EM DEBATE

Frei Betto testemunha a derrocada do socialismo na Alemanha e João Machado encontra saída na melhor tradição marxista.

O Fim do que o foi o Princípio

Pela tradição marxista

O Fim do que o foi o Princípio

Ao retornar à República Democrática da Alemanha (RDA), em fevereiro último, na companhia de Leonardo Boff, encontrei uma situação inusitada: o fracasso do socialismo alemão, a derrocada do Partido Comunista, a perspectiva de reunificação das duas alemanhas e a evasão diária, para o lado ocidental, de cerca de 2.500 pessoas. Enfim, malgrado as leis do determinismo histórico, a RDA é hoje um país socialista em fase pré-capitalista.

A convite da seção de teologia da Universidade Humboldt, estivemos em Berlim Oriental e Halle, cidade milenar próxima a Leipzig, hoje o centro político das manifestações pela democratização da RDA. Falamos com monsenhor Lange, secretário da conferência episcopal católica, com pastores e teólogos, membros do governo, teóricos marxistas e militantes dos atuais partidos políticos (12 ao todo). Todos concordavam que o socialismo alemão ruiu muito mais por causa de seus próprios erros internos do que em razão de pressões externas. É claro que se a perestroika não estivesse em vigor, as passeatas pela democracia que ocorrem todas as segundas-feiras nas principais cidades da RDA - talvez tivessem sido reprimidas pelos tanques soviéticos, como ocorreu em Budapeste em 1956 e, em Praga, na primavera de 1968. Porém, a conjuntura mudou e desde a 2ª Guerra o mapa geopolítico da Europa não sofria uma alteração tão significativa quanto agora.

As mudanças no Leste Europeu obrigam a esquerda brasileira, inclusive a Teologia da Libertação, a revisar sua concepção de socialismo e a rever os fundamentos do marxismo. Não se trata apenas de um esforço teórico para separar o joio do trigo, mas sobretudo de restaurar a esperança dos pobres e de abrir um novo horizonte utópico à luta da classe trabalhadora. Ignorar a profundidade das atuais mudanças é querer tapar o sol com a peneira e pretender vender gato por lebre. Admitir o fracasso completo do socialismo real é desconhecer suas conquistas sociais - sobretudo quando consideradas do ponto de vista do Terceiro Mundo - e aceitar a hegemonia perene do capitalismo. É preciso detectar as causas dos desvios crônicos dos regimes socialistas e redefinir o próprio conceito de socialismo.

A União Soviética abandonou, com a saída do Afeganistão, sua política intervencionista e passou a admitir que as nações socialistas européias decidam seus próprios destinos. Asfixiados pela dívida externa, pela inflação, enfim, pelo fracasso de suas políticas econômicas, os países socialistas da Europa optam por uma mudança de seus rumos políticos. Ainda que o socialismo tenha assegurado reais benefícios sociais à população, reduzindo drasticamente as diferenças de classe e possibilitando a todos o acesso aos bens e serviços essenciais, dois fatores explicam a insatisfação reinante naqueles países: a estatização da economia, que não permitiu a modernização dos bens de capital, acentuando o atraso científico e tecnológico em relação à Europa Ocidental, e o monopólio do partido único, beneficente e paternalista, que inibiu os mecanismos de participação democrática e suprimiu a oposição política. Hungria, RDA, Polônia e China enfrentam hoje uma hiperinflação maior que a do Brasil.

O caso da RDA difere dos demais países socialistas por abrir um precedente histórico: é a primeira vez que um país socialista retorna à economia de mercado e o próprio partido no poder, o Partido da Unidade Socialista (PSU), reconhece o fracasso de sua política e aceita submeter-se à vontade do povo (ou "das ruas", como dizem os alemães orientais). O movimento de contestação teve início em janeiro de 1988, nas comemorações do assassinato de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht, quando estudantes luteranos foram presos porque saíram às ruas com cartazes que reproduziam as palavras de Rosa: "Liberdade apenas para os partidários do governo, somente para os membros de um partido - não importa quão numerosos - não é liberdade. Só é liberdade se for para aquele que pensa diferentemente". A resposta do partido, publicada a 30 de janeiro de 1988, retratava bem o tipo de concepção que fizera dos fundamentos filosóficos do partido único um simulacro de ditadura: "Em nosso país, a liberdade é somente para aqueles que compartilham de nossa filosofia".

Ao visitar a Assembléia do Povo da RDA, em 7 de outubro de 1989, Mikhail Gorbatchev escreveu em seu livro de ouro: "Quem chega atrasado é punido pela história". Era uma advertência e ao mesmo tempo um empurrão para que o país se abrisse às reformas. O que com certeza o líder soviético não esperava é que, além da história, a maioria do povo também empurrasse. E com uma força que jogaria o país fora do sistema socialista. Naquele semestre, a polícia política tentara reprimir os setores oposicionistas interessados na glasnost alemã, impedindo que tivessem acesso às salas de reunião. A alternativa foi bater à porta das Igrejas, em especial a luterana, que abriram seus salões à oposição, "evitando assim um banho de sangue", disse-nos um alto dirigente do governo. Em 4 de novembro de 1989, uma manifestação convocada por escritores e intelectuais reuniu 500 mil pessoas em Berlim Oriental, um terço da população da cidade (o país conta atualmente com a população de 17 milhões). Cinco dias depois, como um rio que transborda e destrói todas as barreiras que encontra pela frente, os manifestantes atravessaram o Muro de Berlim, num gesto simbólico de que queriam uma só cidade, uma só Alemanha e um só sistema - o capitalista.

Os 450 mil soldados soviéticos acantonados na RDA assistiram a tudo sem se mexerem. O PSU compreendeu que se tratava de uma verdadeira insurreição popular, depois de suas frustradas tentativas de reprimi-la. O todo-poderoso Erich Honecker, no poder há treze anos, foi derrubado e só escapou da prisão devido a graves problemas de saúde. Os arquivos da polícia secreta foram destruídos e agora seus 85 mil agentes não sabem como e onde encontrar um novo emprego. No exame dos papéis do Estado, a oposição encontrou provas de corrupção que já levaram doze altos dirigentes políticos à prisão, entre os quais o presidente da União Democrática Cristã, um dos nove partidos que integravam a Frente Nacional, apoiadora do regime. Para não ultrapassar os limites da oposição admitida pelo governo, Erich Honecker mandava depositar na conta do presidente daquele partido, todo mês, 50 mil marcos - quando o salário médio de um funcionário qualificado girava em torno de 1.500 marcos.

