes da originalidade de um caminho próprio.

Isto quer dizer que abrimos mão de alianças? Que nosso projeto transformador pode resultar de nossa ação isolada? Nem pensar. Apenas é preciso ter claro que política de alianças não exclui disputa de hegemonia política. Se acreditamos que nossas propostas são as mais capazes de promover desenvolvimento com justiça social e radicalização do processo democrático, e levamos tais propostas a termo, é com elas na mão e na cabeça que começamos a fazer política e propor alianças.

Não é a busca de aliança a priori que vai nos orientar.

Quando improvisamos iniciativas buscando agradar o senso comum, invertendo prioridades táticas e desligando-nos eventualmente de nossos objetivos estratégicos, provocamos equívocos de alto custo político. É o que ocorreu, por exemplo, no encontro de Lula, na calada da noite, com um FHC debilitado e acuado pelas conseqüências de sua própria orientação governamental. Encontro inoportuno e sem pauta justificável que serviu para quê? O que ganhamos com tal conversa "secreta"? Lamentavelmente, uma semana de grande mídia louvando a "competência de FHC na manobra para neutralizar a oposição". Ou, mais ainda, abrimos espaço para interpretações falaciosas de que consideramos possível uma saída digna para a crise que o povo brasileiro atravessa, mesmo se mantendo a aliança tucano-pefelista, que ACM coordena e FHC executa.

Mais grave ainda. O que ganhamos quando, em reunião do Diretório Nacional posteriormente realizada, decidimos indicar Tarso Genro para brecar a discussão proposta pelo próprio Tarso Genro quanto à legitimidade e legalidade do mandato de FHC? E optando, como alternativa, por uma campanha pela "centralização do câmbio" no combate à nefasta política econômica do governo?

Nada. Porque ou bem achamos que "enganamos" as classes dominantes, ou bem estamos colocando a discussão nos limites que lhe interessam.

A partir dessas dicotomias não resolvidas, resultam inócuos os sinais de irritação com as iniciativas "irresponsáveis" de Itamar. Ele é o pai de toda essa tragédia que está aí, mas, queiramos ou não, deu o passo decisivo no estabelecimento do confronto com o modelo em vigor, ao decretar a moratória em Minas. Foi transformado em líder, não porque tivéssemos sido bem sucedidos nas propostas anacrônicas de "frente de centro-esquerda" já referidas, mas sim porque o PT esteve ausente e omisso nos momentos decisivos, limitando-se a apoios posteriores. Não surpreende que tenha merecido entusiásticos elogios daqueles que, na grande mídia, tudo que desejam é ver um PT dócil ou cooptado.

Dirão alguns: Itamar pode fazer o que nossos governadores não podem. Ele é parte do sistema; é contestação e, ao mesmo tempo, alternativa, interna. Olívio, embora tenha sido eleito exatamente pela simbologia de contestação do clone gaúcho de FHC, Antonio Britto, estaria num contexto distinto. Alvo de represálias ilegais e injustas - até porque o governo FHC não estende a governadores que o apóiam o rigor da lei que impõe ao governo gaúcho -, Olívio não teria a sustentação social para radicalizar no primeiro momento. Teria que provar o esgotamento de todas as vias preliminares.

Pode ser. O que a direção nacional do PT não pode é submeter a ação ofensiva do partido, condicionada por opções estratégicas que têm o cenário nacional como palco de operações, às limitações táticas de um governo estadual, cobrado por resultados imediatos.

Olívio, ou os demais governadores, não têm que ser vistos como vanguarda do combate à política geral; ao modelo. Essa vanguarda, quem a exerce é o partido, principalmente um partido como o PT, sem compromissos de ser correia de transmissão das instâncias do Estado. E que, se o exerce sem dificultar as tarefas de seus governadores, também não pode se submeter às suas necessidades, quando elas implicarem em arrefecimento no combate a FHC. Mais ainda, tem que tê-los permanentemente centralizados para que, nas questões nacionais, não se choquem nem cometam atos ou palavras que poderão ser utilizadas contra o partido. Como, por exemplo, no inútil e inexplicável encontro a que se submeteram com o segundo escalão do governo.

