EM DEBATE

Quais as perspectivas para o Brasil neste quadro de crise nacional e internacional? Que conseqüências econômicas, sociais e políticas o acordo com o FMI trará para o país? Como deve o PT se comportar frente ao governo federal e a sua política econômica? E em relação ao governo Itamar? Que orientação estratégica deve nortear a atuação do PT nos próximos anos? Que papel devem desempenhar seus governos estaduais? E os movimentos sociais? Quais os desafios postos para o 2° Congresso do PT? Estas foram as questões que TD enviou para três importantes lideranças políticas petistas: os deputados federais José Genoino (líder da bancada do PT) e Nelson Pellegrino, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho. Outros dirigentes partidários convidados infelizmente não puderam atender em tempo nosso solicitação.

Unidade ou unicidade?

Oposição implacável

Esquerda sem projeto

Unidade ou unicidade?

Mais uma vez o PT é convocado a pensar, falar e agir como alternativa real de poder. A convocação não parte de nenhum sindicato combativo ou personalidade de vulto. É um chamamento que vem da realidade dramática em que nosso país foi metido.

Quando, no dia 15 de janeiro de 1999, o governo FHC jogou a toalha diante de um novo ataque ao real, confessando na prática a inconsistência de uma política econômica que a oposição apontava como suicida há vários anos, o Brasil foi colocado diante de uma conjuntura nova.

Nova, não no sentido de que o presidente tenha desistido de suas reformas neoliberais ou de governar com o que existe de mais atrasado e conservador, ajoelhando-se perante os especuladores e o FMI. Mas nova no sentido de que se abrem condições para alterar profundamente a correlação de forças observada no cenário político desde 1994. A perda da aposta cambial, da forma mais desastrada e no pior momento possível, faz quebrar a aparente fortaleza de um governo que se apoiou durante quatro anos numa completa cumplicidade da imprensa para mentir, anular o debate democrático e desqualificar as oposições.

Não sabemos ainda se a arrogância que sempre foi forte no governo FHC morrerá junto com a aposta irresponsável de segurar a inflação por meio da destruição de setores produtivos, da farra dos importados, da liquidação de estatais e da política de juros que afogou as finanças públicas dos municípios, dos estados e da União. Ou se o governo federal optará pela alternativa de radicalizar o autoritarismo, como aconteceu na primeira semana de câmbio flutuante, quando foi posta uma faca no pescoço do Congresso Nacional para aprovar um assalto aos aposentados do setor público.

De qualquer forma, estreitou-se o campo de manobra no qual FHC operou no primeiro mandato. É difícil prever se conseguirá recuperar condições para gerir com um mínimo de rumo a evolução da crise que sua política produziu, implicando em provável queda do PIB, novos saltos no desemprego, pressões internacionais de toda ordem. Ou se daqui para a frente seguirá em ziguezagues que podem ser tão danosos ao país quanto foi a prepotência do primeiro mandato, senão pior.

Essa é uma questão que não se decidirá apenas pela vontade do campo situacionista. E sim pela qualidade do confronto que lhe ofereçam as forças de oposição. Daí a necessidade de termos uma avaliação clara de pelo menos dois elementos fundamentais de uma oposição democrática e popular conseqüente: ler corretamente o resultado das urnas de 1998 e saber conduzir os esforços de mobilização social com mais eficácia.

Só não consegue enxergar o saldo vitorioso conquistado pelo PT nas eleições de outubro quem, de fora, nutre pelo partido uma antipatia que impede até mesmo a leitura numérica das urnas, ou, de dentro, tem na luta interna seu objetivo mais precioso.

Esse saldo não se mede apenas pelo salto eleitoral de Lula, pelo crescimento das bancadas federais e pelos estados conquistados, em especial o Rio Grande do Sul, placar que se torna ainda mais expressivo se levamos em conta o uso da máquina, a enxurrada de dinheiro, o escandaloso alinhamento da mídia, dos institutos de pesquisa e do Judiciário com os candidatos de FHC. Mas se mede também pela correta atitude adotada pela esmagadora maioria dos petistas em segundos turnos estratégicos como foram, por exemplo, os de São Paulo e Minas Gerais. E se mede, sobretudo, pela consolidação de uma frente de esquerda, que entra em 1999 fortalecida e habilitada a atrair setores de centro para uma oposição mais consistente a FHC, agora em fase de enfraquecimento.

Nessa perspectiva, a indagação a respeito de qual política será mais correta, de nossa parte, junto a governos como o de Covas e o de Itamar Franco precisa ter como ponto de partida o reconhecimento do acerto da política adotada pelo partido nesses estados e também em contextos difíceis como o ocorrido no Rio de Janeiro. Parece claro que o bom início de ano, em termos de pressão institucional, que a frente de oposição conseguiu assinalar, dificilmente estaria acontecendo com o mesmo ímpeto caso uma opção equivocada do PT, ou da maioria de seus eleitores, tivesse contribuído, por exemplo, para que César Maia fosse o novo governador do Rio e Azeredo o de Minas. Na mesma linha, não parece razoável acreditar que, sendo Maluf o governador em São Paulo, o cenário pudesse estar, um milímetro sequer, mais favorável ao crescimento da crítica e da resistência às políticas de FHC.

Os setores do PT que estão conscientes dos desafios postos diante de um partido que é alternativa concreta de poder - e é bom lembrar que isso ocorre num tipo de processo institucional e constitucional que nada tem a ver com as rupturas revolucionárias que estão nos sonhos de muitos de nós - não podem rebaixar o debate ao nível mesquinho da condenação e do cavalo de batalha que se fez em torno da conversa de Lula com FHC em dezembro.

Se, durante as greves dos anos 70, quando helicópteros da ditadura militar tentavam aterrorizar os metalúrgicos do ABC reunidos na Vila Euclides e as lideranças eram presas e processadas pela Lei de Segurança Nacional, Lula se dispunha a conversar com quem quer que fosse, tendo comparecido de surpresa ao Quartel General do II Exército para conversar com o comandante sobre nossa luta, é claro que está coberto de argumentos quando atende ao convite de FHC, errando redondamente quem pensa que isso diminui o prestígio popular que sua liderança reúne.

Mas se falta consenso no PT em torno de um detalhe protocolar do jogo democrático, que é conversar, dialogar, parlamentar e negociar até com o mais raivoso adversário, é lógico que não haverá unidade no modo de conceber o tipo de oposição que faremos a FHC. Menos ainda quando se tratar do tipo de relacionamento a ser estabelecido com um governo como o de Covas.

Há um simplismo em certos setores do partido, que consiste em reduzir todo o debate político à questão de ser mais duro ou menos duro, mais intransigente ou menos intransigente. Na verdade, a discussão não deveria se esgotar aí. Uma oposição pode ser mais dura e menos conseqüente.

Temos um bom exemplo agora. A moratória declarada por Itamar Franco levou alguns companheiros do PT de Minas Gerais, que se recusaram a apoiá-lo no segundo turno, a reconsiderar sua posição e apoiá-lo agora, na medida em que só lhes interessa saber se o governador está mais próximo ou mais distante de FHC. É pouco para um partido que tem como desafio disputar a hegemonia e o poder com as elites hoje dominantes.

O gesto ousado de Itamar pode ser elogiado e estamos de acordo com a conduta do PT de apoiá-lo na decisão, integrar seu governo e incorporá-lo plenamente à articulação dos governadores de oposição. Mas um gesto corajoso é pouco para caracterizar uma trajetória. Além disso, se a moratória é a melhor saída, não caberia aos governadores petistas seguir pelo mesmo caminho? Em resumo: Itamar merece nosso aplauso e respeito, mas não merece respeito a análise dos petistas que se encantam com gestos espetaculares, ou que definem uma decisão de apoiar ou combater em torno de um único elemento.

Divergências nas orientações não são apenas um reflexo das diferentes concepções políticas de cada petista. Decorrem também do tipo de inserção social ou do grau de responsabilidade que cada companheiro ocupa no cenário institucional. Um governador petista não pode exercer frente ao presidente da República um tipo de oposição raivosa, que traga perda de força política dentro do seu próprio estado, prejudicando a disputa de hegemonia de longo prazo. O mesmo vale para um prefeito em relação ao governo estadual.

No nosso caso, o tipo de oposição que proponho frente a FHC e Covas, governos que não representam a mesma coisa, decorre também das responsabilidades que são colocadas para o presidente de uma categoria que tem a importância estratégica e histórica dos metalúrgicos do ABC, submetida nos últimos anos a um brutal ataque no âmbito do emprego.

Dá até para entender a lógica de um pequeno círculo de sindicalistas que, sem maiores responsabilidades de representação, prioriza a denúncia ideológica do governo FHC, deixando para segundo plano o trabalho organizativo junto à base e as mobilizações concretas em defesa do emprego.

Mas quem dirige um sindicato que foi fundamental na ruptura histórica dos anos 70, na derrota da ditadura e na própria fundação do PT e da CUT, sindicato que segue representando o setor mais expressivo da indústria automotiva instalada no Brasil e a categoria que continua comprovando sua condição de setor operário mais organizado e mobilizado do país, sindicato que sofre como poucos o impacto do desemprego em massa, quem vive essa responsabilidade não pode defender um tipo de oposição na qual seja vedado ao nosso líder maior, Lula, conversar com quem bem entender.

Somos favoráveis a uma ação política que se paute pelo esforço de ampliar, reunir segmentos muito mais amplos do que os já influenciados pelo PT e pela CUT, somar forças com prefeituras dos sete municípios do ABC, de diferentes partidos, elaborar alternativas viáveis ao projeto neoliberal, quebrando-o por fora sem descuidar de seus argumentos internos. Enfim, uma política que não fique combatendo o desemprego apenas no gogó, pensando em acumular pontos para um dia do amanhã, que ninguém sabe se virá, mas cuide também de gerar empregos aqui e agora, revertendo demissões, conquistando espaços novos no processo produtivo, deslocando para a oposição setores que antes eram situação, agindo como uma classe trabalhadora que realmente já se mostra preparada para assumir o poder que reivindica.

Quanto a Covas, nossa atitude de apoiá-lo no segundo turno, apesar da fraude contra Marta Suplicy, teve como base, antes de tudo, o repúdio à alternativa nefasta, a decisão consciente de isolar uma extrema direita que, quanto mais debilitada, melhor para a democracia e para os trabalhadores.

Quem opta por esse tipo de apoio corre mais riscos do que os partidários do voto nulo. Afinal de contas, não queremos estar no governo Covas e não existe qualquer garantia de que ele vá retribuir de alguma forma o apoio recebido. Mas temos segurança de que essa postura nos autoriza a exigir atitudes concretas frente ao desemprego e fortalece a imagem do PT junto ao eleitorado paulista, que talvez esteja iniciando, pela primeira vez em âmbito estadual, um deslocamento que realmente nos dê condições de vitória na sucessão de Covas.

Lula tem declarado aos quatro ventos sua prioridade para a construção de alianças que permitam vislumbrar a possibilidade de um governo de centro-esquerda no Brasil ainda em nossa geração. Nosso acordo com ele é completo nesse assunto e em muitos outros. E essa aliança não pode se limitar às forças que já estão nesse campo. Daí a necessidade de agir em setores de centro, buscando deslocá-los. E quem defende a necessidade de fazer esse esforço junto a segmentos do centro político reconhece que não teria sentido votar nulo ou abster-se no segundo turno paulista.

Quanto ao tipo de oposição frente a FHC, em princípio a firmeza manifestada pelo PT no primeiro mandato deve se manter e aprofundar. É possível que FHC seja forçado, após a quebra do real, a alterar algo de sua política econômica, adotando medidas de estimulação do crescimento, defesa do emprego, contenção das importações. Pouco provável que faça isso alterando sua filosofia de governo ou sua base de sustentação. Mas no discurso poderá mudar.