Descobriu-se ainda que as eleições municipais de 1988 foram fraudadas pelo governo, para assegurar sua hegemonia política. Enquanto se conclamava o povo a suportar uma vida de austeridade como cota de sacrifício ao avanço do socialismo, muitos dirigentes políticos desfrutavam de mordomias acintosas. As restrições impostas à população eram tão grandes que um jovem professor de literatura brasileira, com uma vasta folha de serviços prestados ao regime, jamais obteve permissão para passar para o outro lado de Berlim, a fim de consultar bibliotecas especializadas ou visitar seus três filhos, que ali vivem com a mãe. Embora toda a RDA capte rádios e TVs da República Federal da Alemanha (RFA), aqueles privilegiados que viajavam ao exterior ou mesmo ao lado ocidental de Berlim, na volta tinham suas bagagens severamente examinadas, e livros e revistas eram confiscados.

Hoje, a palavra socialismo entrou para o índex dos alemães orientais, a ponto de não se admitir que seja pronunciada em público (sob o risco de ser vaiada ou ridicularizada), mas os habitantes da RDA não querem perder os benefícios sociais adquiridos com o antigo regime. A 9 de fevereiro deste ano, caiu o novo ministro da Educação, Abend, depois que manifestantes saíram às ruas para protestar contra suas medidas de contenção econômica, como o corte de refeições às crianças nas creches. Contudo, o argumento de que, apesar das dificuldades, na RDA não se encontram chagas sociais como favelas, desemprego, analfabetismo, prostituição e drogas, nada significa para quem tem, como referência, o alto grau de desenvolvimento da RFA, e não os índices sociais do longínquo Terceiro Mundo. Como convencer um jovem alemão oriental de que ele vive numa sociedade sem desigualdades econômicas, dispondo de educação e saúde gratuitas, sem o risco de se aposentar na pobreza, quando seus olhos estão voltados para a exuberância das imagens publicitárias do capitalismo alemão, que lhe prometem riqueza, liberdade e felicidade? Há na RFA 5 milhões de emigrantes da RDA (os Ubersiedler), que exibem a seus parentes do lado socialista um padrão de consumo inimaginável para uma nação socialista. Como o socialismo não se implantou no país como resultado de uma revolução, os alemães orientais sempre o encararam como algo que veio de fora para dentro, de cima para baixo. Em suma, uma imposição soviética. E apesar de toda a fraseologia política marxista, a riqueza bateu às portas do outro lado da fronteira, permitindo à RFA dispor de um PIB de cerca de 1 trilhão de dólares (contra 200 bilhões da RDA), o que a situa hoje outro lado da fronteira, permitindo à RFA dispor de um PIB de cerca de 1 trilhão de dólares (contra 200 bilhões da RDA), o que a situa hoje entre os principais credores da União Soviética.

Do lado socialista, a planificação centralizada forçou a redução da oferta de bens e serviços, estimulou o êxodo de profissionais qualificados e favoreceu o crescimento da economia subterrânea. Caso típico é o dos agricultores que vendiam seus produtos ao Estado, que lhes garantia o preço, e os recompravam no mercado - onde apareciam com preços reduzidos graças aos subsídios estatais - para revendê-los de novo ao Estado...

O socialismo em xeque

O retorno da RDA ao sistema capitalista, como resultado da própria mobilização dos trabalhadores, coloca na ordem-do-dia certas questões de fundo que vão muito além da autocrítica sincera que fazem os dirigentes do PSU. É certo que estes admitem ter adotado um modelo stalinista que inviabilizou um mínimo de democracia, na qual as diferenças não fossem confundidas com divergências antagônicas e as justas reivindicações com críticas dos inimigos do regime. A polícia tornou-se assim a única "interlocutora" do Estado junto aos setores descontentes, sem que o governo jamais se perguntasse sobre a natureza das vozes discordantes e a sua responsabilidade no grau de insatisfação popular. Porém, não basta reconhecer que a repressão stalinista e a burocracia brejneviana transformaram-se na doença fatal do socialismo alemão. Quando se depara com teóricos marxistas da Academia de Ciências da RDA e dos institutos de marxismo-leninismo que dedicaram suas vidas a propagar a convicção de que o materialismo histórico e dialético captou as inexoráveis leis do processo social - admitindo que, em poucas semanas, essa catedral de conceitos tombou como um castelo de cartas (e eles mesmos não sabiam de que iriam viver após as eleições de março), é preciso deixar de lado o caráter religioso que reveste a ideologia marxista. É preciso indagar quais são os pontos vulneráveis que possibilitaram transformar a proposta de criação de uma nova sociedade, de um novo homem e de uma nova mulher, numa apologia do Estado total sujeito à ditadura do partido único.

Tais indagações poderiam ressoar como anticomunistas se as próprias forças populares dos países socialistas não estivessem subvertendo o regime vigente, questionando a legitimidade dos partidos e governos que se arvoraram em autênticos representantes dos interesses do proletariado. O discurso de que a fartura européia não passa de uma vitrine que esconde, nos fundos da loja, vasto lixo de misérias, não repercute na consciência dos povos do Leste Europeu. De fato, a acumulação do capital é hoje tão assombrosa no Velho Continente que a Comunidade Econômica Européia trata de injetar dinheiro em áreas carentes da Irlanda e da Espanha, para que todos possam ter um mínimo de acesso ao mercado de consumo. Nós, do Terceiro Mundo, poderíamos objetar que pagamos a conta daquele banquete e passamos fome. Entretanto, é insignificante o número de pessoas - inclusive comunistas - no Leste Europeu que estão preocupadas com a sorte do Terceiro Mundo. Elas se consideram uma espécie de Terceiro Mundo que necessita urgente de ajuda econômica e apoio político e sabe que se transforma no novo pólo de investimentos capitalistas. Como disse o espanhol Eusébio Camo Pinto, do Parlamento Europeu, "a síndrome do Leste pode significar o atestado de óbito do Terceiro e Quarto Mundos".

Por trás dessa insensibilidade, há uma questão de responsabilidade. O socialismo real europeu não conseguiu despertar em seus povos a consciência revolucionária. Sem dúvida, na esquerda latino-americana há mais trabalho de politização através de escolas sindicais e da educação popular - do que na maioria dos países socialistas. Repetiu-se com o socialismo o que já ocorrera com a Igreja. Os primeiros cristãos, vivendo sua fé em condições adversas, tinham um despojamento e um amor comparáveis ao vigor revolucionário de tantos comunistas europeus que, na Guerra, enfrentaram a brutal repressão nazifascista. O próprio Erich Honecker passou 10 anos preso e, em fevereiro último, um berlinense indignado nos dizia que não podia entender como aquele que tanto sofrera se tornara um burocrata despótico.

