Ao retornar à República Democrática da Alemanha (RDA), em fevereiro último, na companhia de Leonardo Boff, encontrei uma situação inusitada: o fracasso do socialismo alemão, a derrocada do Partido Comunista, a perspectiva de reunificação das duas alemanhas e a evasão diária, para o lado ocidental, de cerca de 2.500 pessoas. Enfim, malgrado as leis do determinismo histórico, a RDA é hoje um país socialista em fase pré-capitalista.
A convite da seção de teologia da Universidade Humboldt, estivemos em Berlim Oriental e Halle, cidade milenar próxima a Leipzig, hoje o centro político das manifestações pela democratização da RDA. Falamos com monsenhor Lange, secretário da conferência episcopal católica, com pastores e teólogos, membros do governo, teóricos marxistas e militantes dos atuais partidos políticos (12 ao todo). Todos concordavam que o socialismo alemão ruiu muito mais por causa de seus próprios erros internos do que em razão de pressões externas. É claro que se a perestroika não estivesse em vigor, as passeatas pela democracia que ocorrem todas as segundas-feiras nas principais cidades da RDA - talvez tivessem sido reprimidas pelos tanques soviéticos, como ocorreu em Budapeste em 1956 e, em Praga, na primavera de 1968. Porém, a conjuntura mudou e desde a 2ª Guerra o mapa geopolítico da Europa não sofria uma alteração tão significativa quanto agora.
As mudanças no Leste Europeu obrigam a esquerda brasileira, inclusive a Teologia da Libertação, a revisar sua concepção de socialismo e a rever os fundamentos do marxismo. Não se trata apenas de um esforço teórico para separar o joio do trigo, mas sobretudo de restaurar a esperança dos pobres e de abrir um novo horizonte utópico à luta da classe trabalhadora. Ignorar a profundidade das atuais mudanças é querer tapar o sol com a peneira e pretender vender gato por lebre. Admitir o fracasso completo do socialismo real é desconhecer suas conquistas sociais - sobretudo quando consideradas do ponto de vista do Terceiro Mundo - e aceitar a hegemonia perene do capitalismo. É preciso detectar as causas dos desvios crônicos dos regimes socialistas e redefinir o próprio conceito de socialismo.
A União Soviética abandonou, com a saída do Afeganistão, sua política intervencionista e passou a admitir que as nações socialistas européias decidam seus próprios destinos. Asfixiados pela dívida externa, pela inflação, enfim, pelo fracasso de suas políticas econômicas, os países socialistas da Europa optam por uma mudança de seus rumos políticos. Ainda que o socialismo tenha assegurado reais benefícios sociais à população, reduzindo drasticamente as diferenças de classe e possibilitando a todos o acesso aos bens e serviços essenciais, dois fatores explicam a insatisfação reinante naqueles países: a estatização da economia, que não permitiu a modernização dos bens de capital, acentuando o atraso científico e tecnológico em relação à Europa Ocidental, e o monopólio do partido único, beneficente e paternalista, que inibiu os mecanismos de participação democrática e suprimiu a oposição política. Hungria, RDA, Polônia e China enfrentam hoje uma hiperinflação maior que a do Brasil.
O caso da RDA difere dos demais países socialistas por abrir um precedente histórico: é a primeira vez que um país socialista retorna à economia de mercado e o próprio partido no poder, o Partido da Unidade Socialista (PSU), reconhece o fracasso de sua política e aceita submeter-se à vontade do povo (ou "das ruas", como dizem os alemães orientais). O movimento de contestação teve início em janeiro de 1988, nas comemorações do assassinato de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht, quando estudantes luteranos foram presos porque saíram às ruas com cartazes que reproduziam as palavras de Rosa: "Liberdade apenas para os partidários do governo, somente para os membros de um partido - não importa quão numerosos - não é liberdade. Só é liberdade se for para aquele que pensa diferentemente". A resposta do partido, publicada a 30 de janeiro de 1988, retratava bem o tipo de concepção que fizera dos fundamentos filosóficos do partido único um simulacro de ditadura: "Em nosso país, a liberdade é somente para aqueles que compartilham de nossa filosofia".