Em qualquer hipótese, os papéis estão claramente definidos e devem seguir assim: seu governo representou uma violenta maré neoliberal que, durante quatro anos, semeou a corrupção política, desqualificou as oposições, atentou contra a democracia, torrou patrimônio nacional, destruiu setores produtivos, levou o desemprego a patamares nunca atingidos, mentiu, manipulou e levou o Brasil à mais grave crise econômica de sua história a partir de janeiro de 1999. Nós representamos a força mais credenciada da frente de oposição e nos apresentamos como alternativa apta a conduzir um processo amplamente democrático de recondução do Brasil para uma rota de crescimento com soberania nacional e profunda redistribuição de renda.

Oposição radical e intransigente, mas não estúpida ou mal-educada, que se recusa a conversar, como se a negação da conversa pudesse trazer a mais leve alteração do equilíbrio de forças. Oposição bem fundamentada no ambiente institucional, mas não contida nele.

O tipo de resistência que estamos propondo e exercendo desde os primeiros dias deste ano, rejeitando a demissão de 2.800 trabalhadores da Ford, sintetiza tudo o que pensamos da conduta dos movimentos sociais no atual contexto. Lançamos a resistência e não afastamos a hipótese de que, em algum momento, essa resistência seja levada à radicalização, independente de estimulação ou aprovação de qualquer dirigente do sindicato. Mas apostamos acima de tudo na politização e na nacionalização dessa luta. Queremos que a mobilização dos trabalhadores da Ford se transforme numa bandeira nacional, despertando diferentes categorias, de diferentes estados, para uma luta comum, seja ela de solidariedade, seja em torno de objetivos específicos de cada área ou categoria. Queremos que as ruas, praças e avenidas sejam novamente ocupadas, como vimos fazendo quase diariamente na Via Anchieta e em outros espaços de São Bernardo. Queremos despertar apoios fora do movimento sindical, junto a igrejas e amplos círculos da sociedade civil.

Mas, para nós, é preciso combinar combatividade e garra com flexibilidade e ampliação. Fomos falar com Olívio Dutra, Itamar, FHC, ACM e Dorneles. Aguardamos a recuperação médica de Covas para botá-lo no centro da dança. Trouxemos para apoiar o movimento Maurício Soares (PSDB), prefeito de São Bernardo, e Gilson Menezes (PSB), prefeito de Diadema, que são nossos adversários no plano partidário. Vamos à Fiesp, à Força Sindical. Iremos ao Edir Macedo e ao padre Marcelo Rossi, se preciso for. Onde houver uma mínima chance de somar forças na busca de qualquer saída para defender o emprego, ali estaremos. E não nos parece que exista uma linha para a mobilização sindical e popular que seja mais acertada do que essa. É exatamente porque estamos credenciados como um sindicato que promove Maratona Contra o Desemprego, vigílias, seminários, manifestações e movimentos em torno de alianças amplas, que reunimos agora autoridade para exigir, pressionar, impor soluções negociadas.

Esse tipo de visão sobre o movimento sindical e, de um modo geral, sobre toda a mobilização social, precisa ser debatido com mais profundidade nas instâncias da CUT e do próprio PT. Quanto ao partido, o 2º Congresso é uma oportunidade que precisa ser bem aproveitada. Não podemos repetir a patinada do anterior, no qual discutimos muito e mudamos pouco.

Sem nenhuma posição pré-definida de nossa parte, defendemos que uma discussão importante a ser feita no Congresso seja sobre continuarmos ou não como um só partido. Em princípio, é claro que será melhor seguirmos unidos. Mas, assim como no movimento sindical não confundimos unidade com unicidade, o PT não pode confundir unidade formal, uso da mesma sigla, com a necessária unidade de um partido que tem desafios do tamanho dos nossos.

Devemos continuar juntos se, num balanço franco, concluirmos que os pontos que nos unem superam nossas diferenças. Nesse caso, seguiremos entendendo nossas diferenças como riqueza e não como problema. Mas, tenhamos claro: sob a condição de mudarmos a prática atual em que, por exemplo, nosso sindicato é agredido por setores petistas com mais virulência do que a dirigida a nós por não-petistas. Onde uma liderança do porte de Lula é desautorizada grosseiramente, na imprensa, por setores petistas que se atribuem a propriedade da verdade e autoridade para proibir que o líder maior do partido chame um líder da indústria para um seminário de crítica ao neoliberalismo.

Se, estando no mesmo partido, somamos nossas forças e idéias para derrotar os adversários e atingir as metas de transformação radical fixadas em nosso programa, a unidade é positiva e legítima. Se, pelo contrário, estando no mesmo partido, cada ala não dorme direito, à noite, temendo o que a outra possa estar articulando, não existe unidade verdadeira. E o que é falso deve ser desmascarado e superado.

No PT, ninguém acredita que a revolução (segundo alguns) ou as transformações estruturais da sociedade (segundo outros) será obra de um partido isoladamente, como já ocorreu em alguns países. Se dentro do PT coexistem visões tão diferentes ao ponto de se quebrar toda a possibilidade de confiança mútua, pode ser que, separados, as energias de cada grupo sejam melhor aproveitadas. Se a unidade for reafirmada, como unidade verdadeira, muito melhor.

Luiz Marinho é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Oposição implacável

A recessão em que se encontra mais de 40% da economia mundial (incluindo o Japão, a segunda maior economia do planeta), acompanhada, agora, pelas projeções sombrias para 1999 do governo chinês, adicionada ao pacote do FMI, à "moratória de Minas", à virtual insolvência do país (consubstanciada em mais uma rodada de fuga dos especuladores do "real" para o dólar e na desvalorização cambial) configura ocorrências amplamente previsíveis, mas, em si mesmas, carregadas de significados e de gravíssimas conseqüências para o povo brasileiro. Abre-se um cenário de um governo no corner, mal tomou posse.

Tal situação deixa patente que, ao invés dos mais de 20 anos de "ciclo virtuoso" de desenvolvimento e de domínio da coligação tucano/pefelista, prometidos pelo ex-ministro Sérgio Motta, esse pacto político conduziu a Nação para o abismo.