Após ser cooptada pelo imperador Constantino, no século IV, a Igreja acomodou-se todas as vezes que se aproximou do poder. Da mesma forma, em muitos países socialistas, a consciência revolucionária daqueles velhos militantes transformou-se na lógica da preservação do poder dos novos dirigentes. O marxismo-leninismo deixou de ser uma ferramenta de transformação da história para tornar-se uma espécie de religião secularizada, defendida em sua ortodoxia pelos sacerdotes das escolas do partido e cujos princípios eram ensinados como dogmas inquestionáveis. No sistema educacional, a ortodoxia virou ortofonia - às portas do século XXI, repetia-se nas salas de aula da RDA, onde o aprendizado do russo era obrigatório, o monismo do manual de Plekhanov, A Concepção Materialista da História, de 1895, e as lições mecanicistas da História do Partido da União Soviética, publicada por Stálin em 1938. Em suma, em nome da mais revolucionária das teorias políticas, surgidas na história, ensinava-se a não pensar. Assim como certos teólogos tridentinos acreditavam que a leitura da Suma Teológica de São Tomás de Aquino era suficiente para se aprender teologia, os ideólogos do partido diziam que, uma vez aprendida a lição oficial, não se fazia necessário conhecer nenhuma outra corrente filosófica e nem mesmo outros teóricos marxistas. Trotsky, Kautsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci, eram nomes que suscitavam repulsa. Aprendia-se o marxismo como se hoje um seminarista estudasse a teologia do Concílio de Trento, ignorando toda a história posterior da Igreja, o Concílio Vaticano II e a Teologia da Libertação.

A RDA era um país socialista, mas sua população nada tinha de revolucionária. O socialismo não conseguiu resolver o problema da relação entre Estado e sociedade civil. As organizações de massa e os sindicatos eram meras correias de transmissão do partido. Essa estrutura verticalista inibia a participação dos cidadãos nos destinos do país, exceto daqueles que eram pagos como funcionários da burocracia estatal. Ora, na falta de mecanismos de participação política, de motivações revolucionárias, enfim, do direito de sonhar, a juventude deixava-se inebriar pelas sedutoras imagens que chegavam pela TV da Alemanha Ocidental. O apelo publicitário capitalista toca diretamente os cinco sentidos, antes que a consciência se dê conta e possa ajuizá-lo. Na falta de um sentido para a vida, é inevitável ceder à ambição de consumo - que o socialismo não tem condições de satisfazer. Sem válvula de escape, a pressão fez a panela explodir.

Num de seus poemas, o poeta cubano Roberto Retamar diz que a fome de pão é saciável, mas a de beleza, infindável. No plano individual ou coletivo, o que move o ser humano são as utopias, que não cabem no apertado gargalo de uma racionalidade que reduz as relações sociais à esfera econômica. O capitalismo, ao reduzir de fato o ser humano à esfera econômica e torná-lo prisioneiro da lógica implacável da relação capital x trabalho, cuidou de evitar que os olhos mirassem a realidade de frente. A exacerbação do imaginário é uma poderosa arma para assegurar a alienação e, portanto, a própria continuidade do sistema. Embora o Eldorado seja oferecido a uma minoria, ao menos na forma de bem-estar material, o sonho de alcançá-lo é socializado. Em outras palavras, para poder privatizar os bens materiais, o capitalismo socializa os bens simbólicos, através da religião ou da mídia eletrônica que não distingue o barraco do pobre da mansão do rico. O socialismo tem feito exatamente o contrário: socializa os bens materiais e privatiza o sonho, na medida em que só os detentores do poder podem aspirar ao exercício da transgressão - como mudar o modo de pensar e de agir em matéria política - que é um dos atributos da liberdade.

Nenhum ser humano cabe em si mesmo. A inata vontade de transcender-se está diretamente relacionada à possibilidade de transgredir os limites subjetivos e objetivos que o cercam. Como um filme de Walt Disney, o capitalismo cria essa válvula de escape dando vida real à fantasia. As relações objetivas não sofrem nenhuma modificação, o favelado continua marginalizado do acesso aos bens imprescindíveis à existência, mas seu imaginário é permanentemente realimentado, aumentando o fosso entre a sua consciência (alienada) e a sua existência (oprimida). Diante dessa alienação, que Marx tão bem descreve em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos, o socialismo pretendeu privar a consciência dos sonhos e trazê-la à realidade, a ponto de sufocar o talento artístico nas linhas geométricas do realismo socialista. A única utopia era a futura sociedade comunista, mas seu caminho passava pela difícil estrada de terra do trabalho produtivo. O imaginário, como uma pipa privada de ventos para alçar vôo, ficava sob o jugo da racionalidade "científica" definida pela versão do partido.

A crise atual do socialismo coloca uma pergunta-chave: afinal, o que deseja o ser humano em última instância, saciar a fome de pão - ou de beleza? As duas, diriam todos. Diante da impossibilidade real, numa humanidade em que dois terços passam fome, tomistas e marxistas estariam de acordo que sem um mínimo de pão, de condições materiais, não se pode sequer falar no apetite de beleza. Contudo, é suscitando esse apetite que o capitalismo mantém suas vítimas conformadas com a falta de pão. E na guerra à racionalidade política da esquerda, lança mão da poderosa arma do imaginário - como ao transformar um político obscuro em "caçador de marajás" - e vence eleições, além de exercer forte fascínio sobre a consciência da juventude dos países socialistas.

A resposta a esta questão não é fácil, mas acredito que ela encerra um novo caráter para a metodologia da educação política. Um homem privado de bens essenciais à vida pode não ter condições de perseguir suas utopias, mas isso não significa que ele não queira transgredir os limites que o asfixiam. Ele insiste em sentir-se livre. E o consegue, seja pelo conformismo, aceitando, por exemplo, a lógica "compensatória" do espiritualismo religioso, seja pela revolta, colocando os seus direitos acima dos direitos alheios e tornando-se um bandido. Nas duas situações, há transgressão pela via do imaginário. Na primeira, na recusa de admitir que as desigualdades e os sofrimentos desta vida sejam uma fatalidade inelutável, sem nenhuma compensação futura ou caráter meritório atual. Na segunda, na ousadia de supor que é capaz de alcançar, por seus próprios meios, a riqueza que lhe é negada. Outros preferem a via política, onde a utopia se toma fator normativo da persistente militância. Marx prefigurou uma sociedade "onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos". Essa autorealização não se esgota na garantia de acesso aos bens e serviços essenciais. Há exemplos-limites que demonstram a predominância do sentido da vida sobre o bem-estar material. É o caso de São Francisco de Assis ou de Che Guevara. Os dois, em nome de seus ideais, foram capazes de abraçar duras privações materiais, inclusive com risco de morte. "Nem só de pão vive o homem...", advertia Jesus. Não teria o socialismo real desprezado a fome de beleza, supondo que o pão fosse suficiente para saciar a voracidade humana?

Novos desafios à educação política

Na arte, o realismo socialista felizmente teve vida curta. Para o artista, não se trata de reproduzir a realidade, mas de recriá-la. Seu olho vê e revela o real por um novo prisma que capta, de alguma forma, a própria essência do real. Não é em vão que as salas reservadas aos impressionistas franceses são as mais visitadas no museu de Leningrado. Talvez os nossos processos de educação política estejam repetindo uma espécie de "realismo socialista pedagógico". Acredita-se que transmitindo noções de classes sociais, de modos de produção ou de história da classe operária, forma-se um bom militante. Sem dúvida, o conhecimento histórico, científico e técnico é imprescindível à qualificação política. Mas não é suficiente. O diretor da Academia de Ciências não é necessariamente um revolucionário e nem o catedrático de marxismo-leninismo um homem imune à corrupção.

Ninguém ingressa num partido por estar convencido do rigor científico de seu programa. As motivações que levam uma pessoa a aderir à luta política são mais da ordem do imaginário que da razão. Numa disputa eleitoral, isso fica muito claro. Muitas das razões partidárias esbarram no limite de passionais motivações subjetivas, que acirram a concorrência entre os próprios correligionários, trazendo à tona vaidades, ambições pessoais e outros sintomas que estão longe de serem considerados atributos do homem novo.

Se a mera educação conceitual é insuficiente, é preciso se perguntar pela motivação de fundo, que conduz à esfera da ética: qual o sentido de vida do militante? É possível que muitos jamais tenham parado para pensar na resposta. Quando muito dizem "fazer a revolução" ou "conquistar o socialismo". Mas esse sentido coletivo nem sempre se encontra enraizado numa opção pessoal que determina todo um programa de vida. Nenhum dos teóricos e militantes comunistas que, na RDA, lamentavam o fracasso do socialismo, disse-nos que viria lutar pela revolução no Terceiro Mundo. Pareciam resignados a aceitarem outras funções na nova ordem capitalista. Teriam sido meros funcionários da burocracia socialista ou eram de fato revolucionários comunistas? Ora, um estilo de militância oferece uma certa identidade social ao militante e todos nós necessitamos de alguma identidade social, seja como executivo da IBM, dirigente sindical ou anarquista. Mas se, no fundo, a ambição pessoal de poder permanece como motivação fundamental, o modo de agir do militante será pautado pelo mesmo oportunismo que rege o comportamento do executivo interessado em chegar a diretor da IBM.

Evitar esse comportamento, mesmo em nome de uma causa revolucionária, supõe uma profunda adequação de formação intelectual com a formação ética, da razão com a emoção, da práxis com a teoria. O sentido determinante que o militante político dá à sua vida pode ser comparado à imagem do aforismo medieval de que o conhecimento sempre se adequa àquele que conhece, como o líquido ao formato da garrafa. Do mesmo modo, as mais nobres noções de teoria política sempre se adequam à subjetividade do educando. Não basta, portanto, trabalhar apenas a qualidade do líquido. É preciso também cuidar da qualidade da garrafa - o que é um desafio ético.

A democracia como valor socialista

A crise do socialismo real coloca a concepção de democracia no centro do debate do que se entende por socialismo. A concepção de democracia como valor universal é legítima enquanto supõe a síntese da democracia formal com a democracia substancial. A democracia formal é aquela que estabelece meios e regras do exercício da soberania popular, ou seja, como deve se dar o processo de participação popular nas decisões políticas e não o que deve ser decidido. Neste sentido, é um governo do povo, mas não necessariamente para o povo, como acontece no Brasil. A democracia substancial centraliza-se no elenco dos fins, como a igualdade jurídica, social e econômica, considerando irrelevante o modo como se adotam os meios para alcançá-los. Portanto, é um governo para o povo, embora nem sempre o povo tenha possibilidade real de participar das decisões que lhe concernem, como deveria ocorrer nos países socialistas. Por enquanto, a síntese dessas duas concepções se constitui numa utopia. Nenhum país jamais construiu um regime político que reúna a democracia como valor e método. Essa definição é importante, já que no debate sobre o socialismo é preciso ficar claro de que espécie de democracia se fala. O que não se pode é incorrer no grave erro de considerar a democracia formal dos países capitalistas como referência valorativa à estatocracia reinante, até 1989, em países do Leste Europeu.

Em sua crítica a Rousseau, Marx defendia que o advento da verdadeira democracia ocorreria a partir do fim da separação entre a sociedade civil e o Estado - o que implicaria o desaparecimento do Estado e, portanto, da diferença entre governantes e governados. Em suas análises da Comuna de Paris, ele realçou, como elemento essencial à natureza da democracia, o fato de os representantes do povo poderem ser removidos de seus cargos a qualquer momento e estarem sujeitos às instruções formais de seus eleitores. Em A Guerra Civil na França, Marx criticou o sistema representativo de mera delegação de poderes do povo aos políticos (em geral, ligados aos interesses da classe dominante) e propôs a representatividade de classe, que passaria a se constituir no fundamento da concepção democrática marxista. "Em lugar de decidir uma vez em cada três ou seis anos - escreveu ele naquela obra – qual o membro da classe dominante que deverá representar mal o povo no parlamento, o sufrágio universal deveria servir ao povo, constituído em Comunas " (grifo nosso). Portanto, na base do regime político, estaria a organização popular em função do interesse de classe. Era o que ele qualificaria como "autogoverno dos produtores". As diferenças com o regime representativo - que dissimula a hegemonia da classe detentora do capital no pluripartidarismo interclassista - estariam em superar a distinção de poderes entre legislativo e executivo e concentrar os dois num Estado operativo; estender o sistema eleitoral aos órgãos relativamente autônomos do aparelho estatal, como o Exército, o Poder Judiciário e a burocracia; estabelecer a revogabilidade permanente de qualquer mandato por decisão dos eleitores; e promover a descentralização do Estado em comunas populares.

