Menos que obra de fatores externos, a situação em que nos encontramos é conseqüência das opções político-econômicas adotadas pelo atual governo, fundadas no receituário neoliberal, e que conduziram o país a uma integração subordinada e passiva no processo de globalização financeira, deixando-o totalmente vulnerável aos movimentos especulativos do capital financeiro internacionalizado.
Foi em função destas opções que acumulamos, no quadriênio 1994/98, um saldo negativo nas transações correntes do balanço de pagamentos superior a US$ 110 bilhões, dos quais quase US$ 58 bilhões correspondem a despesas líquidas com juros e remessas de lucros para o exterior.
Foram estas mesmas opções que nos levaram a torrar, nestes quatro anos, US$ 59 bilhões em gastos de viagens internacionais e em importação de bens de consumo.
É também conseqüência destas opções que, apesar de ter pago no período US$ 87,8 bilhões de amortizações da dívida externa, o país tenha aumentado seu endividamento externo, fazendo com que o serviço da dívida passasse a representar 97% do total das nossas receitas de exportação (contra 20% em 1994) e somente o item "despesas brutas com juros" passasse a absorver 37% destas receitas.
Este quadro de desequilíbrios cumulativos deslocou para níveis extraordinariamente altos e crescentes as necessidades de captação de recursos externos, fazendo com que o coeficiente de alavancagem (captação bruta de recursos externos/reservas) saltasse de 1,1 em 1994 para 3,3 em 1998.
A percepção da insustentabilidade deste padrão de financiamento externo da economia por parte dos próprios agentes financeiros já era suficiente, independentemente de outros aspectos, para abrir espaço aos ataques especulativos que se sucederam a partir da crise russa. Somado ao endividamento público exponencial e ao crescente peso das despesas de juros na conformação do déficit público - fatores cujo crescimento tende a aumentar os riscos de insolvência do Estado -, este aprofundamento dos desequilíbrios externos somente poderia desembocar - como de fato desembocou - numa crise cambial de graves proporções.
Atribuir a presente crise e seus desdobramentos à ausência das mal chamadas "reformas" e ao peso dos gastos com pessoal e com seguridade social no déficit público é uma interpretação tendenciosa e equivocada da realidade, que visa eximir o atual governo de suas responsabilidades e obscurecer o fato de que o déficit fiscal é conseqüência - e não causa - dos crescentes endividamentos interno e externo gerados pelo modelo de inserção e financiamento externo da economia. Foram as altas taxas de juros utilizadas para atrair capitais do exterior ou desestimular sua fuga do país e a liberalização das normas de entrada e saída de capital que deterioraram as finanças públicas, elevando o déficit operacional e expandindo exponencialmente o endividamento público.
A sobrevida deste modelo econômico, plasmada no acordo assinado com o FMI, está significando - e pode significar ainda mais no futuro - a degradação da situação econômica e a cassação de direitos sociais da população trabalhadora, inclusive de seus extratos médios, jogando sobre seus ombros os custo do novo "ajuste recessivo" necessário para preservar os ativos e os rendimentos do capital financeiro instalado.
O governo teve, ao longo dos últimos anos, várias oportunidades para corrigir a sobrevalorização do câmbio e, conseqüentemente, desvincular a taxa de juros interna dos movimentos de capital externo. Optou por insistir, contra todas as advertências de opositores, alguns aliados e inclusive de instituições internacionais, numa política econômica insustentável, tanto pelos custos econômicos e sociais impostos ao país quanto pela instabilidade intrínseca e pela centralidade decisória do ordenamento internacional dentro do qual se inseria. Terminou tendo que aceitar uma desvalorização tardia e desastrada, muito maior e muito mais custosa, imposta pelo "mercado", no bojo de uma crise cambial da qual sairemos, monitorados pelo FMI, em condições muito piores.
A aparente melhoria recente no quadro macroeconômico - regressão da taxa de câmbio, redução da taxa de juros, retomada de negociações pontuais de rolagem de dívidas de empresas etc. - não significa que "o pior já passou": a conjuntura continua marcada pelos signos da incerteza, da instabilidade e da volatilidade e é impossível prever até onde podem chegar os efeitos e desdobramentos da atual crise.