Tudo isso expressa e delimita o "território" político sobre o qual a esquerda brasileira - e o PT como sua maior expressão partidária - deve trilhar.

Qualquer discussão sobre a ação das forças democráticas e populares, no presente e no futuro, não pode perder de vista algumas questões:

a) o pacto (união de todos os segmentos do grande capital e do latifúndio em associação com o imperialismo) que viabilizou a eleição e recondução de FHC, vem realizando, com sucesso, uma operação de desarticulação do tripé (Estado, capitais nacional e internacional) que caracterizou o desenvolvimento capitalista no Brasil até recentemente;

b) esse é um processo que aprofunda a exploração do trabalho, promove, em escala nunca vista, a exclusão social das maiorias, intensifica a rapinagem e a depredação do nosso patrimônio econômico e ambiental e radicaliza a subordinação do capital nacional ao internacional, além de retirar do Estado as condições para capitanear um projeto nacional de desenvolvimento. Desconstrói a Nação, portanto;

c) tal movimento reduz o Brasil a espaço econômico, isto é, "território de caça" do capital financeiro internacional - força social e econômica que de fato subordina e dirige o capital em escala planetária - e, por isso, avança sobre os trabalhadores como segmento social chave das maiorias nacionais e sujeitos potencialmente decisivos da transformação socialista da sociedade;

d) FHC implementa ponto a ponto, vírgula a vírgula, as diretrizes de natureza neocolonial da política desse capital para os países dependentes. Diretrizes essas, por exemplo, explicitadas pelo G-7 ao FMI como condição para empréstimos dessa agência aos outrora "países emergentes". Como se sabe, esses são empréstimos destinados a evitar explosão da cadeia mundial de especulação e não para, supostamente, "socorrer" os países. Vale a pena destacar algumas dessas condicionalidades: "ampliação da abertura comercial e financeira; direta supervisão (do FMI) sobre as políticas fiscal e monetária dos países tomadores; abolição de linhas de crédito favorecidas e de subsídios do governo receptor a empresas, indústrias e instituições; proibição de quaisquer discriminações entre credores internos e externos"1, além de, "naturalmente", ampla desregulamentação, avanço das privatizações e assim por diante.

Seria espantoso, portanto, se o exercício de um tal governo e a implementação de um tal projeto não se traduzissem no brutal autoritarismo que marca o regime político em vigor no Brasil. As regressões democráticas estão em toda parte e não se circunscrevem aos massacres de trabalhadores sem-terra ou à repressão aos trabalhadores (miremo-nos no exemplo dos petroleiros), mas, em particular, objetivam-se no caráter praticamente ornamental dos demais poderes vis à vis o Executivo. Poder cujo titular atual, ademais, desrespeita a Constituição e as leis rotineiramente, além de, tal qual os generais, governar à base de MPs - tradução "moderna" dos "arcaicos" decretos-leis. O "Estado de Direito" tucano é uma farsa clamorosa!

Temos um cenário, assim, em que as crises nacional (e seria funesto ao país se a oposição assumisse a tese falaciosa de que o "real" apenas sofre as vicissitudes de uma tormenta externa incontrolável) e internacional limitam a ação e o acordo com o FMI virtualmente substitui o atual governo federal na condução dos destinos do país em favor dos prepostos do G-7. O "furacão" da primeira quinzena de janeiro somente confirmou essa realidade.

Ilegitimidade e fragilidade

Não bastasse isso, este é um governo que foi, legalmente, reconduzido num processo eleitoral marcado pela ampliada presença corruptora do poder econômico e da máquina administrativa (inclusive com a "criativa" triangulação de recursos da, agora famosa, "Agência Brasil"); pela intensa manipulação do eleitorado realizada em parceria pelos institutos de pesquisa e pelos meios de comunicação de massa; pela sistemática fuga do re-candidato ao debate, incluindo o "seqüestro" da crise do país como tema de campanha, maculando o sentido do voto; pelos episódios envolvendo o "grampo" que "ejetou" o Mendonção/Banco Matrix; pelos indícios de contas bancárias de altos coturnos tucanos em paraísos fiscais caribenhos; e pelo fato de que este é um presidente de minoria, já que obteve o voto de apenas um terço do eleitorado.

Ora, tudo isso coloca um claro vinco de ilegitimidade nesse novo mandato presidencial. Não bastasse isso, é muito mais frágil do que o primeiro, a despeito de ainda contar, em especial, com a poderosa retaguarda do imperialismo.

Mas, as dificuldades do novo mandato de FHC localizam-se, também, no fato de que, diante do desastre, a unidade das classes dominantes em torno de todos os dogmas da "religião do mercado" começa a exibir suas primeiras fissuras. Que o digam os pesos pesados da indústria de São Paulo, agrupados no Iedi! Ou a curiosa gritaria de muitos governistas e empresários pela redução dos juros. É como se não soubessem que, a essa altura da novena, o governo não pode "orar e nem vestir o santo da especulação", sem desnudar o da "produção". É como se não soubessem que a religião do "livre mercado" exige o intervencionismo estatal apenas para garantir as condições para o capital financeiro massacrar as maiorias, dilapidar o Estado e, inclusive, para liquidar essa história de "indústria de capital nacional"!

É nesse marco que se evidencia, por um lado, que a nossa derrota no primeiro turno da disputa presidencial - quando prevaleceu, entre os eleitores, o mote "ruim com FHC; pior sem ele" - materializa, concentradamente, mais do que um revés eleitoral, uma derrota política. Tal resultado evidenciou que não conseguimos convencer a maioria do eleitorado de que temos um projeto global, oposto ao que aí está e capaz de nortear a construção de um futuro para nosso povo. Demonstrou também que o nó da disputa para vencer as eleições não está em "flexibilizar" a política de alianças, desfigurando o nosso bloco político, ou em apresentar uma coleção de propostas - algumas excessivamente rebaixadas, tentando, inutilmente, fazer omelete sem quebrar os ovos da política do capital financeiro - mas sim em apresentar e defender um caminho para o país, claro, embasado em nossa realidade e oposto ao trilhado pelas elites. Em verdade, pagamos o tributo das idas e vindas, do vai-não-vai de nossa candidatura, "inoculadas" na ação partidária, pela chamada estratégia de "centro-esquerda" que os encontros de Tepoztlán e de Santiago propagaram.

Por outro lado, o resultado eleitoral demonstrou o amplo espaço que havia (em boa medida não aproveitado) e que há no país para uma política de oposição ao projeto de orientação neocolonial que vem sendo posto em prática. É isso que sobressai dos resultados obtidos pelo PT (em especial a vitória da Frente Popular do RS) e seus aliados. Em segundo lugar, as eleições reafirmaram que, no imaginário popular, é o PT que encarna a expressão de oposicionismo partidário ao que aí está.

O que deve balizar a nossa conduta frente ao governo federal e diante dos estaduais que lhe dão sustentação deve ser o nosso visceral antagonismo à política de desconstrução nacional da qual derivam o agigantamento do autoritarismo do regime político, o massacre do trabalho, a rapinagem sobre o Estado e o patrimônio nacional, o sucateamento e a mercantilização dos serviços públicos, o desbaratamento dos pequenos e médios empresários, a voragem para dobrar tudo e todos, como oferenda, no altar da "confiabilidade dos investidores". Nossa atitude face aos governos comprometidos com tal orientação deve ser, enfim, sintetizada na expressão "oposição implacável"; na institucionalidade e na mobilização da sociedade (elemento que de fato promove mudanças políticas substantivas) contra eles.

Não ao capital financeiro

Nessa linha, devemos trabalhar intensamente para aprofundar a divisão das forças associadas ao imperialismo, para neutralizar setores que estejam no campo de lá, realizar acordos pontuais e somar em ações práticas ao redor de objetivos anti-neoliberais com segmentos fora do campo democrático e popular, visando o máximo de isolamento do governo. Mas, em maior medida, impõe-se-nos também recusar toda tentação de vender ilusão à sociedade em torno de um "acordo nacional" supostamente capaz de conciliar a manutenção dos anseios do "mercado" (o capital financeiro) e a defesa dos interesses das maiorias e da Nação, apelidada de "o social" (tratada basicamente, como políticas sociais compensatórias). É preciso que fique claro, desde já, que o caminho da chamada "terceira via", ou do "Novo Centro" - com que Tony Blair, Schroeder & cia. acenam aos povos do mundo - materializa o velho expediente de "mudar algo, para que tudo permaneça como está". Noutras palavras, devemos recusar toda chantagem de "ameaça de crise institucional" para justificar o rebaixamento do nosso oposicionismo e nos desviarmos da luta por um novo governo no Brasil - um governo capaz de parar com a sangria da dívida externa e capitanear a reconstrução da nação: um governo democrático e popular. Mais ainda, em nossa postura não deve haver lugar para o chamado "diálogo" com o Planalto, porque nele os perdedores já estão eleitos a priori: as maiorias nacionais.

Mas, é preciso lembrar que a disputa em torno da sucessão de 2002 já está aberta no âmbito do governismo e da oposição. A própria moratória decretada por Itamar Franco, ademais de refletir o esmagamento financeiro dos estados, materializa, também, um primeiro grande lance nesse complexo tabuleiro.

Por um governo democrático e popular

O PT participa desse jogo com cartas muito fortes: o acúmulo em termos de organização, representatividade social e institucional que conquistou nestes vinte anos de luta. Sabemos que a preparação do partido, nos movimentos sociais, nas administrações municipais e estaduais e no parlamento, com vistas a conquistar o governo federal é um caminho fundamental, é a via conseqüente para dar fim à barbárie neoliberal e colocar a luta pelo socialismo num outro patamar em nosso país. Nesse processo em que buscamos acumular forças, os governos estaduais recém-conquistados - especialmente o do RS - na medida em que coloquem em prática um modo de administrar com participação popular, de defesa dos atuais direitos sociais e implementação de novos, de defesa e democratização dos serviços públicos, de recusa do "ajuste fiscal" do FMI e dos draconianos acordos das dívidas perante a União e de luta por uma reforma tributária fundada na progressividade podem abrir uma polarização fecunda na sociedade em favor do povo, em oposição ao neoliberalismo.

De outro lado, nossa relação com Itamar Franco deve ser diferenciada daquela que devemos estabelecer com Covas - este, comprometido até a medula com a sustentação do governo federal e arauto do perverso "dever de casa" imposto pelas agências multilaterais.

Com o primeiro, martelaremos juntos naquilo que significar a defesa da federação, o combate ao esmagamento dos estados e municípios e a luta contra a política do governo federal, mas caminharemos separados, especialmente naquilo que significa acumular para a disputa de 2002. As forças democráticas e populares incidirão em trágica ilusão se agirem no sentido de cacifar o aliado de ontem de Collor e de FHC, transformando-o no paladino do anti-neoliberalismo e da democracia, o que está longe de ser. Apesar de sua circunstancial e pessoal oposição ao atual presidente, por seu personalismo, por seu conservadorismo, por seu desprezo pela ação partidária, por sua prática à frente do governo federal, inclusive por ter aberto o caminho da desestabilização da nação aos gritos de "viva a estabilidade", Itamar é uma figura que exige nosso empenho para que o povo o supere politicamente, não para que com ele permaneça iludido. Eis porque o PT não deveria participar de seu governo.

O próximo Congresso do PT, assim, deve privilegiar o afinamento interno sobre essas questões e sobre a nossa oposição a FHC. Em particular, será uma ocasião para aprofundarmos o nosso debate sobre a atual fase de desenvolvimento do capitalismo, retomarmos a nossa elaboração em torno da construção de um projeto nacional de desenvolvimento, adotarmos uma estratégia clara de luta, rompendo com as ambigüidades face à chamada "globalização", reafirmarmos o PT como partido de militantes e de filiados (resgatando-o da descaracterização em curso, que ameaça cristalizá-lo como "partido de notáveis"), aprimorarmos as nossas definições acerca do socialismo, reafirmando a atualidade da luta contra a ordem do capital e a construção de uma sociedade antagônica à atual, que é fundada na lógica do lucro e da reiteração do "homem como lobo do homem".

Nelson Pellegrino é deputado federal pelo PT/BA.

Esquerda sem projeto

O mundo atual está marcado por acontecimentos e determinações que sinalizam a necessidade de reorientar radicalmente o modo de fazer política por aqueles que pretendem sustentar uma posição de esquerda. O colapso do socialismo, o fim da Guerra Fria, o triunfo da ideologia neoliberal, a globalização, as crises financeiras incontroláveis, os problemas ambientais, a revolução tecnológica e as imensas parcelas da humanidade que vivem em condições de pobreza e miséria são alguns dos elementos que caracterizam a atualidade. Vivemos uma era de incertezas e imponderabilidades. A instabilidade que ocorre no plano mundial se reflete em cada país, na medida que o mundo é cada vez mais interligado.

No Brasil, o governo FHC inaugurou uma nova fase. É um governo que lidera um amplo bloco político que vai do centro até a direita, que tem na estabilidade econômica o seu maior capital político e que procura implementar um amplo programa de reformas em nome da modernização do Estado e da orientação da economia para o mercado. Mas a crise internacional, o debate ocorrido nas eleições e o final melancólico do seu primeiro mandato indicam que o modelo adotado está em crise.

Por adotar um programa que favorece as elites, o governo não conseguiu superar alguns impasses históricos que aprisionam o Brasil na condição de uma sociedade não desenvolvida e injusta. A exclusão social, a pobreza, o analfabetismo e a concentração de renda e riqueza são problemas que estão no cerne que separa o Brasil real do Brasil desenvolvido. Não resta dúvida de que o Brasil precisa de reformas, mas, de quais reformas?

Definir um programa coerente e exeqüível, capaz de agregar amplas maiorias sociais e políticas, parece ser o principal desafio a ser enfrentado pelo PT e pela esquerda no período que se inaugura com o segundo mandato de Fernando Henrique. O PT, apesar do crescimento eleitoral moderado, saiu das últimas eleições gerais com um saldo político positivo. Não só apontou as principais falhas do governo, mas sinalizou idéias e propostas que adquiriram credibilidade. É a partir deste saldo, mas consciente de suas próprias debilidades, que ele deve abrir um processo de debates que culminará no 2º Congresso partidário em novembro.<--break->

Justiça e eqüidade

O colapso do comunismo não acabou com as possibilidades das utopias. Max Weber afirmou categoricamente que jamais se teria alcançado o possível se não se tivesse almejado o impossível. As visões de comunismo e socialismo que se explicitaram talvez estivessem erradas e principalmente os meios que foram empregados em nome dessas causas foram desastrosos e muitas vezes criminosos. É preciso redimensionar a relação entre a utopia imaginária e os objetivos reais da ação política. A utopia deve servir como um conjunto de valores, um sentido regulador da ação. Sem ela, cairíamos no praticismo oportunista. A política real implica a ação referenciada no possível, mediada pelos instrumentos e meios capazes de produzir resultados concretos, ainda que limitados, e orientada pelos valores. Se isto é verdadeiro, qual a idéia reguladora que hoje sintetiza uma relação adequada entre o desejo de um mundo melhor e a realidade do mundo em que vivemos?

A busca de uma sociedade justa vem se tornando o grande ideal para um número cada vez maior de pessoas, de movimentos e de partidos. Com o recuo do comunismo, o sistema democrático de governo vem se afirmando em quase todos os países. Mas a democracia não tem o mesmo significado para todos, nem na sua forma nem no seu conteúdo. Alguns países adotam-na com elevado grau de liberdade; outros adotam regras democráticas de disputa política, mas com restrições significativas às liberdades. Para uns, a democracia não deve interferir nas relações sociais e econômicas; para outros, ela deve garantir o bem-estar e a eqüidade.

A liberdade é o valor supremo da democracia e um dos pressupostos fundamentais da sociedade justa. Germinou com as aspirações humanas de liberdade de pensamento, de consciência, da pessoa, religiosa e as liberdades civis para, finalmente, se consagrar como liberdade política, entendida como direito de participação igual para todos nos assuntos políticos. A liberdade representa, hoje, em termos políticos e civis, a garantia de um conjunto de direitos fundamentais imprescritíveis e não passíveis de supressão. É certo que sem determinadas condições de existência dos indivíduos, sem a garantia de uma qualidade de vida razoável, grupos sociais e indivíduos não têm capacidade assegurada de desfrutar dos direitos de liberdade. A sociedade justa deve garantir as condições necessárias para que os indivíduos e grupos desfrutem da liberdade e deve ser entendida como potencializadora da liberdade dos menos favorecidos, capacitando e ampliando o leque de suas oportunidades e de suas chances de vida. Trata-se de buscar um equilíbrio econômico e material, condição de acesso a bens mais amplos, como ensino, cultura etc. A sociedade justa é inseparável da eqüidade, que não significa o igualitarismo nivelador preconizado pelo socialismo. Expressa a idéia da garantia de condições básicas de existência e desfrute dos bens materiais e culturais. A sociedade justa não se reduz aos aspectos econômicos e de bem-estar, mas agrega também as liberdades políticas e individuais. O bem-estar não pode ser garantido às custas da violação dessas liberdades. A justiça, em sentido amplo, não pode sacrificar a liberdade de poucos em nome do bem-estar de muitos e nem o bem-estar de muitos em nome da liberdade de todos. A sociedade justa se refere à existência da inviolabilidade de cada pessoa radicada nas liberdades e nas necessidades, cuja satisfação básica constitui a idéia de justiça. Esta inviolabilidade diz respeito à garantia efetiva de uma série de direitos constitutivos da cidadania. A sociedade justa, inerente à democracia, não pode ser entendida como uma forma acabada ou um estágio final de sociedade. É, antes de tudo, uma idéia reguladora da ação política e da práxis social, visando alcançar um estágio razoável de liberdade, de bem-estar e de progresso material e cultural, a partir do qual a sociedade poderá desenvolver novas potencialidades e novas perspectivas. A justiça deve ser a virtude orientadora das instituições políticas e sociais do sistema democrático de governo. A luta pela justiça requer a transformação de tais instituições no sentido de torná-las compatíveis com a busca desta virtude.