Baseado nessas idéias de Marx, Lenin propôs, em O Estado e a Revolução, os conselhos operários (sovietes). Segundo ele, na sociedade capitalista o centro de decisões desloca-se do Estado para a grande empresa, inviabilizando o regime democrático como inibidor do abuso de poder. Portanto, o controle político não pode ser exercido pelo cidadão abstrato, escondido por trás da massa de eleitores, e sim por aqueles que estão diretamente ligados à produção econômica, os trabalhadores. Estes integrariam os conselhos que, interligados nos vários níveis territoriais e administrativos, se constituiriam numa. federação de conselhos que seriam os próprios elos do aparelho estatal. O fundamental nessa concepção de Lenin é que ela instaura a democracia, não como valor universal - no sentido de se adequar a qualquer sistema econômico -, mas como intrínseca ao socialismo. Nessa direção, não teria sentido falar em "socialismo democrático", senão como redundância retórica ou recurso didático. O socialismo deveria ser democrático por sua própria natureza, já que não desvincula a emancipação econômica da emancipação política de todos os cidadãos, e não apenas da classe trabalhadora que nele exerce hegemonia política. Assim, falar em socialismo deveria significar falar em democracia e vice-versa. No entanto, os desvios do burocratismo e do stalinismo exigem, agora, que se fale em socialismo democrático ou participativo e se defina o seu conteúdo.

No Brasil, a crescente multiplicação de movimentos e organizações populares nos últimos vinte anos - comunidades eclesiais de base, sindicatos e núcleos partidários, mulheres, índios e negros, associações de moradores e centros comunitários, movimentos dos sem-terra e dos sem-teto etc. - afirma-se como uma práxis que se impõe às novas concepções teóricas, recolhidas especialmente pelo Partido dos Trabalhadores. Por sua vez, a crise do socialismo real favorece a correção de rumos políticos. Ao menos fica claro por onde não se deve ir. Fortalece-se o consenso de que o projeto democrático passa necessariamente pela autonomia e especificidade de cada um daqueles elos da sociedade civil, hegemonizados pelos interesses da classe trabalhadora. Nesse sentido, o Estado deve ser o resultado da teia de movimentos sociais e políticos. Os conselhos populares, propostos na teoria e difíceis de serem efetivados, podem ser o embrião da soma progressiva da democracia formal com a substancial. Talvez esteja aí o filão e, na dificuldade de explorá-lo, é preciso se perguntar em que medida não se estaria resistindo à democracia e, portanto, inviabilizando o futuro socialista e preferindo-se usufruir do modelo burguês, que concentra nas mãos do eleito o poder de decisão. E enfiar a carapuça do cinismo denunciado por Latzarus, de que "a arte da política, nas democracias, consiste em fazer crer ao povo que é ele quem governa".

Frei Betto é integrante da Ordem Dominicana e autor de vários livros, como Fidel e a Religião, Cartas da Prisão e Batismo de Sangue.

Pela tradição marxista

Quando a crise dos regimes do Leste Europeu (e, de outra forma, da China) se acentuou em 1989, quando os setores identificados com as burocracias governantes sofreram duros reveses eleitorais na Polônia e na URSS, quando irromperam revoltas de massa em busca, sobretudo, de democracia na China, na República Democrática Alemã, na Tchecoslováquia e, na Romênia, tivemos motivos para festejar (e para lamentar a repressão que se abateu na Praça da Paz Celestial, e as vítimas da revolta romena). Nós, do PT, que, sempre tivemos uma visão crítica dos regimes de identificação entre partido e Estado, antidemocráticos; que sempre entendemos que o socialismo exige a mais completa democracia para poder existir, para poder ser chamado por este nome; tínhamos todas as razões para ver no complexo processo que avançava no Leste Europeu um grande passo histórico.

Razões particulares de alegria tivemos as que nos identificamos não apenas com uma concepção democrática de socialismo, mas com a luta concreta que se travou desde os anos 20 na URSS contra a burocracia, contra o stalinismo nascente e depois consolidado, pela retomada da construção do socialismo, e que nos reverenciamos nas análises desenvolvidas desde essa época pelo principal representante desta luta antiburocrática, Leon Trotsky, pela Oposição de Esquerda e depois pela IV Internacional.

Podemos resumir estas análises na idéia de que a revolução russa, que deu origem, em 1917, a um Estado operário a partir das estruturas dos sovietes, que instituiu um efetivo poder dos trabalhadores na sua fase inicial, não pôde manter este impulso. Sofreu um processo de burocratização, que chegou nos anos 30 a uma verdadeira degeneração burocrática. Foi vitoriosa uma contra-revolução burocrática. Desta forma, a construção do socialismo, iniciada após a revolução, foi bloqueada pelo domínio de uma burocracia que em grande medida tinha suas origens na própria classe operária, mas que progressivamente se autonomizou e cada vez mais se dedicou a defender seus privilégios econômicos e políticos, instituindo inclusive um sistema generalizado de repressão sobre os trabalhadores. A formação social assim desenvolvida certamente não era mais capitalista - várias conquistas fundamentais da revolução foram preservadas -, mas tampouco chegou a ser socialista. Não podemos chamar de socialista uma sociedade que não só não se baseia na socialização das relações econômicas, na gestão da economia pelos trabalhadores, e numa ampla democratização de toda a sociedade, mas ainda institui a repressão sistemática e generalizada sobre os trabalhadores e sobre toda a população. Ou seja, trata-se de uma situação de transição entre o capitalismo e o socialismo, mas de uma transição bloqueada pelo domínio da burocracia.

Nos outros países em que se iniciou a construção do socialismo, temos de diferenciar duas variantes. De um lado, a dos países onde houve revoluções autônomas e autênticas: China, Vietnã, Iugoslávia, Albânia, Coréia, Cuba, Nicarágua, e com um processo muito distinto, Angola e Moçambique. Nestes casos, embora a influência da URSS burocratizada tenha pesado muito, em maior ou menor grau, a história depende principalmente de cada processo histórico. Há casos em que também se consolidou o domínio de uma camada burocrática (na China, na Coréia, na Iugoslávia, na Albânia), e em outros não (Vietnã, Cuba e Nicarágua, onde as direções permaneceram ligadas às massas e à revolução).

Onde a transformação social resultou sobretudo da ocupação militar pelo exército soviético, foi reproduzido de forma piorada o regime burocrático da URSS, num processo de assimilação estrutural.

