Estante

Qual o futuro da democracia e do socialismo no século 21? Em A Hipótese da Revolução Progressiva – Uma Abordagem Pós-Gramsciana da Transição ao Socialismo, Ion de Andrade recupera o sentido revolucionário da democracia, em confluência com as propostas marxianas.

Retomando a compreensão marxista da história, partindo de textos clássicos de Marx, Engels e Gramsci, o autor elabora uma análise de experiências políticas em diferentes países ao longo do século 20. A Primavera Árabe, as manifestações na Europa e nos Estados Unidos também entram em perspectiva, tomadas como sinais de uma nova cidadania, em ascensão devido ao maior acesso à informação.

No Anti-Dühring, Engels comenta a relação entre o socialismo primitivo e a comunidade – Gemeinde – associada ao modo de produção asiático, nos quais o trabalho coletivo era voltado para o interesse social, em sua primeira fase. Na segunda fase, surgiram regimes despóticos pautados pela exploração do homem pelo homem, com a apropriação, pelas elites, dos produtos do trabalho coletivo. Apesar dessa evolução interna, o modo de produção asiático permaneceu o mesmo tanto na fase comunitária democrática quanto na fase despótica posterior.

Ao destacar a origem e a evolução do capitalismo e sua relação com o Estado, o autor assinala a precariedade da democracia no século 19, em que nações ditas democráticas conviviam com a exclusão de mulheres, negros e pobres de forma sistemática. A negação de direitos trabalhistas e a opressão manifesta a partir de costumeiros massacres contra trabalhadores também compunham o cenário social na Europa, configurando um Estado burguês no qual a sociedade civil era extremamente frágil. A pobreza, a violência, a doença e a ignorância, descritas detalhadamente na literatura, floresceram desde a Revolução Industrial até a Segunda Guerra Mundial, caracterizando uma fase claramente despótica do capitalismo, marcada pela supremacia absoluta burguesa. Esta precede, segundo o autor, uma fase democrática, atestando uma transição semelhante à ocorrida no modo de produção asiático, orientada agora, entretanto, rumo ao que denomina de socialismo pós-capitalista. Na primeira transição a democracia precedeu o despotismo; na transição atual, o despotismo precede uma democracia que representa historicamente o recuo político da burguesia com o surgimento de Estados de Direito.

No século 20, duas grandes tendências socialistas começam a ser ensaiadas: a via revolucionária, vitoriosa a partir da Revolução Russa, servindo de inspiração a diversos países; e o eurocomunismo, que ganha força no pós-guerra.

A partir da liderança de Lenin e depois de Stalin, a União Soviética se tornou exemplo maior do socialismo real – instituindo as “democracias populares” –, influenciando e inspirando revoluções. A constituição dessas sociedades como um antimodelo do Estado burguês é o fundamento argumentativo de A Hipótese da Revolução Progressiva, que não as vê como experiências pós-capitalistas, mas apenas como anticapitalistas e transitórias. Ion de Andrade observa que a criação desse antimodelo levou a inúmeras contradições, principalmente o autoritarismo moldado a partir do poder do partido em detrimento da autonomia popular. Em lugar de fomentar a constituição de homens novos, ressignificando o sentido de comunidade e de sociedade, a burocracia instituiu uma ordem política que estaria condenada historicamente.

No pós-guerra, a ascensão de uma nova cidadania que emanava de movimentos democráticos trouxe robustez à sociedade civil, dando origem ao Estado de Direito. Por sua vez, o mesmo Estado de Direito que extinguiu o Estado burguês também feriu de morte as pouco democráticas Democracias Populares, pois essas últimas perderam, no velho Estado burguês que se decompunha, o modelo que as legitimava, tornando-se politicamente obsoletas. Morto o modelo, pereceu também o antimodelo. Não tardou para que o autoritarismo ruísse sob seu próprio peso, diante da pressão popular.

O eurocomunismo, por seu turno, foi tragado pela convivência com o capitalismo, contentando-se cada vez mais com medidas social-democratas que tinham efeito conjuntural, mas sem interferir nas estruturas do capitalismo. Em lugar de constituir a vanguarda política de um socialismo democrático, os partidos comunistas ocidentais abriram mão de conceber e empreender um novo modelo de revolução. Dessa forma, o modelo leninista foi implodido e a proposta gramsciana de revolução não foi tentada. Hoje, a esquerda europeia parece sem rumo e vê seu patrimônio político se dissolver, colhendo repetidas derrotas eleitorais.

Uma questão primordial na transformação da sociedade é a emancipação do proletariado, que acontece em três níveis: material (ou da sobrevivência), espiritual e político. A emancipação no primeiro nível precede as demais. Tal processo vem ocorrendo de forma afirmativa e não foi submetido nem pela repressão burguesa, nem pela tutela passada dos partidos comunistas.

Tem se caracterizado por um ganho secular de renda, cultura e autonomia por parte do proletariado, decorrente de suas lutas, com implicações para a política, em que os espaços de liberdade e de direitos vêm sendo ampliados. A cidadania contemporânea é a expressão superestrutural desse proletariado emancipado, com quem faz corpo fusional no bloco histórico.

Alimentados por essa nova cidadania, em lugar de um único partido comunista surgem diversos partidos orgânicos proletários, cuja matriz filosófica baseia-se no humanismo, no igualitarismo e na democracia, a esquerda política, conforme Bobbio. Dessa forma, essa esquerda adquire uma nova relação com a sociedade e com o Estado, a partir de um coletivo de cidadãos emancipados que contribuem para a emancipação dos demais cidadãos. 

Para o autor, socialismo e democracia são indissociáveis e essa concepção pautará o futuro. Dessa forma, o sentido histórico é orientado por um socialismo pós-capitalista, em que as organizações democráticas e populares conquistam amplo espaço na organização social, concorrendo para a ”desestatização” do Estado e para a submissão do mercado à sociedade. Essa dimensão teleológica – inspirada em Gramsci – está fundada no enraizamento de uma nova democracia, advinda de uma cidadania tão significativa que dá origem a um novo Estado, o “Estado Cidadão”, entendido como o ente não estatal que sucede o Estado de Direito pela progressiva depuração de seus limitantes burgueses ao exercício da democracia, consumando o “mito” marxista do fim do Estado.

A sociedade da informação vê despontar como um efeito colateral os movimentos sociais em rede, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, os Indignados na Espanha. Essencialmente plurais, fragmentados e pouco afeitos a estruturas organizacionais verticalizadas, esses movimentos podem ser tomados como sintoma do fortalecimento da sociedade civil e um prenúncio do Estado Cidadão, no qual o exercício pleno da democracia política se encontrará com a democracia econômica: o socialismo.

Ruy Rocha é jornalista, documentarista e professor do departamento de Comunicação Social da UFRN