Brasil: um país injusto

Partindo da idéia-síntese da luta por uma sociedade justa, é preciso ampliar e conferir um sentido mais geral ao programa de ação do PT. No Brasil, todos os índices são unânimes em apontar as disparidades materiais e culturais, as deficiências nos serviços públicos e os desníveis de renda e riqueza. Esse consenso sobre a existência de um apartheid social permite afirmar, categoricamente, que a sociedade brasileira é uma sociedade injusta.

A sociedade injusta articula um Estado ineficiente e desacreditado com uma sociedade civil desarticulada e uma cidadania deficitária e sem direitos. Um profundo déficit de democracia no Estado e na sociedade é sua marca mais forte. A Revolução de 30 criou vários pré-requisitos para o surgimento da democracia moderna. Contra o jogo político fechado no interior das elites da República Velha, destinado a distribuir as benesses patrimonialistas, ela afirmou a noção de que o bem coletivo deveria ser produzido pelo setor público. Estabeleceu as bases do ordenamento da competição da economia privada, do surgimento das categorias profissionais, da estratificação, da agenda do movimento operário, da política social e da universalização do sufrágio.

Mas o corporativismo, a burocratização, a ação tutelar do Estado sobre a sociedade civil, a estatização dos conflitos sociais, a fragilidade representativa dos partidos políticos, o populismo e o autoritarismo foram minando a participação política dos cidadãos, desestimulando seu engajamento nas organizações sociais e refreando a competição político-partidária aberta. As transições conservadoras pelo alto consagraram a máxima elitista do "façamos a revolução antes que o povo a faça", confirmando a avaliação de Sérgio Buarque de Holanda de que no Brasil a democracia sempre foi um grande mal-entendido. A instabilidade política e a crise social, com longas temporadas de autoritarismo, pontificaram nos mais de 60 anos de República Nova. O último ato dessa crise institucional permanente foi o impeachment de Collor.

Apesar dos avanços recentes de democratização, o Estado desacreditado e a cidadania não-participativa são ainda nossas principais características. As filiações partidárias e sindicais são baixas e até decrescentes e são poucos os que participam em alguma associação da sociedade civil. O número de pessoas que se dirige ao poder público, ao Judiciário, à polícia ou a outras instituições para resolver conflitos ou até mesmo para reivindicar direitos é extremamente baixo. Mais da metade dos que adotam esta iniciativa se dirigem aos políticos ou ao poder público para estabelecer uma relação do tipo clientelista-paternalista. O conflito social é extraordinariamente alto, mas são poucos os que recorrem à mediação do Estado para solucioná-lo. Tanto o Judiciário como a polícia apresentam altos índices de ineficiência no atendimento e resolução das demandas. A mesma falência da governabilidade ocorre em relação às políticas públicas, principalmente nas áreas da saúde, educação, habitação e segurança. A informalidade e a precarização crescem nas relações de trabalho. Pesquisas revelam que a esmagadora maioria dos brasileiros não tem noção de seus direitos. Sucessivas tragédias vêm acontecendo por conta de irresponsabilidades privadas e de omissões públicas.

O resultado de tudo isso é o enfraquecimento da cultura cívica, o decréscimo da participação, o descrédito do Estado e a falência da representação política. Em contrapartida, cresce a violência social, a organização criminal e o desrespeito às leis. Isto articula um comportamento não seguidor de normas e o fortalecimento da cultura predatória, baseada em códigos privados. A selvageria social é a contraface do descrédito institucional.

É sobre a característica essencial da sociedade brasileira, sociedade injusta, que é preciso atuar politicamente no sentido de inverter a realidade em favor de uma tendência à justiça. A ação política de esquerda deve partir de uma crítica contundente às instituições sociais, econômicas e políticas e desembocar num profundo programa reformador das mesmas, visando radicalizar a democracia, ampliar a cidadania - criando novas esferas de participação social e política - e garantir direitos. Um programa reformador deve voltar-se para a reconstrução do Estado, capacitando-o para uma ação eficaz no provimento de serviços públicos essenciais, no seu papel normativo, regulador e fiscalizador, no desempenho de políticas públicas estratégicas e compensatórias e na sua capacidade fiscal e de investimentos. Deve voltar-se também para a reforma das instituições sociais e para a criação de novas instituições capazes de dar vazão às exigências de uma cidadania participativa. O papel do Ministério Público, dos órgãos de defesa do consumidor, de entidades de defesa dos consumidores, o aparecimento de entidades não-governamentais que atuam em várias frentes representam sinais de alento e de revigoramento da sociedade civil. Mas estamos muito longe, ainda, de uma sociedade civil participativa, autônoma e de uma cidadania com direitos respeitados. É preciso enfatizar, portanto, a organização da sociedade civil e seu papel decisivo, inclusive na reconstrução do Estado, no sentido de criar instituições capazes de garantir participação e direitos.

Democracia e direitos sociais

A generalização do sistema democrático não impediu que se colocassem em confronto duas concepções básicas de democracia. O pensamento conservador e neoliberal sustenta que o Estado democrático deve se restringir a funções mínimas como a garantia da segurança, da propriedade, dos contratos e da liberdade. O mercado seria o lugar adequado para a alocação de rendas, recursos e investimentos. Nesse esquema, não cabem ao Estado funções que garantam direitos sociais ou trabalhistas e busca da justiça social.