Para retomar o avanço na construção do socialismo nos países em que se consolidou uma dominação burocrática, é necessário desalojar esta burocracia e restabelecer o poder dos trabalhadores. Restabelecer, portanto, a mais completa democracia (retomando e aprofundando o que foi o funcionamento real do poder político em seguida à revolução de 1917. Chamamos este processo de revolução política antiburocrática.

Ora, o que se desenrolou diante dos nossos olhos (nas TVs) em 1989 foi justamente o início de uma tal revolução política. Não era a primeira vez na história: processos de início de revolução antiburocrática já se tinham desenvolvido na Hungria em 1956, na Tchecoslováquia em 1968, na Polônia em 1980-1981. Só que desta vez tudo isto acontecia em escala muito mais ampla e, o que é decisivo, incluía também a União Soviética, de modo que a forma pela qual foram sustados os processos anteriores - a intervenção militar da URSS - não poderia se repetir.

Naturalmente, já em 1989 compreendíamos que o processo estava apenas em seus momentos iniciais, que havia imensas dificuldades para que se completasse. Já havia muita confusão e se falava demasiado em restabelecer a economia de mercado ou diretamente o capitalismo, sobretudo em países como a Polônia e a Hungria. Mas não haviam dúvidas de que existiam razões para festejar, para ter imensas esperanças.

Hoje o quadro é algo distinto. Os elementos de confusão crescem. As possibilidades de avançar na direção de retomar e aprofundar a construção do socialismo se mantêm, mas deixam de ser hipóteses de curto prazo. Ao início da revolução política se soma um início de uma contra-revolução capitalista. Passamos a ter uma atitude que mistura a alegria pela retomada das lutas de massa e do processo de democratização com a preocupação e com a compreensão de que o processo será muito complicado. De imediato, principalmente depois da derrota eleitoral dos sandinistas na Nicarágua, fica claro que os socialistas estão numa posição defensiva.

Socialistas e capitalistas

As forças socialistas sofreram uma imensa derrota nos primeiros meses do ano, sobretudo na República Democrática Alemã (RDA). Neste país, o processo de luta contra o regime começou dirigido por lideranças de esquerda (agrupadas no Novo Fórum). As grandes manifestações de massa do início de novembro tinham um caráter predominantemente de esquerda. Lutava-se pela democracia, mas também contra os privilégios dos membros do partido (o SED, Partido Socialista Unificado da Alemanha): a revelação dos privilégios de que gozavam seus círculos dirigentes foi uma das coisas que alimentou a revolta das massas.

Mas o agravamento da crise econômica, o cansaço e o desespero que começaram a tomar conta da população da RDA, a enorme ingerência dos partidos e do governo da Alemanha Ocidental (RFA) fizeram predominar como saída para a crise a reunificação da Alemanha, evidentemente hegemonizada pela Alemanha Ocidental imperialista. A direita venceu as eleições de 18 de março, diretamente sustentada pela democracia cristã no governo da RFA. Evidentemente, os eleitores não votaram pelo capitalismo - votaram pelo que parecia ser a saída mais rápida para a crise, e votaram influenciados por medidas demagógicas e populistas prometidas pelo chanceler Kohl, como a conversão do marco da RDA no marco da RFA na taxa de 1x1. Mas votaram em partidos pró-capitalistas. A social-democracia, que inicialmente parecia ter condições de vitória (o que já seria, aliás, bastante ruim), terminou sendo derrotada por ter defendido uma perspectiva mais lenta de reunificação do país. Mas o grave foi que o Novo Fórum, que dirigiu inicialmente a luta, e outros grupos que se destacaram dele tiveram uma votação extremamente baixa.

Também se espera uma vitória de partidos de direita nas eleições húngaras, cujo primeiro turno ocorreu a 25 de março. E isto pode se repetir em outros países. No momento, em grande parte do Leste Europeu, os partidos que representam as burocracias se tornaram minoritários e as forças revolucionárias, com a perspectiva de aprofundar o socialismo, são ainda mais minoritárias. Na URSS (ou melhor dizendo, na Rússia, já que em muitas Repúblicas da URSS predominam forças nacionalistas não socialistas), o quadro parece ser diferente, se bem que também neste país houve um grande crescimento de posições pró-capitalistas. Também é distinto o quadro na Iugoslávia e na Albânia (neste último país, é impossível saber o que pensa a população.

Nada disto significa que as coisas estejam decididas em favor de uma ampla restauração capitalista. Tal restauração continua sendo muito difícil, exceto na RDA, por uma situação muito particular (mesmo neste país, o processo não é de nenhuma maneira fácil). Uma restauração capitalista teria que se dar com a entrada maciça de capital imperialista, de forma a originar não apenas novos países capitalistas, mas países capitalistas dependentes. Teria que anular conquistas sociais significativas que os trabalhadores destes países têm ainda (em primeiro lugar, provocaria um enorme desemprego). Pelo menos por um longo período, a situação dos trabalhadores pioraria muito em relação não só ao período de desenvolvimento dos regimes anteriores, mas inclusive em relação à crise atua). O que se passa hoje na Hungria, e principalmente na Polônia, com uma grande deterioração do nível de vida, dá uma idéia do que virá. É difícil de acreditar que as populações destes países possam aceitar tudo isto sem se revoltar.

Por outro lado, também há dificuldades do lado do capital imperialista. O investimento em países que se acham numa situação política tão instável é um investimento de risco muito alto. Além disso, este processo de restauração capitalista na Europa Oriental desestabilizaria toda a cena atual e complicaria muito o processo de unificação da Europa capitalista previsto para 1992...

A situação no Leste Europeu hoje é de confronto entre três projetos políticos básicos, e não há vitória à vista para nenhum deles. O primeiro é o de restauração capitalista, no momento na ofensiva. Sua força não vem dos setores sociais interessados nela nos países do Leste. Aí não há grupos capitalistas e a base social destes projetos é formada por pequenos proprietários, e por alguns setores da "classe média", e por setores da própria burocracia, desejosos de passarem de gerentes a proprietários - ou seja, setores sociais muito fracos. Sua força vem do capitalismo internacional, da burguesia imperialista, da sua capacidade de atração econômica, política e ideológica. O segundo é o do prolongamento da dominação burocrática, que teria de ser, é claro, reciclada. Este projeto tem uma base social mais forte: corresponde aos interesses do grosso da burocracia, que está profundamente abalada, mas ainda é a camada dominante mesmo onde perdeu o governo. Não podemos descartar de nenhum modo a possibilidade de reconsolidação burocrática: no país decisivo, a URSS (ou na Rússia), a burocracia mantém o essencial do seu poder.