Ao visitar a Assembléia do Povo da RDA, em 7 de outubro de 1989, Mikhail Gorbatchev escreveu em seu livro de ouro: "Quem chega atrasado é punido pela história". Era uma advertência e ao mesmo tempo um empurrão para que o país se abrisse às reformas. O que com certeza o líder soviético não esperava é que, além da história, a maioria do povo também empurrasse. E com uma força que jogaria o país fora do sistema socialista. Naquele semestre, a polícia política tentara reprimir os setores oposicionistas interessados na glasnost alemã, impedindo que tivessem acesso às salas de reunião. A alternativa foi bater à porta das Igrejas, em especial a luterana, que abriram seus salões à oposição, "evitando assim um banho de sangue", disse-nos um alto dirigente do governo. Em 4 de novembro de 1989, uma manifestação convocada por escritores e intelectuais reuniu 500 mil pessoas em Berlim Oriental, um terço da população da cidade (o país conta atualmente com a população de 17 milhões). Cinco dias depois, como um rio que transborda e destrói todas as barreiras que encontra pela frente, os manifestantes atravessaram o Muro de Berlim, num gesto simbólico de que queriam uma só cidade, uma só Alemanha e um só sistema - o capitalista.
Os 450 mil soldados soviéticos acantonados na RDA assistiram a tudo sem se mexerem. O PSU compreendeu que se tratava de uma verdadeira insurreição popular, depois de suas frustradas tentativas de reprimi-la. O todo-poderoso Erich Honecker, no poder há treze anos, foi derrubado e só escapou da prisão devido a graves problemas de saúde. Os arquivos da polícia secreta foram destruídos e agora seus 85 mil agentes não sabem como e onde encontrar um novo emprego. No exame dos papéis do Estado, a oposição encontrou provas de corrupção que já levaram doze altos dirigentes políticos à prisão, entre os quais o presidente da União Democrática Cristã, um dos nove partidos que integravam a Frente Nacional, apoiadora do regime. Para não ultrapassar os limites da oposição admitida pelo governo, Erich Honecker mandava depositar na conta do presidente daquele partido, todo mês, 50 mil marcos - quando o salário médio de um funcionário qualificado girava em torno de 1.500 marcos.
Descobriu-se ainda que as eleições municipais de 1988 foram fraudadas pelo governo, para assegurar sua hegemonia política. Enquanto se conclamava o povo a suportar uma vida de austeridade como cota de sacrifício ao avanço do socialismo, muitos dirigentes políticos desfrutavam de mordomias acintosas. As restrições impostas à população eram tão grandes que um jovem professor de literatura brasileira, com uma vasta folha de serviços prestados ao regime, jamais obteve permissão para passar para o outro lado de Berlim, a fim de consultar bibliotecas especializadas ou visitar seus três filhos, que ali vivem com a mãe. Embora toda a RDA capte rádios e TVs da República Federal da Alemanha (RFA), aqueles privilegiados que viajavam ao exterior ou mesmo ao lado ocidental de Berlim, na volta tinham suas bagagens severamente examinadas, e livros e revistas eram confiscados.
Hoje, a palavra socialismo entrou para o índex dos alemães orientais, a ponto de não se admitir que seja pronunciada em público (sob o risco de ser vaiada ou ridicularizada), mas os habitantes da RDA não querem perder os benefícios sociais adquiridos com o antigo regime. A 9 de fevereiro deste ano, caiu o novo ministro da Educação, Abend, depois que manifestantes saíram às ruas para protestar contra suas medidas de contenção econômica, como o corte de refeições às crianças nas creches. Contudo, o argumento de que, apesar das dificuldades, na RDA não se encontram chagas sociais como favelas, desemprego, analfabetismo, prostituição e drogas, nada significa para quem tem, como referência, o alto grau de desenvolvimento da RFA, e não os índices sociais do longínquo Terceiro Mundo. Como convencer um jovem alemão oriental de que ele vive numa sociedade sem desigualdades econômicas, dispondo de educação e saúde gratuitas, sem o risco de se aposentar na pobreza, quando seus olhos estão voltados para a exuberância das imagens publicitárias do capitalismo alemão, que lhe prometem riqueza, liberdade e felicidade? Há na RFA 5 milhões de emigrantes da RDA (os Ubersiedler), que exibem a seus parentes do lado socialista um padrão de consumo inimaginável para uma nação socialista. Como o socialismo não se implantou no país como resultado de uma revolução, os alemães orientais sempre o encararam como algo que veio de fora para dentro, de cima para baixo. Em suma, uma imposição soviética. E apesar de toda a fraseologia política marxista, a riqueza bateu às portas do outro lado da fronteira, permitindo à RFA dispor de um PIB de cerca de 1 trilhão de dólares (contra 200 bilhões da RDA), o que a situa hoje outro lado da fronteira, permitindo à RFA dispor de um PIB de cerca de 1 trilhão de dólares (contra 200 bilhões da RDA), o que a situa hoje entre os principais credores da União Soviética.