Essa questão da relação do movimento tático com o sentido estratégico de nossa prática deve ser, aliás, um eixo fundamental de nossas resoluções políticas. Porque na raiz das hesitações dos setores moderados do PT está certamente uma razão perigosa - a priorização absoluta da via eleitoral; das eleições municipais, em 2000, e as de presidente e governadores em 2002. Ou seja; agimos como se não quiséssemos provocar marolas para não prejudicar algo que nos estaria "caindo no colo".

Ledo engano, por duas razões distintas, mas fundamentais.

Primeira: essa visão de "comer pelas bordas", a partir do chamado poder local, para só depois pensar no objetivo maior, a conquista do poder no plano nacional, não está de fato fazendo com que a firmeza política e doutrinária do PT esteja sendo "comida por dentro"?

Segunda: Que instrumentos, para um governo de sujeitos e objetivos opostos ao do atual, encontraremos em 2002, caso continuemos a bem nos comportar enquanto FHC e sua patota liquidam o que ainda resta do patrimônio público? Sem confronto permanente, colocando sempre em xeque a legitimidade do mandato de FHC, como conseguiremos garantir, pelo menos, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, a Petrobrás e a Amazônia? (Sim, a Amazônia também acaba entrando na pauta).

O PT, por vezes, parece ainda viver, sem ajuste aos tempos atuais, a fase áurea da sua batalha libertária contra os autoritarismos aonde quer que estivessem - no burocratismo estagnado do Leste europeu, ou nas ditaduras da América Latina.

O que era saudável e correto, naquele contexto nefasto, pode ter se transformado num antiestatismo nocivo, num mundo em que a desregulamentação imposta pelo grande capital tem exatamente o fim de liquidar as funções e obstáculos que lhe impõe um Estado regulamentador. E, ao invés de lutar pela radicalização do controle social sobre este aparelho de Estado, o PT acaba afrouxando diante dos que fazem de seu desmonte a tarefa prioritária.

É fundamental, portanto, que nos entendamos a respeito do papel do Estado que desejamos encontrar. Dos instrumentos que queremos ter ativados para rever aquilo que venhamos a considerar necessário para a recomposição de um projeto de desenvolvimento nacional e democrático absolutamente antagônico ao que aí está.

Se não quisermos ser vulneráveis aos cantos de sereia que a vida institucional oferece para nos fazer integrar ao que aí está, nos limitando a atitudes generosas de distribuir, em um pouquinho de educação e saúde públicas, aquilo que nunca será compensado pela extraordinária concentração de riqueza e poder gerados pela hegemonia perversa da financeirização da economia, não podemos abrir mão da recomposição de um aparelho de Estado forte e radicalmente democratizado.

Sem ele, não teremos como enfrentar o massacre que os computadores mundialmente interligados a corretoras de capital especulativo imporão aos nossos segundo, terceiro e quarto mundos interno. Porque do primeiro já sabemos que tem o papel de sócio menor no massacre.

Há, na sociedade, enorme expectativa com relação ao comportamento do PT e ao seu papel na construção de uma alternativa para a crise do modelo neoliberal. Estamos, portanto, diante da necessidade, urgente, de ajustar o foco da nossa análise e recompor a nossa unidade de ação política. Se o partido não acertar o passo com os ritmos do novo quadro, corre o risco de ficar a reboque dos acontecimentos. E, o que é pior, dar com os burros na água, botando a perder a preciosa carga, transformando em peso morto o seu patrimônio de experiência e prestígio político.

Para conjurar este risco, o partido precisa consultar o "relógio império" que orientou sua originalidade como construção partidária. O PT nasceu para lutar, por transformações econômicas e sociais profundas, por uma nova cultura de valores, capaz de renovar a prática da política em nossa sociedade. Sua lógica sempre foi a da radicalidade. Que nunca resultou em sectarismo ou vocação para o gueto, mas no compromisso visceral com a livre manifestação dos conflitos que constituem a tragédia social brasileira. Um partido com essa marca não assina pacto de exclusão, nem se acomoda na turbulência da crise.