O terceiro projeto é o do socialismo, o da construção de um socialismo autêntico, democrático. Do acabamento da revolução política antiburocrática. Sem dúvida corresponde aos interesses da enorme maioria da população, do conjunto dos trabalhadores. Mas embora tenha a maior base social potencial, hoje é o que reúne menos apoio efetivo, o que tem menor força política prática.

Como explicar esta situação? Não é fácil.

Talvez a primeira coisa que exija uma explicação seja a rapidíssima queda dos partidos no poder, a quebra relativamente fácil da dominação burocrática. A explicação talvez não seja tão difícil: a burocracia, não sendo uma classe social, não tendo raízes no modo de produção, baseia seu domínio no monopólio do poder político: isto exige, por um lado, uma alta dose de repressão para que este monopólio possa se manter (a burocracia não pode fazer como a burguesia, dividir o governo, mantendo o poder fundamental); mas, de outro lado torna a dominação relativamente frágil. No caso dos países da Europa do Leste que não fizeram revoluções próprias é ainda mais frágil, e estreitamente dependente da burocracia soviética. Foi a crise da burocracia soviética que precipitou a crise de todas as outras burocracias.

Referências internacionais

Além disso, é claro que os regimes do Leste Europeu foram acumulando desgastes e perderam completamente a legitimidade aos olhos das massas. A sua incapacidade de enfrentar a crise econômica e a estagnação parece ter sido o último elemento deste processo. Ora, regimes que sempre procuraram se legitimar se mostrando como operários, contestados por mobilizações de massa e sem possibilidade de utilizar a repressão, não têm como se sustentar: são obrigados a fazer concessões crescentes.

Também temos elementos para explicar a fragilidade das forças socialistas revolucionárias nestes países. O primeiro é justamente o desgaste de regimes que se apresentavam não apenas como comunistas e socialistas, mas como marxistas-leninistas. A isto se soma o efeito da repressão de várias décadas, que impediu que houvesse qualquer organização de forças marxistas (ou socialistas) independentes.

Talvez em nenhum outro lugar pese tanto o fato de que, para avançar em uma prática revolucionária socialista, é necessária uma teoria revolucionária, é necessário que haja uma compreensão teórica da situação, dos objetivos a serem alcançados, das tarefas colocadas. O stalinismo, apresentando-se como o marxismo, como o socialismo, e reprimido durante qualquer alternativa, limitou muitíssimo a possibilidade de formação de quadros socialistas, o que agora torna difícil organizar forças socialistas. Por outro lado, do ponto de vista da consciência das massas, não pesa apenas o desgaste de décadas de dominação burocrática apresentada como comunista. Pesa o fato de que hoje não há referências socialistas fortes na Europa Ocidental. Os partidos comunistas tradicionais, além de estarem em crise (mesmo o mais forte deles, o Partido Comunista Italiano) e não serem alternativa de poder em nenhum país, não podem ser referências para as massas da Europa do Leste, pela sua ligação com o passado de dominação burocrática. Já os partidos social-democratas, que não apenas são fortes, mas são governo em muitos países, não podem ser referências socialistas pela simples razão de que ninguém mais pensa que tenham algum projeto socialista (salvo pequenas minorias no seu interior).

Infelizmente, as referências socialistas mais significativas hoje estão apenas no Terceiro Mundo, em países como a Nicarágua, El Salvador ou o Brasil. Todos muitos distantes da Europa do Leste.

Assim, não é difícil entender o poder de atração exercido pelas forças políticas pró-capitalistas. Apesar de haver uma longa onda repressiva do capitalismo mundial desde o início dos anos 70 (que tem inclusive uma responsabilidade importante na crise econômica dos países do Leste: por exemplo, a crise polonesa se agravou com a falência do projeto do governo Gierek de pagar a dívida externa com exportações para os países capitalistas), a imagem projetada hoje pelo capitalismo é a de uma forma econômica que funciona, eficiente. É uma falsificação cruel e perversa: nunca a maioria dos países capitalistas (os do Terceiro Mundo) sofreu uma crise econômica tão grave, teve uma miséria tão espantosa. Mesmo nos países capitalistas centrais, o desemprego vem aumentando desde o início dos anos 70, e há em geral um agravamento dos problemas sociais. Mas nada disto tem impedido que se projete a imagem de eficiência e prosperidade da economia capitalista.

O resultado disto tudo é uma enorme confusão nos países do Leste Europeu. Mas é importante repetir e enfatizar. apesar de haver hoje um predomínio de forças pró-capitalistas em muitos países, o jogo está longe de estar definido, e a restauração do capitalismo, a eliminação dos elementos de socialismo (as formas de propriedade estatal - primeiro passo para a coletivização e para a socialização - e as conquistas sociais) não será coisa fácil. A burocracia, profundamente abalada e fora do governo em muitos lugares, não está derrotada (e não estará enquanto se sustentar na URSS).

A médio e longo prazos, as possibilidades de avanço socialista continuam a predominar. Para que isto se efetive, é necessário que se organizem forças socialistas que se reapropriem da tradição marxista e da experiência dos primeiros anos da Revolução Russa. Que estudem as lutas antiburocráticas que começaram na Rússia desde os anos 20, e que se relacionem com as lutas socialistas, com as experiências revolucionárias de todo o mundo.

Talvez em nenhuma outra época da história as determinações internacionais tenham pesado tanto como hoje, tenham sido tão decisivas para o sucesso de qualquer revolução socialista. Hoje, é impossível pensar na recuperação, do ponto de vista das massas, da credibilidade do socialismo em um país: é necessário ter referências internacionais fortes, é necessário poder responder ao que se passa em todo o mundo. Isto se soma, naturalmente, à conhecida (mas não suficientemente praticada) necessidade da solidariedade internacional (que foi, infelizmente, extremamente deficiente no caso da Nicarágua. Este é um dos elementos que explicam o agravamento da situação no país, a continuidade da intervenção imperialista e a derrota parcial, mas extremamente grave, nas recentes eleições). Mais do que nunca, é necessário o intercâmbio e a unidade das forças socialistas, questão na qual o PT pode ter um papel de primeira importância.

Esta situação defensiva em que a luta socialista se encontra hoje pode mudar rapidamente: por exemplo, se ocorre uma recessão importante nos países capitalistas centrais, que torne mais difícil a cínica propaganda da eficiência capitalista; se houver uma vitória socialista importante em algum país (como poderia ter sido a vitória do Lula, mesmo que nosso programa nas eleições fosse democrático-popular e não diretamente socialista).