Crise de hegemonia
A crise do modelo de desenvolvimento nacional-desenvolvimentista deixou um espaço vazio no debate político-econômico latino-americano, que foi ocupado pelo neoliberalismo.
A esquerda enfrentou um período defensivo, especialmente com a queda do Muro de Berlim, mesmo para os setores que sempre foram críticos do chamado socialismo real, como o PT. O fracasso da experiência de construção do socialismo, longe de refletir uma vitória do capitalismo, foi a derrota de uma utopia histórica de construção de uma sociedade mais fraterna, igualitária e solidária. Este processo abriu um processo de redefinições, de reconstrução teórica, de reelaboração de estratégias e políticas. Um processo teórico e histórico internacional difícil e inacabado.
A crise do Plano Real abriu um novo contexto. A reeleição de FHC foi acompanhada de um escandaloso processo de estelionato eleitoral e de subestimação da crise econômica que deslegitimou o governo e alterou a correlação de forças na sociedade. A crise econômica, associada aos impactos sociais da política econômica recessiva e ortodoxa do FMI, deteriora a base de sustentação do governo FHC.
O descontentamento popular cresce na mesma proporção da crise de credibilidade do governo. O discurso neoliberal está fragilizado. Os serviços públicos privatizados apresentam uma deterioração de qualidade com os apagões no setor elétrico e a perda de qualidade na telefonia. As denúncias e todos os indícios de fraude nos casos Sivam, pasta rosa, compra de votos na reeleição, privatização da Telebrás vão fragilizando a base de sustentação de FHC.
As denúncias de inside information - que podem explicar o comportamento de grandes bancos internacionais que alteraram suas posições no mercado de câmbio no dia 12 de janeiro, um dia antes da desvalorização cambial -, associadas ao favorecimento dos Bancos Marka e Fontecindam pelo BC, bem como os mecanismos fraudulentos de remessa de capitais para o exterior por parte de grandes bancos, vão revelando a intimidade do relacionamento do governo com o grande capital financeiro internacional. Os prejuízos de R$ 7,6 bilhões do BC na especulação no mercado futuro do dólar e o lucro espetacular dos bancos nos meses de janeiro e fevereiro reforçam o sentimento de indignação popular.
Depois de quatro anos sem apuração de fraudes e corrupção, as CPIs do Judiciário, do sistema financeiro, da Telefônica privatizada, da máfia dos fiscais em São Paulo, ainda que sob o controle e a passividade da base de sustentação parlamentar do governo, vão mudando o comportamento do Poder Legislativo. O Congresso Nacional, que esteve totalmente submisso à agenda neoliberal do governo nos últimos quatro anos, começa a tomar iniciativa, não apenas nas CPIs, e cria mais um elemento de desestabilização política do governo FHC.
Há graves contradições no bloco conservador que sustenta o governo. Há tensões crescentes na base de sustentação parlamentar e as disputas por espaço político entre PMDB, PFL e PSDB tendem a acirrar os conflitos e abrir novos espaços para a oposição.
Estamos iniciando um período de crise de hegemonia política, com a crise da estratégia neoliberal tardia que caracterizou o primeiro governo FHC.
O quadro de novas turbulências financeiras e colapso econômico e político do governo é possível, mas certamente não é o único cenário do próximo período. A grave crise econômica e o descontentamento social tendem a agravar a crise política e podem transformá-la em crise institucional. Mas o governo ainda dispõe de grande força, portanto de margem de manobra para evitar este cenário de degradação completa da sua base de sustentação.
Em primeiro lugar, porque a desvalorização cambial controlada pode alavancar as exportações, permitindo uma certa recuperação da economia a partir do segundo semestre. A recuperação dos superávits comerciais diminui o nível de exposição do país ao capital especulativo internacional, reduzindo a vulnerabilidade e a instabilidade da atual conjuntura econômica. Em segundo lugar, a grande mídia está muito fragilizada pelo seu elevado nível de endividamento externo e depende diretamente do relacionamento com o governo. Em terceiro lugar, a oposição, apesar de todos os avanços, não tem conseguido transformar todo o descontentamento popular em movimento político capaz de confrontar globalmente o modelo econômico e o projeto FHC.