Vamos, nos debates do II Congresso - que deveriam ser desatrelados da escolha da nova direção para evitar o internismo -, encarar de frente os nossos desafios. Aperfeiçoar os instrumentos da nossa democracia interna, formular um projeto alternativo para tirar o Brasil da encalacrada da crise e, principalmente, reafirmar o socialismo como norte estratégico.

Se não for para isso, para quê PT? Os outros bastam.

Milton Temer é deputado federal pelo PT-RJ.

O começo do novo século

Nas primeiras décadas do próximo século, o Brasil pode caminhar para consolidar o sistema de apartação com desenvolvimento separado ou iniciar uma mudança de rumo, uma reorientação revolucionária em direção a uma sociedade sem exclusão. O PT vai ter que escolher entre continuar sendo o partido predominantemente dos trabalhadores do setor moderno ou ser o partido do povo brasileiro, conduzindo uma revolução nas prioridades dos recursos nacionais.

Estas alternativas, do Brasil e do PT, estão interligadas. Se continuar sendo o partido dos trabalhadores do setor moderno, o PT fará sua oposição dentro do desenvolvimento separado, conquistando vantagens e direitos para a sua base, mas esquecendo das massas excluídas, como acontece com os partidos de esquerda na Europa. Ou poderá ser o condutor das mudanças de que o Brasil necessita para realizar o reencontro de seu povo em uma só sociedade.

O Brasil caminha para uma sociedade dividida, nos moldes do apartheid sul-africano; um país sem soberania, com uma minoria moderna crescentemente integrada ao mundo dos ricos do planeta e uma maioria excluída crescentemente distanciada no que se refere à renda, ao consumo, à cultura.

No momento, o PT é o partido que pode fazer a reorientação da economia e da sociedade brasileiras. Se o PT não assumir seu papel revolucionário, o país caminhará rumo ao desenvolvimento em separado.

<--break->O partido tem que radicalizar seus compromissos, indo além daqueles que vêm de sua fundação, quando havia a idéia de que o aumento da riqueza significava a diminuição da pobreza e a melhoria dos trabalhadores do setor moderno significava a melhoria de todo o povo. De lá para cá, percebeu-se que a riqueza cresce para cima, e não para os lados, que ela é capaz de beneficiar uma parte dos trabalhadores do setor moderno, mas não a totalidade da população. Hoje, o PT tem que, além de ser o partido dos trabalhadores, ser o partido do povo. Tem que ser o partido propositor de uma nova sociedade. Tem que entender o atual momento, de oscilação entre a administração da perversão do capitalismo como é hoje e os sonhos de um socialismo ideal e utópico mal definido e que saiu desacreditado da guerra fria dos anos 50-80.

A dialética da história brasileira, na segunda metade do século XX, ficou concentrada entre duas propostas: a continuação do desenvolvimento capitalista ou uma revolução socialista.

Os últimos anos do século estão matando qualquer ilusão da alternativa capitalista como uma proposta consistente técnica, democrática, política, ética e filosoficamente. A morte da alternativa capitalista está na observação do quadro social que vivem a humanidade e a sociedade brasileira como fruto do modelo de desenvolvimento seguido desde os anos 50. É exatamente o êxito deste desenvolvimento que mostra o seu fracasso como alternativa. Depois de realizar todas as suas metas, o desenvolvimento capitalista brasileiro construiu uma sociedade instável, injusta, dependente e governada por uma democracia imperfeita. Não foi capaz de resolver nenhum dos problemas fundamentais de um povo: sua soberania, a estabilidade de suas instituições, a correção das injustiças entre seus cidadãos e, sobretudo, uma democracia participativa e respeitosa da vontade de seu povo.

Mas a alternativa da revolução socialista não parece ser uma possibilidade para os próximos anos e mesmo décadas. Em primeiro lugar, porque a crise atual não é apenas do capitalismo, mas de toda a civilização industrial, inclusive em sua concepção socialista. Para ser revolucionário hoje não basta ser socialista, é preciso radicalizar a crítica à própria civilização industrial por inteira e não apenas na sua forma capitalista; fazer uma crítica ética e não apenas técnica do funcionamento do capitalismo.

Em segundo lugar, porque os modelos socialistas que se conhece, e que o PT desde sua fundação sempre criticou, além de terem fracassado, não deram os resultados utópicos.