Do lado socialista, a planificação centralizada forçou a redução da oferta de bens e serviços, estimulou o êxodo de profissionais qualificados e favoreceu o crescimento da economia subterrânea. Caso típico é o dos agricultores que vendiam seus produtos ao Estado, que lhes garantia o preço, e os recompravam no mercado - onde apareciam com preços reduzidos graças aos subsídios estatais - para revendê-los de novo ao Estado...
O socialismo em xeque
O retorno da RDA ao sistema capitalista, como resultado da própria mobilização dos trabalhadores, coloca na ordem-do-dia certas questões de fundo que vão muito além da autocrítica sincera que fazem os dirigentes do PSU. É certo que estes admitem ter adotado um modelo stalinista que inviabilizou um mínimo de democracia, na qual as diferenças não fossem confundidas com divergências antagônicas e as justas reivindicações com críticas dos inimigos do regime. A polícia tornou-se assim a única "interlocutora" do Estado junto aos setores descontentes, sem que o governo jamais se perguntasse sobre a natureza das vozes discordantes e a sua responsabilidade no grau de insatisfação popular. Porém, não basta reconhecer que a repressão stalinista e a burocracia brejneviana transformaram-se na doença fatal do socialismo alemão. Quando se depara com teóricos marxistas da Academia de Ciências da RDA e dos institutos de marxismo-leninismo que dedicaram suas vidas a propagar a convicção de que o materialismo histórico e dialético captou as inexoráveis leis do processo social - admitindo que, em poucas semanas, essa catedral de conceitos tombou como um castelo de cartas (e eles mesmos não sabiam de que iriam viver após as eleições de março), é preciso deixar de lado o caráter religioso que reveste a ideologia marxista. É preciso indagar quais são os pontos vulneráveis que possibilitaram transformar a proposta de criação de uma nova sociedade, de um novo homem e de uma nova mulher, numa apologia do Estado total sujeito à ditadura do partido único.
Tais indagações poderiam ressoar como anticomunistas se as próprias forças populares dos países socialistas não estivessem subvertendo o regime vigente, questionando a legitimidade dos partidos e governos que se arvoraram em autênticos representantes dos interesses do proletariado. O discurso de que a fartura européia não passa de uma vitrine que esconde, nos fundos da loja, vasto lixo de misérias, não repercute na consciência dos povos do Leste Europeu. De fato, a acumulação do capital é hoje tão assombrosa no Velho Continente que a Comunidade Econômica Européia trata de injetar dinheiro em áreas carentes da Irlanda e da Espanha, para que todos possam ter um mínimo de acesso ao mercado de consumo. Nós, do Terceiro Mundo, poderíamos objetar que pagamos a conta daquele banquete e passamos fome. Entretanto, é insignificante o número de pessoas - inclusive comunistas - no Leste Europeu que estão preocupadas com a sorte do Terceiro Mundo. Elas se consideram uma espécie de Terceiro Mundo que necessita urgente de ajuda econômica e apoio político e sabe que se transforma no novo pólo de investimentos capitalistas. Como disse o espanhol Eusébio Camo Pinto, do Parlamento Europeu, "a síndrome do Leste pode significar o atestado de óbito do Terceiro e Quarto Mundos".