A estratégia econômica do governo foi substancialmente alterada com a política da flutuação suja do câmbio, abrindo a agenda para o tema do desenvolvimento e para uma mudança de rumo na economia. Mas esta alteração não significará necessariamente uma ruptura do modelo neoliberal. As forças conservadoras que sustentam FHC, monitoradas pelo FMI, procuram recuperar a iniciativa das ações em direção ao aprofundamento do modelo.
O setor neoliberal mais ortodoxo, dentro e fora do governo, defende as privatizações da Petrobrás, do Banco do Brasil e da CEF; as negociações em direção à Alca (Área de Livre Comércio das Américas); e a implantação do currency-board, dolarizando a economia brasileira.
Este caminho significará a desconstituição da Nação. Não haverá Estado nacional sem um setor público estratégico, pelo menos nas áreas de energia e financiamento público. Abdicar da moeda nacional em um país com vocação comercial multilateral como o Brasil é um suicídio histórico. Perderíamos totalmente o controle sobre as políticas cambial e monetária.
A primeira tarefa das forças de esquerda é criar um amplo movimento político capaz de inviabilizar esta saída conservadora que interromperá de forma definitiva o próprio processo de construção do Brasil como Nação. Mas não basta resistir.
Alternativas
O PT tem uma imensa responsabilidade nesta nova conjuntura. Teremos que estabelecer uma estratégia política que articule nossa intervenção em três níveis: nos parlamentos, em especial no Congresso Nacional; nos estados que governamos ou participamos do governo; e nos movimentos populares.
O PT iniciou a campanha presidencial sem um diagnóstico preciso sobre a evolução da crise e o eixo da campanha. Porém, ainda que tardiamente, a campanha soube pautar o tema da crise e demarcar campo com a candidatura de FHC e sua estratégia de estelionato eleitoral.
Foi correta a posição do partido de defender na campanha eleitoral a centralização do câmbio como resposta ao cenário de desestabilização cambial deflagrado pela crise russa. A centralização do câmbio representa um contingenciamento de todos os compromissos externos. É, na prática, a suspensão do pagamento da dívida externa e mais que isto, porque envolve todos os compromissos cambiais, como remessa de lucro e outros. O cenário de instabilidade financeira internacional e a própria atitude da Malásia abriam espaço para uma atitude de defesa das reservas cambiais do país, que estavam no patamar de US$ 70 bilhões. Uma atitude soberana do Brasil recolocaria o tema da renegociação da dívida externa. A construção de um orçamento cambial e os novos mecanismos de controle do câmbio, que deveriam acompanhar sua centralização temporária, poderiam reverter o processo de liberação incondicional do mercado de capitais e o elevado nível de exposição do país ao capital financeiro especulativo internacional. Seria uma opção de elevado custo econômico e social, especialmente pelo profundo processo de desestruturação produtiva e dependência de produtos e insumos importados. Mas representaria uma nova atitude frente à globalização, revertendo a postura de inserção passiva e subordinada.
Outro fator relevante na discussão de estratégias frente à dívida externa é que hoje, diferentemente dos anos oitenta, a dívida é predominantemente privada e seu crescimento não foi decorrente da política de juros dos EUA, mas produto direto das privatizações e da irresponsabilidade da política econômica marcada pelo populismo cambial do primeiro governo FHC.
Não haverá mais saída fácil e rápida para a situação econômica e financeira. As dívidas externa e interna deixam uma pesada herança associada a um profundo processo de desnacionalização e desestruturação produtiva. A dívida interna pressiona e deteriora a qualidade do crédito público e do orçamento. O alongamento negociado de seu perfil é outro tema delicado mas fundamental para o resgate dos instrumentos de política econômica.
O país precisa enfrentar com determinação seus graves problemas macroeconômicos, mas sobretudo construir uma estratégia de resistência histórica frente ao flagrante processo de desconstituição da Nação.