<--break->Entre uma alternativa de capitalismo em crise e a falta de uma alternativa socialista plausível, muitos do PT têm caído na tentação do imediatismo: sermos o partido de administração da crise do capitalismo, para evitar maiores sofrimentos entre os desempregados e os assalariados, ou sermos os reinventores do socialismo que deveríamos implantar desde já. Ambas alternativas são arriscadas ou mesmo suicidas para um partido com as características do PT.

A administração do capitalismo atual levaria a uma traição aos objetivos de mudar a sociedade. A implantação de um socialismo tradicional ou de um novo socialismo recém-inventado nos levaria a adiar as reformas que o povo deseja ou a trair o nosso compromisso com a democracia.

Além das duas alternativas, o momento nos oferece uma terceira: sermos os iniciadores da transformação da sociedade brasileira, ainda dentro do capitalismo, mas reorientando os destinos do país para resolver os quatro problemas que a elite criou e acirra a cada dia: a soberania, a estabilidade das instituições, a justiça social e a democracia.

Podemos fazer as mudanças necessárias para que depois de um governo do PT o país tenha uma economia e uma sociedade decentes. Para isso, o PT precisa transformar a si próprio.

<--break->Objetivos e meios

O principal erro de uma boa parte da militância petista que pensa em administrar melhor o capitalismo é achar que queremos ser governo para mudar os índices da economia ou apenas para voltar, nostalgicamente, às estruturas passadas de protecionismo e estatização. Nossos objetivos têm que ser muito maiores, ainda que alguns indicadores econômicos devam ser levados em conta como meios para a construção de uma nova sociedade. Outra parte se equivoca ao considerar que nosso papel é fazer de imediato uma revolução na estrutura da propriedade dos meios de produção, inspirada nos textos e propostas que prevaleciam, corretamente, para as estruturas econômicas do século passado e começo deste.

O PT precisa definir objetivos transformadores e não apenas reivindicadores, que toquem toda a sociedade e não apenas a economia. Sete objetivos podem representar o conjunto de uma proposta que não é revolucionária, mas não fica limitada à tentação de apenas administrar a crise do capitalismo atual.

Democracia. Deixar claro que, ao longo dos quatro anos de um primeiro mandato de seu governo, a democracia política brasileira será consolidada, com reformas nos poderes Legislativo, Judiciário, no funcionamento dos meios de comunicação, com avanços institucionalizados de formas de participação popular.

Abolição da apartação. Definir os meios e iniciar os passos decisivos para que, em prazos definidos previamente, a sociedade brasileira saia de sua condição atual, possibilitando o acesso de todo o povo aos bens e serviços básicos e essenciais:

• alimentação: eliminação da fome entre os brasileiros ao final de seu mandato;

• educação: o PT tem que assumir o compromisso de que ao final de um primeiro mandato todas as crianças brasileiras, até os 14 anos, estarão na escola, que em sete anos todas as crianças até os 17 anos estarão na escola e que, em dez anos, todas as escolas brasileiras terão uma qualidade equivalente às melhores entre todos os países. Além disso, nenhum adulto com menos de 50 anos estará analfabeto depois de quatro anos de governo;

• saúde: fim das doenças endêmicas. O PT deve assegurar que, ao final de seu primeiro mandato, em toda cidade brasileira estará implantado um sistema de saúde domiciliar; toda cidade com mais de 50 mil habitantes terá água, esgoto tratado e coleta de lixo; além disso, em um prazo de dez anos o sistema hospitalar de qualidade chegará a toda a população, independente de sua renda e endereço;

• justiça e segurança: nenhum brasileiro será discriminado no que se refere ao acesso à justiça e à segurança. O governo do PT terá que assumir os compromissos de que, em um tempo curto, a Justiça estará reformada para eliminar a permissividade que beneficia os ricos e a brutalidade que se abate sobre os pobres, especialmente os negros; que a Justiça não será comprada de acordo com a disponibilidade de dinheiro para pagar grandes advogados, nem conforme formas de promiscuidade que existem entre a elite econômica e alguns dos membros do Poder Judiciário;

• endereço limpo: todas as famílias brasileiras terão acesso a um lugar onde fazer sua casa, com água, coleta de lixo e esgoto;

• transporte urbano: todo brasileiro terá como pagar um transporte urbano eficiente.