Por trás dessa insensibilidade, há uma questão de responsabilidade. O socialismo real europeu não conseguiu despertar em seus povos a consciência revolucionária. Sem dúvida, na esquerda latino-americana há mais trabalho de politização através de escolas sindicais e da educação popular - do que na maioria dos países socialistas. Repetiu-se com o socialismo o que já ocorrera com a Igreja. Os primeiros cristãos, vivendo sua fé em condições adversas, tinham um despojamento e um amor comparáveis ao vigor revolucionário de tantos comunistas europeus que, na Guerra, enfrentaram a brutal repressão nazifascista. O próprio Erich Honecker passou 10 anos preso e, em fevereiro último, um berlinense indignado nos dizia que não podia entender como aquele que tanto sofrera se tornara um burocrata despótico.
Após ser cooptada pelo imperador Constantino, no século IV, a Igreja acomodou-se todas as vezes que se aproximou do poder. Da mesma forma, em muitos países socialistas, a consciência revolucionária daqueles velhos militantes transformou-se na lógica da preservação do poder dos novos dirigentes. O marxismo-leninismo deixou de ser uma ferramenta de transformação da história para tornar-se uma espécie de religião secularizada, defendida em sua ortodoxia pelos sacerdotes das escolas do partido e cujos princípios eram ensinados como dogmas inquestionáveis. No sistema educacional, a ortodoxia virou ortofonia - às portas do século XXI, repetia-se nas salas de aula da RDA, onde o aprendizado do russo era obrigatório, o monismo do manual de Plekhanov, A Concepção Materialista da História, de 1895, e as lições mecanicistas da História do Partido da União Soviética, publicada por Stálin em 1938. Em suma, em nome da mais revolucionária das teorias políticas, surgidas na história, ensinava-se a não pensar. Assim como certos teólogos tridentinos acreditavam que a leitura da Suma Teológica de São Tomás de Aquino era suficiente para se aprender teologia, os ideólogos do partido diziam que, uma vez aprendida a lição oficial, não se fazia necessário conhecer nenhuma outra corrente filosófica e nem mesmo outros teóricos marxistas. Trotsky, Kautsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci, eram nomes que suscitavam repulsa. Aprendia-se o marxismo como se hoje um seminarista estudasse a teologia do Concílio de Trento, ignorando toda a história posterior da Igreja, o Concílio Vaticano II e a Teologia da Libertação.
A RDA era um país socialista, mas sua população nada tinha de revolucionária. O socialismo não conseguiu resolver o problema da relação entre Estado e sociedade civil. As organizações de massa e os sindicatos eram meras correias de transmissão do partido. Essa estrutura verticalista inibia a participação dos cidadãos nos destinos do país, exceto daqueles que eram pagos como funcionários da burocracia estatal. Ora, na falta de mecanismos de participação política, de motivações revolucionárias, enfim, do direito de sonhar, a juventude deixava-se inebriar pelas sedutoras imagens que chegavam pela TV da Alemanha Ocidental. O apelo publicitário capitalista toca diretamente os cinco sentidos, antes que a consciência se dê conta e possa ajuizá-lo. Na falta de um sentido para a vida, é inevitável ceder à ambição de consumo - que o socialismo não tem condições de satisfazer. Sem válvula de escape, a pressão fez a panela explodir.
Num de seus poemas, o poeta cubano Roberto Retamar diz que a fome de pão é saciável, mas a de beleza, infindável. No plano individual ou coletivo, o que move o ser humano são as utopias, que não cabem no apertado gargalo de uma racionalidade que reduz as relações sociais à esfera econômica. O capitalismo, ao reduzir de fato o ser humano à esfera econômica e torná-lo prisioneiro da lógica implacável da relação capital x trabalho, cuidou de evitar que os olhos mirassem a realidade de frente. A exacerbação do imaginário é uma poderosa arma para assegurar a alienação e, portanto, a própria continuidade do sistema. Embora o Eldorado seja oferecido a uma minoria, ao menos na forma de bem-estar material, o sonho de alcançá-lo é socializado. Em outras palavras, para poder privatizar os bens materiais, o capitalismo socializa os bens simbólicos, através da religião ou da mídia eletrônica que não distingue o barraco do pobre da mansão do rico. O socialismo tem feito exatamente o contrário: socializa os bens materiais e privatiza o sonho, na medida em que só os detentores do poder podem aspirar ao exercício da transgressão - como mudar o modo de pensar e de agir em matéria política - que é um dos atributos da liberdade.
