Estante

A Classe Operária Tem Dois Sexos – Trabalho, Dominação e ResistênciaA segunda edição do livro de Elisabeth Souza-Lobo, A Classe Operária Tem Dois Sexos. Trabalho, Dominação e Resistência, publicada pela Editora Fundação Perseu Abramo, foi apresentada no dia 8 de abril, em São Paulo, durante o seminário organizado em homenagem à autora ao completar-se 20 anos de seu falecimento. Beth Lobo tinha apenas 47 anos quando perdeu a vida em um acidente de carro na estrada entre João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba, no qual também faleceu Maria da Penha Nascimento Silva, presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande. Era abril de 1991.

Diante da perplexidade por sua morte antecipada, algumas de suas companheiras elegeram o melhor tributo que lhe poderiam prestar: dar forma de livro a suas reflexões para melhor divulgá-las, preservando assim o trabalho instigante que a Beth de corpo e alma não mais faria. No final de 1991 o livro foi publicado pela editora Brasiliense e a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, à época dirigida pela professora Marilena Chaui. Trata-se de uma compilação dos artigos escritos por Beth Lobo entre 1982 e 1991, alinhavados segundo os três temas do subtítulo. Paradoxalmente, tinha início uma nova vida de sua obra até então dispersa, agora reunida no que passamos a chamar com carinho e saudade “o livro da Beth” – textos que refletiam uma elaboração em curso, discussões e análises a que a autora se dedicava em sua vida de intelectual feminista e engajamento no processo de organização das mulheres.

Se nas duas décadas posteriores à morte de Beth Lobo ocorreram muitas transformações no mundo do trabalho, na vida das mulheres e nas relações de gênero – seus temas de pesquisa acadêmica e militância cidadã –, a reedição de seu livro (que inclui alguns artigos que não estão na 1ª edição) tem a intenção de mostrar que aquela produção interrompida em 1991 não perdeu atualidade. Assim confirmaram as pesquisadoras e o pesquisador da área de estudos do trabalho e de gênero que foram contemporâneos e colegas de Beth Lobo, ao fazer um balanço de sua obra no citado seminário, denominado “Trabalho, dominação e resistência. Revisitando a obra de Beth Lobo 20 anos depois”. E também pesquisadoras jovens, que têm na autora uma referência analítica de pesquisas sobre questões do trabalho que tomaram vigor depois que ela havia partido e, portanto, não pôde analisar (por exemplo, o teleatendimento). Nesses 20 anos surgiram nas ciências sociais, evidentemente, novas formulações teóricas e desafios metodológicos – resenhados no prefácio da segunda edição por Helena Hirata, Vera Soares e Leila Blass –, mas continuam vigentes a divisão sexual do trabalho em novas e velhas roupagens, assimetrias e desigualdades entre homens e mulheres, a invisibilidade do trabalho doméstico e do cuidado entendido como trabalho, a ocupação desigual de lugares de poder por sexo, a insuficiente incorporação da perspectiva de gênero à análise teórica sobre a realidade social, entre outros aspectos tratados por Beth Lobo.

Ela foi uma das primeiras estudiosas brasileiras que trabalhou com o conceito de gênero, ampliando a análise da situação das mulheres para entendê-la na conexão entre os modos de vida e inserção social de cada sexo. Se era então uma novidade teórica, hoje gênero orienta políticas de igualdade entre homens e mulheres em diversos âmbitos, em nível internacional. No entanto, tal igualdade está longe de ser plena realidade, convivendo avanços inegáveis – as ações afirmativas no sindicalismo e em partidos, as políticas públicas dirigidas a eliminar as discriminações de gênero, a entrada das mulheres em áreas profissionais até então “masculinas”, entre outros – com desigualdades persistentes, como o não cumprimento pleno da política de cotas em sindicatos e partidos, a forte resistência em reconhecer a necessidade de tais mecanismos para fazer efetiva a presença política das mulheres – como mostra o debate sobre a reforma eleitoral em curso no Brasil –, a desigualdade salarial entre os sexos, a violência contra as mulheres, a proibição do aborto etc.

Uma de suas contribuições analíticas foi o questionamento à concepção de homogeneidade da classe operária, presente, na época, nos estudos sobre a condição operária e em setores da esquerda. Beth insistiu e demonstrou que as trabalhadoras e os trabalhadores têm experiências distintas por sua condição de homens e mulheres distintamente inseridos na sociedade, sendo as mulheres parte intrínseca e não marginal da classe. Hoje classe, sexo e raça compõem nossa análise da classe trabalhadora e novas dimensões, como a orientação sexual, são reconhecidas na conformação do lugar social dos indivíduos, tendo-se avançado na construção de direitos iguais e a eliminação de discriminações. Mas quem trabalha com gênero sabe das dificuldades ainda em vigor em múltiplos âmbitos para conseguir que os interesses das mulheres e os impactos das políticas sobre cada sexo sejam considerados estratégicos e não secundários.

Assim, em cada artigo do livro encontramos aquele momento histórico em que foi escrito e questões cruciais que permanecem em nossa agenda cidadã, intelectual e militante.

As análises de Elisabeth Souza-Lobo sobre o mundo operário e sindical, combinando classe e sexo como dimensões indissociáveis; dos movimentos sociais, numa época de surgimento de novas formas de manifestação e organização da sociedade civil brasileira lutando por democracia; do feminismo e da eclosão das mulheres como atrizes sociais; da participação e representação política de homens e mulheres, articulam de uma maneira particular a construção de elementos teóricos e a clássica pesquisa de campo das ciências sociais, resultando em textos de grande riqueza teórica e simultaneamente de leitura acessível a quem não integra o meio acadêmico. Também nesse sentido a reedição de seu livro é importante, pois, ao reacender o interesse por sua obra, estimula sua utilização pelas novas gerações de sindicalistas, feministas e militantes partidárias/os, que terão na autora um alimento para sua prática política.

Fazer da análise sociológica uma ferramenta para a prática social militante, através da maneira como construía e redigia seus trabalhos, foi uma característica especial de Beth Lobo que tem a ver certamente com a sua vinculação cidadã a suas áreas de pesquisa. Docente da USP e da Unicamp, entre outras universidades, e mantendo um profícuo intercâmbio com intelectuais do Canadá, Estados Unidos e Europa, ela foi também militante feminista, integrou o Partido dos Trabalhadores, esteve presente no 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo do Campo em 1978 e acompanhou diretamente a então Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalhadora da CUT na primeira etapa da organização das mulheres na central, de 1986 até sua morte. Seu interesse analítico e seu compromisso com as transformações reais na vida das mulheres e na vida social e política brasileira em direção à igualdade e cidadania plenas eram faces combinadas e inseparáveis de seu ser, plasmadas na produção intelectual e na atuação concreta nos espaços que analisava.

Quando a professora universitária urbana Elisabeth Souza-Lobo e a dirigente sindical rural Maria da Penha Nascimento Silva morreram, estavam junto com outras companheiras num ciclo de contatos de Beth Lobo com mulheres dirigentes rurais. Essa incursão por uma nova área de investigação certamente teria trazido reflexões instigantes para as ciências sociais e para a prática social militante. Mas a dinâmica entre a vida e a morte cortou tal expectativa.

Aproveitemos o que a Beth chegou a nos legar em forma escrita, usufruindo das suas reflexões e ensinamentos reunidos em seu livro reeditado.

Didice Godinho Delgado é assessora de formação em gênero, trabalho e sindicalismo. Conviveu com Elisabeth Souza-Lobo quando foi sindicalista e coordenadora da então Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalhadora da CUT