Crescimento pela base. A elite brasileira foi extremamente competente para fazer o crescimento da economia concentrando a renda. O PT tem que ter claro que seu modelo de crescimento será voltado sobretudo para a produção de bens de massa que exijam distribuição da renda.

Geração de empregos alternativos. Todo adulto deverá ter um emprego ou um mínimo que lhe assegure uma vida digna para si e sua família. O governo do PT tem que assegurar que nos primeiros quatro anos de mandato serão criados até 10 milhões de empregos e um sistema de renda mínima comprometida para aqueles que estejam temporariamente desempregados. O PT tem que mostrar que é possível criar emprego ao mesmo tempo que resolve os problemas sociais por meio do assentamento de trabalhadores sem-terra, da contratação de professores, de um programa amplo de pelo menos 5 milhões de bolsas-escola e de obras e investimentos nos setores sociais.

Equilíbrio ecológico. Uma das provas de que o PT ainda não é um partido suficientemente revolucionário, capaz de formular um novo paradigma social, é que seus militantes mais próximos aos problemas ecológicos têm que se organizar em tendências, quando na verdade todo militante petista deveria ser um militante do equilíbrio ecológico. O PT tem que se comprometer a buscar um desenvolvimento que respeite a natureza, que subordine a sua taxa e a sua forma de crescimento aos limites toleráveis por nosso patrimônio natural.

Soberania aberta. O PT tem que ser um partido que retome o gosto do povo pela sua soberania, tem que resgatar o conceito e o compromisso nacionais. Não podemos cair na tentação da globalização desnacionalizadora. Mas, ao mesmo tempo, temos que governar sem nostalgias do protecionismo que transformou o capitalismo brasileiro em um capitalismo entre amigos. É preciso fortalecer um nacionalismo cosmopolita que proteja os interesses patrimoniais e dos trabalhadores brasileiros e não os de grupos industriais, muitos deles estrangeiros, que usaram o nacionalismo antigo em seu benefício.

Descentralização. No final do governo do PT, a economia, a cultura, a demografia brasileiras serão mais descentralizadas. Talvez seja o mais difícil desafio de um partido muito concentrado nas regiões e nos setores mais modernos do país assumir um papel descentralizador quando este caminho se chocar com interesses mais imediatos dos grupos de trabalhadores e empresários localizados nos centros ricos e dinâmicos. Mas o PT terá negado sua razão de ser se, no final de seu governo, as produções econômica e cultural, a população e os centros de poder continuarem localizados em um pequeno quadrilátero onde quase tudo é feito e decidido.

A realização destes objetivos não representaria a implantação do socialismo no Brasil, mas representaria, pela primeira vez, uma ruptura com a história brasileira, fazendo uma revolução social no curto período de um mandato de governo.

<--break->De uma perspectiva histórica de longo prazo, o PT poderá não ser o único partido capaz de fazer estas reformas. Dentro de mais algumas décadas, outros partidos e até outras formas de fazer política poderão conduzir o país nesta direção. Mas, no momento, o PT é o único que tem condições. Não assumir esta responsabilidade, seja por ficar no discurso insuficiente, sem apelo popular, da revolução socialista, seja por ficar restrito ao conservadorismo da administração do capitalismo atual, será uma traição à ética dos nossos fundadores.

A revolução na ótica

O PT nasceu graças ao heroísmo de um grupo de trabalhadores que necessitava unir suas forças para enfrentar a ditadura militar. A redemocratização dos anos 80 transformou-o em uma alternativa de poder. Nosso partido elegeu bancadas, prefeitos, governadores, por três vezes esteve próximo de eleger um presidente, mas manteve-se prisioneiro das qualidades de 1980: o compromisso com os trabalhadores, o programa baseado em reivindicações dos assalariados do setor moderno, o sentimento de polarização vindo da guerra fria. Mas o mundo mudou e, para manter-se fiel aos princípios de sua criação, o PT precisa adaptar suas estratégias e objetivos imediatos.