Nenhum ser humano cabe em si mesmo. A inata vontade de transcender-se está diretamente relacionada à possibilidade de transgredir os limites subjetivos e objetivos que o cercam. Como um filme de Walt Disney, o capitalismo cria essa válvula de escape dando vida real à fantasia. As relações objetivas não sofrem nenhuma modificação, o favelado continua marginalizado do acesso aos bens imprescindíveis à existência, mas seu imaginário é permanentemente realimentado, aumentando o fosso entre a sua consciência (alienada) e a sua existência (oprimida). Diante dessa alienação, que Marx tão bem descreve em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos, o socialismo pretendeu privar a consciência dos sonhos e trazê-la à realidade, a ponto de sufocar o talento artístico nas linhas geométricas do realismo socialista. A única utopia era a futura sociedade comunista, mas seu caminho passava pela difícil estrada de terra do trabalho produtivo. O imaginário, como uma pipa privada de ventos para alçar vôo, ficava sob o jugo da racionalidade "científica" definida pela versão do partido.
A crise atual do socialismo coloca uma pergunta-chave: afinal, o que deseja o ser humano em última instância, saciar a fome de pão - ou de beleza? As duas, diriam todos. Diante da impossibilidade real, numa humanidade em que dois terços passam fome, tomistas e marxistas estariam de acordo que sem um mínimo de pão, de condições materiais, não se pode sequer falar no apetite de beleza. Contudo, é suscitando esse apetite que o capitalismo mantém suas vítimas conformadas com a falta de pão. E na guerra à racionalidade política da esquerda, lança mão da poderosa arma do imaginário - como ao transformar um político obscuro em "caçador de marajás" - e vence eleições, além de exercer forte fascínio sobre a consciência da juventude dos países socialistas.
A resposta a esta questão não é fácil, mas acredito que ela encerra um novo caráter para a metodologia da educação política. Um homem privado de bens essenciais à vida pode não ter condições de perseguir suas utopias, mas isso não significa que ele não queira transgredir os limites que o asfixiam. Ele insiste em sentir-se livre. E o consegue, seja pelo conformismo, aceitando, por exemplo, a lógica "compensatória" do espiritualismo religioso, seja pela revolta, colocando os seus direitos acima dos direitos alheios e tornando-se um bandido. Nas duas situações, há transgressão pela via do imaginário. Na primeira, na recusa de admitir que as desigualdades e os sofrimentos desta vida sejam uma fatalidade inelutável, sem nenhuma compensação futura ou caráter meritório atual. Na segunda, na ousadia de supor que é capaz de alcançar, por seus próprios meios, a riqueza que lhe é negada. Outros preferem a via política, onde a utopia se toma fator normativo da persistente militância. Marx prefigurou uma sociedade "onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos". Essa autorealização não se esgota na garantia de acesso aos bens e serviços essenciais. Há exemplos-limites que demonstram a predominância do sentido da vida sobre o bem-estar material. É o caso de São Francisco de Assis ou de Che Guevara. Os dois, em nome de seus ideais, foram capazes de abraçar duras privações materiais, inclusive com risco de morte. "Nem só de pão vive o homem...", advertia Jesus. Não teria o socialismo real desprezado a fome de beleza, supondo que o pão fosse suficiente para saciar a voracidade humana?
Novos desafios à educação política
Na arte, o realismo socialista felizmente teve vida curta. Para o artista, não se trata de reproduzir a realidade, mas de recriá-la. Seu olho vê e revela o real por um novo prisma que capta, de alguma forma, a própria essência do real. Não é em vão que as salas reservadas aos impressionistas franceses são as mais visitadas no museu de Leningrado. Talvez os nossos processos de educação política estejam repetindo uma espécie de "realismo socialista pedagógico". Acredita-se que transmitindo noções de classes sociais, de modos de produção ou de história da classe operária, forma-se um bom militante. Sem dúvida, o conhecimento histórico, científico e técnico é imprescindível à qualificação política. Mas não é suficiente. O diretor da Academia de Ciências não é necessariamente um revolucionário e nem o catedrático de marxismo-leninismo um homem imune à corrupção.