O eixo fundamental de nossa proposta deve ser um novo modelo de desenvolvimento sustentável. Em primeiro lugar, a defesa da produção e do emprego rumo à constituição de um amplo mercado de consumo de massas e serviços públicos essenciais. Em segundo, um novo contrato social que enfrente a exclusão e promova justiça social. Em terceiro, um contrato ecológico que preserve o imenso patrimônio ambiental do país, com ênfase em propostas como o turismo ecológico. Finalmente, a radicalidade democrática, ampliando as dimensões de cidadania, reconstruindo os mecanismos de participação popular e democracia direta. É nesta direção que o PT precisa construir uma política de transição que rompa globalmente com o atual modelo econômico e que deve se materializar em uma agenda alternativa que nos permita disputar a hegemonia, como alternativa de governo e poder na sociedade.
A política de transição deve ter algumas grandes diretrizes econômicas orientadas para o combate ao desemprego e a exclusão social:
• Impulsionar a agricultura e a reforma agrária. Temos um imenso potencial agrícola e podemos ocupar com muito mais racionalidade o imenso território nacional. A meta de produção de 120 milhões de toneladas de grãos em quatro anos exige quadruplicar a produção de calcário e dobrar a de fertilizantes entre outras medidas complementares. A agricultura é uma resposta rápida e contribui para melhorar o padrão alimentar da população, gera divisas cambiais, emprego e renda no campo. Por isto, deve estar acompanhada de ampla reforma agrária e do apoio à pequena agricultura familiar.
• Recompor a infra-estrutura nacional. O endividamento público, associado ao processo irresponsável de privatização, está comprometendo perigosamente os setores de energia, transportes e telecomunicações. O apagão do dia 11 de março, que atingiu 100 milhões de pessoas, é um exemplo de como o sistema está trabalhando no limite e não suporta a retomada do crescimento econômico sustentado. Definir um plano nacional de infra-estrutura, desenvolver novos mecanismos de financiamento e desencadear um amplo plano de investimentos serão decisivos para a transição em direção a um novo modelo de desenvolvimento. Os investimentos em infra-estrutura devem ser acompanhados de amplo programa de habitação popular e saneamento básico. Experiências como urbanização de favelas, mutirões, melhorias nos cortiços e construção de casas populares têm grande impacto no mercado de trabalho e na qualidade de vida da população.
• Educação, associada à política de cultura, ciência e tecnologia. O problema estrutural mais grave do país é o atraso educacional. Universalizar e democratizar a escola pública de qualidade é o grande desafio histórico desta geração. Propostas como a bolsa-escola deveriam ser um símbolo das administrações petistas e uma prioridade absoluta de nossos governos.
• Economia solidária. Esta é outra experiência inovadora e que deveria ganhar muito mais importância na reflexão partidária e na atuação de nossos governos. São novas formas de gerar emprego e renda a partir da organização dos excluídos. O desemprego já atinge 20% na Grande São Paulo. Só para absorver 1,7 milhão de jovens que chegam no mercado de trabalho todo ano precisamos crescer 6,0% do PIB ao ano. É urgente a definição de políticas de emprego e de fomento da pequena economia de sobrevivência urbana e rural, impulsionando a economia solidária.
A definição de uma nova política industrial e de comércio exterior, a defesa de uma reforma tributária que associe os princípios de simplicidade, desburocratização e harmonia à justiça fiscal, taxando com progressividade a renda e a riqueza, são alguns instrumentos importantes destas diretrizes centrais.
O PT não pode mais reduzir sua intervenção ao papel jacobinista que teve no passado. Fomos decisivos na campanha das diretas, mas o governo saiu do Colégio Eleitoral com Sarney. Tivemos um papel fundamental na CPI do Collor e na mobilização para o impeachment, mas ficamos fora do governo Itamar, que gestou a recomposição neoliberal com FHC. Temos que mobilizar a Nação contra este governo e sua política recessiva e neoliberal, mas nosso maior desafio é disputar a hegemonia e a agenda em direção a um novo modelo de desenvolvimento. O PT precisa ir além do basta FHC e FMI!, precisa governar com criatividade e competência as cidades e os estados onde o povo nos escolheu. O PT precisa recompor o pacto partidário, romper sua vocação de oposição e minoria, disputando a condição de alternativa de governo e poder na sociedade brasileira.
Aloizio Mercadante é deputado federal do PT/SP, presidente da Comissão de Economia da Câmara Federal e vice-presidente nacional do PT.