De qualquer modo, enquanto isto não acontece, temos de trabalhar para recuperar a tradição socialista democrática, antiburocrática e desenvolvê-la à luz das novas experiências, multiplicando e reforçando o intercâmbio internacional.

Reivindicar tradições

Assim, quero concluir este artigo com a questão sobre qual deve ser o nosso ponto de partida teórico.

Acredito que deve ser o marxismo de Marx e dos primeiros marxistas, inclusive o dos dirigentes da primeira revolução socialista vitoriosa (vitoriosa de forma incompleta, como já vimos), a Revolução Russa. Além disso, temos que estudar com um cuidado especial os teóricos da luta antiburocrática, bem como os teóricos das revoluções posteriores. Naturalmente, dentre as nossas referências, devem estar também formulações socialistas como as que se desenvolvem à luz da Teologia da Libertação. O ponto-chave aqui é considerar que devemos reivindicar a tradição teórica de autores como Marx, Engels, Lenin, Trostsky, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Che Guevara; há uma oposição radical entre o seu marxismo e o stalinismo. Mas também temos muito de aprender de teóricos como Mao ou como Ho Chi Min, embora eles tenham sofrido uma influência importante de Stalin e tenham se considerado stalinistas. E sobretudo de alguém como Fidel, embora discordemos da sua visão de democracia socialista.

Naturalmente, os problemas que precisamos enfrentar hoje são distintos e novos, e não podemos encontrar respostas para eles diretamente nestes autores. Também é evidente que devemos estudar todos criticamente e que à luz da experiência histórica atual não é difícil encontrar erros em todos eles em maior ou menor grau. Mas fazem parte de uma tradição que nos interessa reivindicar.

Neste sentido, tenho uma discordância profunda com dois dos artigos publicados na Teoria & Debate nº 9, os dos companheiros Ozeas Duarte e Augusto de Franco

Ozeas não apenas faz Lenin e os bolcheviques em geral responsáveis pelo stalinismo mas encontra uma responsabilidade direta de Marx. Para Ozeas, o stalinismo é na verdade o marxismo ortodoxo que começa com o próprio Marx, sobretudo com a sua filosofia da história, que não daria lugar para a democracia, que tenderia para o autoritarismo e para a burocracia. Ozeas, além disso entende que "as sociedades ditas socialistas devem ser encaradas como resultante de uma filosofia operante, uma filosofa que buscou a realização prática integral de sua finalidade sob a forma de movimento político" (Teoria & Debate, nº 9, p. 46). Desconheço manifestação mais evidente de uma interpretação absurdamente idealista da história.

Já o companheiro Augusto de Franco vê a base do stalinismo sobretudo na tradição da III Internacional, considerando que ela não pode ser dividida em antes e depois do domínio stalinista. Considera que o stalinismo resultou de uma evolução do que se fez no início da Revolução Russa.

Ou seja, os dois companheiros negam que o stalinismo tenha representado uma ruptura. Ora, poucas rupturas na história foram mais decisivas e nenhuma mais sangrenta.

Stalin não apenas introduziu conceitos e teorias antagônicas a toda a tradição marxista anterior (a propósito, o companheiro José Dirceu, também no nº 9 de Teoria & Debate, se equivoca quando se refere a uma "teoria leninista do partido único", jamais formulada por Lenin).

O ponto freqüentemente esquecido é que Stalin, para consolidar sua ditadura burocrática, nos anos 30, eliminou fisicamente toda a velha guarda bolchevique: a que tinha dirigido a revolução em 1917 e nos seus primeiros anos, inclusive a grande maioria da velha guarda da sua própria fração. Como já assinalaram vários estudos, o PCUS (Partido Comunista da União Soviética) pós-anos 30 é um partido radicalmente diferente do partido da revolução: é o partido da burocracia. Os números a respeito são eloqüentes.

O Comitê Central eleito em agosto de 1917, que dirigiu o partido da Revolução de Outubro, tinha 21 membros, sete (incluindo Stalin) morreram de morte natural, a maioria nos anos 20; dois foram assassinados pela contra-revolução; doze foram vítimas do terror stalinista, condenados nos Processos de Moscou e executados; um assassinado no estrangeiro. Entre 1918 e 1921; 31 quadros foram membros do Comitê Central: nove tiveram morte natural; um foi assassinado pela contra-revolução; 21 foram vítimas do terror stalinista; uma delas sobreviveu. Até 1923, dez pessoas fizeram parte do Bureau Político. Dois morreram de morte natural (Lenin e Stalin), oito foram vítimas do terror stalinista.

Não menos expressivos são os dados divulgados pela primeira vez no Relatório Secreto de Khruschev em 1956. Em 1934 foi realizado o XVII Congresso do Partido Comunista da URSS, que foi chamado de Congresso dos Vencedores porque dele só participaram membros da fração stalinista, vitoriosa na luta interna do partido. Mas, ainda assim, dos 139 membros e suplentes do Comitê Central, 98 (70%) foram presos e fuzilados nos anos seguintes. E dos 1956 delegados, 1.108 foram presos e a maior parte morta. Ou seja, a consolidação do poder burocrático na URSS exigiu não apenas o aniquilamento das correntes do partido que se opuseram a Stalin, mas inclusive da maior parte da sua própria fração, dos membros que o apoiaram nos anos de sua ascensão. Além de tudo isto, historiadores soviéticos estimam em oito milhões os comunistas vítimas das purgas dos anos 30 na URSS.

Afirmar que o stalinismo representou uma ruptura radical com o marxismo não significa desconhecer que havia já na época distintas correntes marxistas, ou que os bolcheviques cometeram erros e tiveram concepções incorretas que facilitaram o desenvolvimento da burocracia e o triunfo do stalinismo. Significa simplesmente dizer (ao contrário do artigo do companheiro Augusto de Franco) que em 1917 na Rússia foi realizada uma revolução autêntica, dirigida por autênticos revolucionários socialistas, que instituiu um verdadeiro poder operário, que estimulou num primeiro momento a auto-organização dos trabalhadores, sua auto-emancipação, que este processo riquíssimo não pôde ser levado à frente, mas permanece até hoje uma referência importante para nós.

Assim, na tarefa imensa de construir uma referência socialista democrática, revolucionária, libertária, temos um ponto de apoio fundamental na tradição marxista, que devemos com toda a energia diferenciar do stalinismo.

João Machado é membro da Executiva Nacional do PT e do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

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