Ninguém ingressa num partido por estar convencido do rigor científico de seu programa. As motivações que levam uma pessoa a aderir à luta política são mais da ordem do imaginário que da razão. Numa disputa eleitoral, isso fica muito claro. Muitas das razões partidárias esbarram no limite de passionais motivações subjetivas, que acirram a concorrência entre os próprios correligionários, trazendo à tona vaidades, ambições pessoais e outros sintomas que estão longe de serem considerados atributos do homem novo.
Se a mera educação conceitual é insuficiente, é preciso se perguntar pela motivação de fundo, que conduz à esfera da ética: qual o sentido de vida do militante? É possível que muitos jamais tenham parado para pensar na resposta. Quando muito dizem "fazer a revolução" ou "conquistar o socialismo". Mas esse sentido coletivo nem sempre se encontra enraizado numa opção pessoal que determina todo um programa de vida. Nenhum dos teóricos e militantes comunistas que, na RDA, lamentavam o fracasso do socialismo, disse-nos que viria lutar pela revolução no Terceiro Mundo. Pareciam resignados a aceitarem outras funções na nova ordem capitalista. Teriam sido meros funcionários da burocracia socialista ou eram de fato revolucionários comunistas? Ora, um estilo de militância oferece uma certa identidade social ao militante e todos nós necessitamos de alguma identidade social, seja como executivo da IBM, dirigente sindical ou anarquista. Mas se, no fundo, a ambição pessoal de poder permanece como motivação fundamental, o modo de agir do militante será pautado pelo mesmo oportunismo que rege o comportamento do executivo interessado em chegar a diretor da IBM.
Evitar esse comportamento, mesmo em nome de uma causa revolucionária, supõe uma profunda adequação de formação intelectual com a formação ética, da razão com a emoção, da práxis com a teoria. O sentido determinante que o militante político dá à sua vida pode ser comparado à imagem do aforismo medieval de que o conhecimento sempre se adequa àquele que conhece, como o líquido ao formato da garrafa. Do mesmo modo, as mais nobres noções de teoria política sempre se adequam à subjetividade do educando. Não basta, portanto, trabalhar apenas a qualidade do líquido. É preciso também cuidar da qualidade da garrafa - o que é um desafio ético.
A democracia como valor socialista
A crise do socialismo real coloca a concepção de democracia no centro do debate do que se entende por socialismo. A concepção de democracia como valor universal é legítima enquanto supõe a síntese da democracia formal com a democracia substancial. A democracia formal é aquela que estabelece meios e regras do exercício da soberania popular, ou seja, como deve se dar o processo de participação popular nas decisões políticas e não o que deve ser decidido. Neste sentido, é um governo do povo, mas não necessariamente para o povo, como acontece no Brasil. A democracia substancial centraliza-se no elenco dos fins, como a igualdade jurídica, social e econômica, considerando irrelevante o modo como se adotam os meios para alcançá-los. Portanto, é um governo para o povo, embora nem sempre o povo tenha possibilidade real de participar das decisões que lhe concernem, como deveria ocorrer nos países socialistas. Por enquanto, a síntese dessas duas concepções se constitui numa utopia. Nenhum país jamais construiu um regime político que reúna a democracia como valor e método. Essa definição é importante, já que no debate sobre o socialismo é preciso ficar claro de que espécie de democracia se fala. O que não se pode é incorrer no grave erro de considerar a democracia formal dos países capitalistas como referência valorativa à estatocracia reinante, até 1989, em países do Leste Europeu.