O primeiro passo é ir além das reivindicações dos trabalhadores do setor moderno. O PT costuma analisar os problemas nacionais na ótica dos interesses imediatos dos trabalhadores desse setor. Com isso, faz um discurso alienado da vontade do conjunto do povo. O problema das estatais foi analisado como assunto do interesse dos trabalhadores das estatais e não de todo o povo brasileiro. A educação é vista como um assunto do interesse dos professores. O Estado é quase sempre analisado e defendido na ótica dos servidores públicos e não de todo o povo ao qual deve servir. A indústria automobilística é outro exemplo marcante. Na ótica do conjunto do povo, não dá para incentivar uma indústria para a qual não há mais espaço nas cidades para seus produtos, que exige um elevadíssimo custo social para montar a infra-estrutura urbana e que requer concentração da renda para garantir os compradores para seus produtos. Mas o PT continua sem conseguir enfrentar esse problema em uma perspectiva de longo prazo e no interesse de todo o povo.

O PT não vai cumprir seu compromisso se continuar concentrando uma parte importante da energia de seus militantes na luta interna, como hoje ocorre, enquanto uma outra parte dos filiados se mantém desanimada, à margem e sem orientação para a luta externa.

É preciso que toda a energia de nossa militância se concentre na luta contra os verdadeiros inimigos: a especulação financeira internacional, o latifúndio improdutivo, as prioridades da elite, a cultura inconseqüente do consumismo imitativo como sinônimo de desenvolvimento, a falta de educação, de saúde, de solidariedade, o corporativismo de cada grupo social.

<--break->Só com a definição de uma clara pauta e a unidade de toda a militância será possível construirmos o partido do povo brasileiro. Hoje, o PT, dividido em tendências e prisioneiro das reivindicações apenas dos trabalhadores do setor moderno, fica impotente para atrair o povo para a luta do partido. O povo, hoje, nos vê como um partido combativo, de gente honesta, mas não como o seu partido.

Esta é uma tarefa fundamental: se construir como um partido que represente o povo inteiro, os assalariados de todos os níveis, os excluídos de todas as regiões, os pequenos empresários de todas as áreas, os militantes de todas as "minorias", para lutar contra a elite brasileira.

A pauta do povo não pode aparecer no PT sob a forma de promessas, mas sim sob a forma de corajosas medidas que deverão ser tomadas no momento imediato à chegada do PT ao poder.

Até recentemente, a esquerda transmitia esperança e a direita inspirava confiança no povo. A direita não inspira mais confiança, em compensação a esquerda deixou de inspirar esperança e não ganhou confiança. O PT tem que retomar seu papel de inspirador de esperança, mas tem também de simultaneamente inspirar confiança no povo brasileiro.

A esperança vem de uma proposta nova, não limitada aos objetivos do sistema e do modelo atual. Mas um novo retrato do Brasil depois de nosso governo não bastará para atrair a confiança se não formos capazes de dizer, em detalhes, convincentemente, que sabemos como fazer e que o Brasil tem os recursos necessários para fazer.

No momento, não vejo outra maneira de despertar a militância e uni-la em um projeto transformador da sociedade, a não ser dando todo poder à base para definir o futuro partidário e o do país. A militância se sente alienada, marginalizada, desmotivada e mesmo usada em cada período eleitoral.

A maneira de atraí-la para o debate e uni-la na disputa é dar-lhe o poder, sem intermediários, de decidir os destinos do PT, por meio de eleições diretas para todos os cargos do partido, prévias para escolha dos candidatos a todos os postos eleitorais, plebiscitos regulares para definir cada rumo do partido.

Com esta radicalização da democracia interna, o partido estará mais forte, sua unidade se fará diretamente e não por meio de grupos; a militância poderá errar, mas não será manipulada, o que é um erro muito maior.

Talvez esta seja a maior semelhança entre o PT e o Brasil: os dois precisam de um choque de participação. No Brasil, suas elites não deixarão que isso ocorra, porque têm medo do povo. Dentro do PT, nossas lideranças não têm o direito de ter medo da militância.

Cristovam Buarque é professor universitário, ex-reitor da UnB e ex- governador do Distrito Federal (1995-98).

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