Estante

O relançamento do livro de Valter Pomar, A Metamorfose: Programa e estratégia petista 1980-2016, resultado de sua tese de doutorado em História defendida na Universidade de São Paulo, é muito bem-vindo, pois indispensável num momento de nossa vitória política e eleitoral sobre a direita, mas que também requer um reposicionamento da esquerda e do PT para as duras cobranças que vêm pela frente.

O autor aborda um período relevante de desenvolvimento do PT num rico diálogo com a história brasileira, mais precisamente em sua relação com a classe trabalhadora e seu processo complexo e tenso de construção de suas formulações táticas e estratégicas. Gramsci aludia que o partido traz em seu programa a expressão do país a que está arraigado sob o ponto de vista da classe a que aquele se vincula e da contraditoriedade de liames estabelecida com as demais classes sociais. Ou seja, um partido é sempre a tradução de uma certa leitura da nacionalidade sob a angulação dos interesses materiais de classe, da densificação ontológica que o impregna, claro sem olvidar os nexos com a Divisão Internacional do Trabalho e suas repercussões eventualmente positivas ou negativas. Portanto, um projeto de partido, notadamente de um partido socialista, “Moderno Príncipe”, embute necessariamente um projeto global de sociedade, de Estado, de nova ordem capaz de contrarrestar a fortuna. A oportunidade de um lançar profundo de vistas sobre a mais importante organização partidária brasileira da contemporaneidade, o PT, já diz muito sobre a importância desse livro e, por óbvio, de como ele propicia uma análise mais circunspecta sobre nossas responsabilidades coletivas perante o Brasil. A começar pela constatação feita pelo autor nas páginas de seu livro da ausência de uma adequada síntese programática à altura do confronto que travamos e precisaremos travar com a direita nativa.

Há tempos os petistas sentem-se carentes de um debate estratégico estruturado que ultrapasse as filigranas do mero enfoque imediatista a arranhar as bordas da conjuntura e as preocupações restritas da governamentalidade, para alcançar o terreno minado das grandes definições de mundo, começando a solucionar nossos infortúnios seculares. Perdemos o hábito do debate a partir da longa história, agravado pela imediaticidade das solicitações institucionais e pela pressão ideológica da pós-modernidade, inoculado pela hegemonia burguesa neoliberal com seus conceitos e categorias liquefeitos, presos a uma “narrativa” subjetivista, de viés identidarista que imprime fragmentariedade a nossa base social proletária, tornando-a pouco afeita aos apetites da velha e boa luta de classes.

A política segundo tal “leitura” esvaziara-se de sentido, dando lugar ao regime dos afetos, da pulverização de reivindicações setoriais, da soberania dos mercados e de outras entidades fantasmáticas. Para os adeptos dessa liquidez neoliberal o tempo restringe-se ao tempo do presentismo do capital, da liberdade radical da propriedade privada, da economia monetarizada, sem nenhuma concessão às demandas materiais populares, vistas como antinômicas a normatividade teológica dos mercados, a austeridade de gastos a balizar o “livre” funcionamento da lei da oferta e da procura.

Ademais, falar de socialismo, de ultrapassagem das alternativas postas pelo modo de produção de mercadorias é reiteradamente veiculado como um gravame moral, uma prova de ausência de maturidade, de realismo, de inapetência para chegada ao poder por parte da esquerda. Até o reformismo preso às retortas da ordem precisaria ser mitigado, mostrando-se de baixa intensidade, meramente cosmético. Mesmo porque aponta-se para um crescente descolamento entre eleições e realidade material econômica – esta regida pelo império da financeirização, do rentismo, da globalização dos mecanismos de fluxo de papéis e ações da bolsa. Segundo tais porta-vozes da ordem do capital a mudança quando muito deveria cingir-se as personalidades que deveriam gerir a administração das coisas, nunca quanto aos desígnios do soberano mercado.

Nesse sentido, o tema e própria escolha do título do livro de Valter não poderia ter sido mais feliz, permitindo articular duas questões fundamentais para a perspectiva de uma esquerda revolucionária,  autenticamente socialista: o resgate da negatividade transformadora da política, da práxis “dos de baixo” e o rebate do assimilacionismo burocrático “kafkaniano” contido na alegoria da “metamorfose” que tende, a exemplo das advertências de Weber e Michels, a apasssivar a energia criadora das massas operárias e populares.