Em sua crítica a Rousseau, Marx defendia que o advento da verdadeira democracia ocorreria a partir do fim da separação entre a sociedade civil e o Estado - o que implicaria o desaparecimento do Estado e, portanto, da diferença entre governantes e governados. Em suas análises da Comuna de Paris, ele realçou, como elemento essencial à natureza da democracia, o fato de os representantes do povo poderem ser removidos de seus cargos a qualquer momento e estarem sujeitos às instruções formais de seus eleitores. Em A Guerra Civil na França, Marx criticou o sistema representativo de mera delegação de poderes do povo aos políticos (em geral, ligados aos interesses da classe dominante) e propôs a representatividade de classe, que passaria a se constituir no fundamento da concepção democrática marxista. "Em lugar de decidir uma vez em cada três ou seis anos - escreveu ele naquela obra – qual o membro da classe dominante que deverá representar mal o povo no parlamento, o sufrágio universal deveria servir ao povo, constituído em Comunas " (grifo nosso). Portanto, na base do regime político, estaria a organização popular em função do interesse de classe. Era o que ele qualificaria como "autogoverno dos produtores". As diferenças com o regime representativo - que dissimula a hegemonia da classe detentora do capital no pluripartidarismo interclassista - estariam em superar a distinção de poderes entre legislativo e executivo e concentrar os dois num Estado operativo; estender o sistema eleitoral aos órgãos relativamente autônomos do aparelho estatal, como o Exército, o Poder Judiciário e a burocracia; estabelecer a revogabilidade permanente de qualquer mandato por decisão dos eleitores; e promover a descentralização do Estado em comunas populares.
Baseado nessas idéias de Marx, Lenin propôs, em O Estado e a Revolução, os conselhos operários (sovietes). Segundo ele, na sociedade capitalista o centro de decisões desloca-se do Estado para a grande empresa, inviabilizando o regime democrático como inibidor do abuso de poder. Portanto, o controle político não pode ser exercido pelo cidadão abstrato, escondido por trás da massa de eleitores, e sim por aqueles que estão diretamente ligados à produção econômica, os trabalhadores. Estes integrariam os conselhos que, interligados nos vários níveis territoriais e administrativos, se constituiriam numa. federação de conselhos que seriam os próprios elos do aparelho estatal. O fundamental nessa concepção de Lenin é que ela instaura a democracia, não como valor universal - no sentido de se adequar a qualquer sistema econômico -, mas como intrínseca ao socialismo. Nessa direção, não teria sentido falar em "socialismo democrático", senão como redundância retórica ou recurso didático. O socialismo deveria ser democrático por sua própria natureza, já que não desvincula a emancipação econômica da emancipação política de todos os cidadãos, e não apenas da classe trabalhadora que nele exerce hegemonia política. Assim, falar em socialismo deveria significar falar em democracia e vice-versa. No entanto, os desvios do burocratismo e do stalinismo exigem, agora, que se fale em socialismo democrático ou participativo e se defina o seu conteúdo.
No Brasil, a crescente multiplicação de movimentos e organizações populares nos últimos vinte anos - comunidades eclesiais de base, sindicatos e núcleos partidários, mulheres, índios e negros, associações de moradores e centros comunitários, movimentos dos sem-terra e dos sem-teto etc. - afirma-se como uma práxis que se impõe às novas concepções teóricas, recolhidas especialmente pelo Partido dos Trabalhadores. Por sua vez, a crise do socialismo real favorece a correção de rumos políticos. Ao menos fica claro por onde não se deve ir. Fortalece-se o consenso de que o projeto democrático passa necessariamente pela autonomia e especificidade de cada um daqueles elos da sociedade civil, hegemonizados pelos interesses da classe trabalhadora. Nesse sentido, o Estado deve ser o resultado da teia de movimentos sociais e políticos. Os conselhos populares, propostos na teoria e difíceis de serem efetivados, podem ser o embrião da soma progressiva da democracia formal com a substancial. Talvez esteja aí o filão e, na dificuldade de explorá-lo, é preciso se perguntar em que medida não se estaria resistindo à democracia e, portanto, inviabilizando o futuro socialista e preferindo-se usufruir do modelo burguês, que concentra nas mãos do eleito o poder de decisão. E enfiar a carapuça do cinismo denunciado por Latzarus, de que "a arte da política, nas democracias, consiste em fazer crer ao povo que é ele quem governa".
Frei Betto é integrante da Ordem Dominicana e autor de vários livros, como Fidel e a Religião, Cartas da Prisão e Batismo de Sangue.