Mas, se para a esquerda a democracia deve se referir também às condições de vida material, então a questão da garantia dos direitos sociais coloca-se no centro da disputa política. Os direitos sociais dizem respeito a um conjunto de necessidades e carecimentos humanos que se afirmaram desde a segunda metade do século XIX. Indivíduos e grupos sociais adquiriram consciência desses carecimentos e entenderam ser legítimo reivindicar sua proteção e garantia junto ao Estado. A rigor, não há garantia de direitos sociais sem que o Estado cumpra um papel positivo, intervindo na organização social e econômica da sociedade, mas não de forma completa ou absoluta, como ocorreu nos países socialistas. Sem dúvida, a competição do mercado cumpre um papel estimulador das qualidades individuais e oxigena a criatividade e a eficiência. Mas, em termos de distribuição de rendas e de hierarquização de prioridades, o mercado provoca graves distorções porque suas orientações seguem princípios e interesses particulares. Se a democracia significa também eqüidade, a organização política da sociedade deve intervir para corrigir as distorções do mercado.

Ao contrário dos direitos de liberdade, os direitos sociais não são iguais para todos, pois visam resolver os problemas da eqüidade e da justiça social numa sociedade econômica e socialmente desigual. Também, diferentemente dos direitos de liberdade, que se afirmam como garantias jurídicas formais, os direitos sociais se estabelecem como direitos materiais de cidadãos no desempenho de seus papéis específicos na sociedade. Os direitos sociais se desenvolveram a partir de movimentos que reivindicaram a terra para trabalhar, a proteção do trabalho, a garantia da instrução, a assistência para a velhice e a invalidez. Os direitos sociais não param de crescer. Hoje são direitos das crianças, das mulheres, das minorias, dos portadores de deficiência, dos consumidores etc. Surgem também reivindicações de novos direitos: de viver num ambiente não poluído, contra a manipulação do código genético etc. Alguns estudiosos consideram determinados direitos sociais imprescritíveis, permanentes, sem os quais não haveria garantia de uma sociedade democrática e livre. Trata-se dos direitos à alimentação, habitação, saúde e educação. Eles constituem a condição básica do supremo direito: a vida. É imprescindível lutar contra o desmantelamento dos direitos trabalhistas e contra a precarização das relações de trabalho. É preciso buscar políticas positivas de emprego e encontrar forma de aliviar os custos da folha de pagamentos sem atingir direitos básicos.

Por uma esquerda democrática e reformadora

Ante o colapso do socialismo e a crise de referências da ideologia marxista é ainda possível postular uma política de esquerda? A social-democracia, na sua versão européia, pode servir como referência para um partido como o PT? Em que medida um programa de esquerda pode ainda se diferenciar de um programa liberal? A globalização e as novas tecnologias não teriam posto problemas comuns para muitos países e para diferentes partidos em cada país?

Estas e outras indagações estão no centro das perplexidades e dúvidas que ainda povoam a militância de esquerda desde o choque provocado pelo desmoronamento do socialismo. A busca de novos parâmetros programáticos, de novos paradigmas teóricos e a redefinição de valores e objetivos têm sido uma constante. Dos velhos partidos comunistas não sobrou praticamente nenhuma herança. O modelo guerrilheiro latino-americano e o sandinista fracassaram. A social-democracia européia, após anos de indefinições e derrotas eleitorais, está em franca ascensão. Sucesso teve também a longa transição do Partido Comunista Italiano para um novo partido de esquerda referenciado nos valores da democracia e do humanismo, o Partido Democrático de Esquerda (PDS). Na América do Sul, frentes políticas de esquerda, como as que se constituíram na Argentina e no Uruguai, se afirmam como alternativas viáveis aos programas neoliberais e conservadores. O próprio PT, pela sua originalidade, serve de referência a partidos de outros países. Nas últimas eleições, o PT apostou, com acerto, na formação de uma frente de esquerda. O PDS italiano, as frentes de esquerda latino-americanas, a social-democracia européia e a própria história do PT fornecem experiências de acertos e fracassos que servem de lições para balizar a superação desse impasse.

Mas, o que significa ser de esquerda hoje? Temos insistido na idéia - apropriando-nos de uma afirmação do velho militante Apolônio de Carvalho - de que a esquerda precisa ter a capacidade de "mudar sem mudar de lado". Ou seja, ter como referência de sua ação a mudança das instituições econômicas, sociais e políticas visando criar novas condições de vida para os setores mais desamparados, desprotegidos e explorados da sociedade. A esquerda deve defender os que mais sofrem: os trabalhadores do campo e da cidade, os excluídos, as camadas médias e os discriminados. Evidentemente, as transformações da velha sociedade industrial proporcionadas pelas novas tecnologias, as novas relações sociais, as mudanças culturais etc. ampliaram questões e bandeiras de lutas que precisam ser assumidas.

A questão da igualdade, contudo, ainda é a que diferencia e especifica uma política de esquerda. Mas como entender a igualdade num mundo com tantas diferenças e com a preponderância da economia de mercado? Trata-se da igualdade entendida como um igualitarismo nivelador, preconizado pelo velho comunismo? Acreditamos que não. A igualdade não pode suprimir o pluralismo e a diversidade de culturas, religiões, concepções etc. Igualdade, nas condições do nosso tempo, é assimilada à eqüidade e à justiça.

A esquerda jamais será democrática se não partir do pressuposto de que o valor da liberdade deve se constituir no valor supremo da democracia. A esquerda deve reconhecer o caráter conflitivo da natureza humana, o pluralismo de desejos, interesses, ideais e valores e a conseqüente expressão plural da vida política nas sociedades. A opção democrática da esquerda implica que se adotem as mediações institucionais como forma essencial de equacionamento dos conflitos sociais e humanos. A luta nas instituições e por sua mudança, porém, não anula a luta social legítima por reivindicações e mudanças. As grandes transformações históricas, aliás, ocorreram mediante a combinação de lutas sociais com lutas institucionais.

José Genoino é deputado federal pelo PT/SP.

Notas

1. Conforme Carta Capital. nº 86, pág. 4

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