Um dos méritos centrais do livro é a compreensão da temporalidade larga que justifica o nascimento do PT, sua formação contraditória e os impasses que guarda dentro de uma compreensão do real, do quadro de uma economia, de uma sociedade civil complexa, pois ao mesmo tempo anacrônica e avançada. Um PT que surge da pujante explosão das lutas operárias, combinado a junção das diferentes vanguardas, grupos e frações oriundas da ruptura com a tradição stalinista, das diversas variantes do marxismo, do autonomismo, da social-democracia, do populismo etc. Daí a singularidade do PT, haja vista que ao tempo que é continuidade de uma tradição que remonta aos anarquistas e a criação do PCB, também é ruptura, novo começo, momento instituinte da esquerda brasileira. Um partido que mais do que uma frente episódica de combate à autocracia burguesa, postulava por uma nova síntese programática, organizativa, capaz de sintonizar com as aspirações populares por melhores dias, pela consecução de uma nova ordem social, política, econômica.

Valter Pomar explora os movimentos da conjuntura dentro da estrutura cervical de um país capitalista periférico, permeado pelas sobrevivências da violência extraeconômica do eito, da tendência de nossas classes dominantes para o arbítrio, para o continuado exercício da coação sobre as maiorias, como consignou também Florestan Fernandes em seu A Revolução Burguesa no Brasil. Força prepotente que se irmana a corrupção sistêmica, ao divórcio com os processos de produção em sintonia com a subsistência interna das comunidades nativas, com a expansividade do mercado interno de massas, de garantia dos direitos sociais, de consumação de uma economia política porosa às demandas dos trabalhadores.

Enfim, o livro em seus capítulos debruça-se sobre a tensão permanente entre crescimento do PT, seu peso na institucionalidade e os travejamentos estruturais de um Estado, de uma economia feita para servir a poucos. Depreende-se de sua abordagem histórica, processual, a eterna peleja entre as potencialidades dormidas das energias democráticas, presumidamente submetidas à vontade popular, e as estreitas malhas de uma institucionalidade feita para bloquear tais energias “subversivas”. A “subversão” aqui vem da “ousadia” da aplicabilidade da Constituição, da introdução da igualdade e liberdade formais há muito implementadas nos países capitalistas centrais, mas inaceitada por nossas classes dominantes escravistas. Daí a “funcionalidade” da consequente assunção ao governo do cavernícola Bolsonaro em nosso país, como bem nomina Valter Pomar, dada a dinâmica estrutural da perversa dialética entre sobrecidadania para os ricos e subcidadania para os pobres, pretos e porque não dizer, petistas.

Mais do que nunca, o livro lança uma advertência a esquerda brasileira e mais precisamente ao PT e a sua militância combativa de base:  precisamos de um partido retemperado para a luta de classes, para a batalha contra-hegemônica, para o revigoramento organizativo de suas instâncias, reafirmando sua autonomia frente ao estado burguês, sob pena de faltarmos ao encontro com a história, com as exigências que nos são postas para emancipação do país, de sua gente, de sua inscrição ativa no mundo. Para tanto, não basta denunciar as mazelas privatistas do neoliberalismo, nem se restringir às modificações epidérmicas nas instituições, mas ter coragem de proclamar nosso amor político, o socialismo e sua veia radical anticapitalista.

Nossa metamorfose aqui deve significar mudança para não mudar, sinalizando dialeticamente nosso aggiornamento organizativo, programático, as tarefas que sejam fidedignas à potência não efetivada do partido, de sua missão histórica. Por isso, ela não deve, não pode ser protraidora de nossos imensos compromissos, promessas de futuro, mas, ao contrário, sinérgica com o tamanho de nossos desafios revolucionários, do enfrentamento com a bestialidade fascista e seu desprojeto necrófilo de destruição nacional. A única saída para a crise estrutural do capitalismo é apontar caminhos radicais para um novo mundo, construindo uma alternativa concreta, socialista. Para sermos contemporâneos com nós mesmos, devemos fazer política sim, política autêntica, com P maiúsculo, eversiva dessa realidade desumana, antiética, antiecológica, superadora da barbárie do capital. Só assim refaremos a ponte entre passado, presente e futuro, desbloqueando a história.

Newton de Menezes Albuquerque é professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC)